terça-feira, 16 de julho de 2019

A morte - 76



Desde que nascemos, a morte é a coisa mais certa da vida. Na cultura ocidental, porém, a morte está muito distanciada, isto é, não queremos nada com ela e frequentemente, quando alguém morre, independentemente do motivo, achamos que foi um grande azar. Há acidentes de vária natureza, há também erros de medicina, falhas humanas, mas sempre arranjamos uma desculpa, considerando que a morte se podia ter evitado. O que nunca pensamos e aceitamos é que ela tem dia e hora marcada. Quando nascemos já a trazemos predestinada e não vai possível alterá-la. É do domínio dos registos akáshicos e nada nem ninguém pode mudar essa circunstância. Mas na nossa cultura, de facto, a morte nunca é aceite como algo inerente à própria vida. O culto à morte está entre muitas culturas, paradoxalmente nas mais ancestrais, e é algo comum entre culturas indígenas com uma aceitação pacífica e normal. Porém, quanto mais o homem evolui, mais se afasta da realidade da morte. Alguém disse esta frase muito certa “Os homens vivem como se nunca fossem morrer e morrem como se nunca tivessem vivido” (Jim Brown).

 

Há uns bons anos atrás, tive um companheiro paquistanês que residia em Portugal. E durante os sete anos que vivi com ele aprendi a pensar e a ver por outras perspectivas e outros prismas de vista. Por exemplo, ele casou-se muito novo, de acordo com os costumes da sua cultura, com casamento marcado pela família e desse casamento tinha um filho com oito anos, mas esse foi o segundo filho, porque antes houve um outro, o primeiro, que morreu após um dia de vida. 


Desde a primeira hora em que ele me contou isto, achei triste ter um filho que morre logo de seguida. Achei que se acontecesse comigo morreria também. Mas a ele parecia não incomodar. É certo que já lá iam uns anos, mas ele sempre me parecera muito sereno em relação a esse assunto. E de vez em quando fazia-lhe perguntas para tentar perceber a razão de tal ter acontecido, para perceber se teria havido alguma hipótese daquela criança ter sobrevivido. Eu achava que podia entender e ele ia respondendo conforme podia, de acordo com as informações que tinha, que eram escassas, digamos. Até um dia em que já estava farto de tanta insistência da minha parte com aquele assunto e me respondeu simplesmente que tinha acontecido porque deus (Alá) tinha mandado aquela criança à vida e lhe tinha dito, vais e vives um dia, depois morres. E o assunto para ele estava encerrado. 


E percebi que era óbvio. Não era fácil para mim tratar aquele assunto assim, mas entendi que ele estava certo. Esta é que é a verdade. Ele estava certíssimo. Não havia motivo para tanta relutância da minha parte. O que estava em causa era a aceitação das coisas que são naturais e a morte é uma coisa natural. Todos os que vêm à vida morrem. Eles não ficam felizes com a morte, mas têm uma postura completamente diferente da nossa ou da maioria das pessoas.

 

Quando eu era criança, tinha os meus cinco anos de idade, vivi uns tempos em Lisboa com os meus tios enquanto os meus pais e a minha irmã bebé ainda estavam em África, por conta de problemas complicados que agora não vem ao caso. O facto é que tive que vir para Portugal e ficar com eles, o que me custou bastante, mas que era necessário. Quando chegou o verão, eles mandaram uma empregada que tinham a tempo inteiro (interna) de férias para a terra dela, a Chamusca, e fui com ela porque acharam que seria bom para mim. Não se enganaram, porque tudo era melhor do que fichar fechada num terceiro andar no coração de Lisboa. A família dela era gente humilde e viviam no campo. Não havia água canalizada, pelo que a toda a hora era preciso ir à fonte encher os cântaros de barro que carregavam sobre a cabeça por cima de uma rodilha. E como a casa ficava num monte, para tudo andávamos ladeira abaixo, ladeira acima.

 

Havia um grande quintal em volta da casa com árvores, capoeiras, tanque de lavar roupa, terreno lavrado e cultivado onde se iam colher os produtos para depois se cozinhar. Tudo aquilo era muito giro e, embora diferente, trazia muito de volta a minha África. Pelo menos eu tinha ar livre. Podia correr, cair, sujar-me. Podia novamente trepar às árvores. Não havia cajus nem mangas, mas havia figos doces como o mel e descobri que adorava aquela fruta maravilhosa até hoje. Enfim, a criança aventureira que havia em mim renasceu, saiu à vida e agradeceu aquela maravilhosa oportunidade. 


É claro que estavam sempre a reprimir-me, com medo disto e daquilo, que me acontecesse alguma coisa, e tentavam quebrar a minha liberdade, mas eu sabia como me defender. Eu era perita nisso e acabava sempre por fazer aquilo que me apetecia. Desassossegava os galos, as galinhas e foi uma festa e tanto, quando descobri uma ninhada de pintainhos pequeninos, amarelinhos, uma coisa muito fofa que me deixou completamente deliciada. Todos os dias me massacravam a paciência com uma gemada com açúcar em jejum porque, diziam, dava muita força… como se eu precisasse disso. Eu precisava era de ar livre e espaço para brincar. Só me sentia infeliz e desarticulada quando ficava enclausurada, sem saber o que fazer. E depois havia contra uma parede exterior da casa um banco corrido de pedra, onde nas noites muito quentes o pai delas, um senhor já com bastante idade, estendia uma manta velha e dormia ao relento. No outro dia quando me levantava, já lá não estava nunca, para lhe poder perguntar se tinha dormido bem e como era ficar ali fora, porque o meu sonho secreto era um dia poder dormir ali, adormecer olhando as estrelas naquele céu limpo onde, sem as luzes dos candeeiros, brilhavam com uma intensidade maior. E queria sentir a noite, momento após momento, a noite na noite dentro, estar atenta à natureza, a tudo o que à minha volta se passava e descobrir os mistérios da escuridão. Só que isso nunca aconteceu que elas nunca me deixaram fazer, com grande pena minha.

 

E no meio dessa brincadeira toda, dessas novidades da província, da vida simples do campo, das idas ao rio para tomar banho e refrescar do calor, no meio das vinhas onde eu queria à força integrar-me para também apanhar as uvas e mostrar que era capaz como as outras crianças, e os tomates que eram o mais parecido com os frutos tropicais por causa da cor, caminhar nas estradas de terra onde a poeira se levantava no ar, enfim, eu sei lá já há quanto tempo, parece que foi noutra vida… mas no meio disso tudo, aconteceu um episódio que nunca esqueci.

 

Um dia correu a notícia de que a senhora não sei quantas estava mal, muito mal. A senhora não sei quantas era uma velhota, muito velhota. Estava de cama e não se levantava mais. E toda a gente ia lá para a ver. A população era reduzida, as pessoas conheciam-se todas umas às outras. Então chegou a vez da empregada dos meus tios, a Leonor e a irmã irem lá vê-la também. E como não me iam deixar sozinha porque eram só elas em casa durante o dia, o marido da irmã e o pai estavam na lavoura, lá fui eu também a casa da senhora velhota que, efectivamente, estava na cama. 


Era um ambiente soturno, triste, deprimente. Havia a família e depois os amigos. Estavam todos à beira dela, por assim dizer. Uma cama no meio de um quarto quase sem nada e a velhota lá deitada, de olhos fechados, com umas vestes pretas, um silêncio de cortar à faca e as pessoas falando em segredo. Até já lá tinha ido o padre para dar a extrema unção, porque não se sabia quanto tempo ela podia estar naquele estado. As pessoas chegavam, aproximavam-se dela, algumas tocavam-lhe, parecia que rezavam e iam-se, para dar lugar a outras. Coitada, diziam algumas pessoas, deus a leve em paz e outras coisas do género. E eu olhava atentamente para aquele ser inerte, tentando vislumbrar algum rasgo de luz. Mas ela estava mais para lá do que para cá.  E alguém pergunta baixinho, sobre o estado dela, querendo saber quanto tempo é que ela iria sobreviver. E alguém respondeu baixinho que o sofrimento dela era muito doloroso e que podia ficar assim por dias, semanas, até se finar de vez. Coitada, diziam, deus tenha piedade(!).

 

E eu que era uma criança de cinco anos apenas e que nessa altura ainda não tinha o trauma da morte, porque a minha mãe ainda não tinha falecido, ainda estava viva e bem viva; eu que não tinha experiência da vida e muito menos da morte, quando ouvi dizerem que ela ficaria assim por muitos dias, até semanas, achei aquilo um absurdo, uma loucura, pensando para comigo que era impossível, porque ela estava exalando o último suspiro e teria apenas umas horas de vida!? Era isto que eu via e era isto que eu sentia. Em todo o caso, como era muito pequena e não sabia nada de nada, acreditei no que ouvi e fiquei com imensa pena de ver um ser humano viver dias ou semanas naquele estado miserável, mais morto que vivo.

 

Feita a visita e os cumprimentos da praxe lá fomos rumo ao monte, no caminho para casa, ainda embuídos daquele clima mórbido e doentio. Pelo caminho fiz a mesma pergunta que tinha ouvido fazer, na esperança de ter uma resposta diferente, mas a resposta foi a mesma, ou seja, que podia ficar assim muitos dias em sofrimento e mais uma vez fiquei não gostei e fiquei impressionada, achando que ela realmente teria apenas algumas horas, quando muito.  


Passou-se a noite e no outro dia logo de manhã veio a notícia de que naquela madrugada a velhota tinha morrido. Quando ouvi pensei logo, eu estava certa. Como é que mais ninguém tinha visto o que eu vi?! Gente da aldeia, de certa forma habituados a lidar com a morte de uma maneira mais familiar do que nas cidades e não perceberam?

 

O facto é que realmente vimos coisas diferentes. Aquela criatura já não representava a vida mas, sim, a morte imediata, que parece que só eu vi.

 

Muita gente pensa que as crianças não compreendem e não entendem, como se fossem cegas, surdas e mudas. É um engano de todo o tamanho! A sensibilidade e a percepção de tudo está lá inteiríssima, toda concentrada, porque ainda nada se perdeu. Vamos crescendo e aí sim, o melhor, o mais genuíno de nós, vai ficando pelo caminho e em muitos casos desaparece completamente para a grande destruição e ruína do ser humano.




sábado, 13 de julho de 2019

As duas faces da moeda - 75



Tiago era emigrante nos Estados Unidos, onde residia há mais de vinte anos. Tinha ido com uma namorada portuguesa com quem casou e teve dois filhos. As coisas não correram muito bem entre eles e veio o dia em que se separaram tendo, no entanto, continuado a viver na América, mais propriamente em Miami. Tiago vinha a Portugal sempre que podia, uma vez por ano e os filhos acompanhavam-no para estarem com os avós e restante família que não era pouca.

 

Com os filhos já adolescentes e separado da primeira mulher Tiago conheceu Nina, uma jovem cubana também emigrante, com idade para ser filha dele, mas que se apaixonou por ele e ele por ela. Nina veio uma primeira vez a Portugal para conhecer a família do namorado e todos se encantaram com ela, bem como ela com a família dele. Uma paixão “caliente”, bem evidente para todos. Os dois estavam felizes e as famílias também. Era uma alegria e tanto. Os filhos gostavam muito da madrasta e vice-versa. Era uma família feliz, muito bem dispostos, onde havia alegria para dar e vender. O casal dava-se às mil maravilhas e tudo era bom demais.

 

Os primeiros anos passaram e Nina começou a falar em ter um filho. Ela insistia em querer ter um filho dele. Afinal ele tinha dois filhos do primeiro casamento e Nina era jovem, por isso achava que era justo ter um filho. Tiago não parecia estar para aí virado, talvez porque já tinha dois adolescentes e como ele sempre fazia questão de salientar, outro filho significava noites mal dormidas, fraldas, biberons, papas e choro de criança. Tudo o que está implícito na vida de um casal quando chega um filho. E Tiago fazia questão de lembrar a Nina um certo desassossego que, com toda a certeza, interferiria na vida de ambos. A questão era simples. Valeria a pena? Quereriam ambos o mesmo?

 

Nina queria, porque queria. Queria ser mãe e ter um filho seu. Ela gostava muito dos enteados a quem tratava com muito amor e todo o carinho, mas ter um filho seu, disso não abdicava. E, quando às vezes Tiago, meio brincando, meio a sério, lhe dizia que se queria um filho teria que arranjar alguém que lho fizesse, porque ele não queria outro filho, ela dizia-lhe com todas as letras que podia até ser, mas que era ele, Tiago, que o iria criar com ela. Isto evidenciava bem o quanto ela admirava o companheiro e como ela achava que ele era gente boa, com bons valores, a ponto de querer que fosse ele a educar um filho dela, como o fazia com os outros.

 

O tempo foi passando e um dia Nina ficou grávida e então Mia nasceu. Uma fofa. Uma coisinha muito querida, muito docinha. Um encanto. E o Face Book mostrava fotos sem fim dos dois em Miami com a sua pequenina Mia, que crescia a olhos vistos. Fotos que mostravam o grande amor entre eles, deliciados com a sua pequenina. Mia fez um aninho e veio a Portugal com os pais e a avó materna, para ser baptizada com a família toda junta. Uma grande festa, uma grande alegria. Exceptuando uma amiga, que à porta da igreja, para não dar vexame, chorava baba e ranho de todo o tamanho, porque estava casada há bastantes anos e não conseguia engravidar de maneira nenhuma. E então, como não podemos estar sempre felizes, ela chorava que só vendo.

 

Um dia, quando Mia já estava com dois aninhos, Tiago chega a Portugal sozinho, para não mais voltar. Ah!... E agora? E então? Pior ainda, sem dinheiro, sem emprego, sem nada. Além do mais, parecia que não estava a bater bem. Era natural, com uma mudança destas tão brusca, qualquer um fica a bater mal.

 

Enfim, toda a família - irmãos, tios, primos e a própria mãe – estava preocupada e apreensiva com a situação de Tiago, agora com quarenta e oito anos, de volta, sozinho e sem nada, absolutamente nada. E começaram a mobilizar-se para o ajudar. A ajuda veio de vários lados, mas Tiago não se adaptava a nada. Estava estranho, chateado e sem perspectiva de coisa nenhuma. Os irmãos começaram a ficar cada vez mais preocupados com a situação dele, que continuava a dar sinais de perturbação mental.

 

Já tinham decorrido uns meses desde que chegara a Portugal quando a família recebeu a visita de Nina com a pequena Mia. A chegada das duas apenas para férias dava, no entanto, à família, alguma esperança de um possível entendimento das suas vidas, já que ambos se gostavam tanto. Mas tal não aconteceu. Durante toda a sua estadia em Portugal e em casa da sogra, Nina fez questão absoluta de mostrar de forma decisiva, que não havia volta a dar e que a sua decisão estava tomada. Tiago não fazia mais parte da vida dela. Tiago não tinha nada para ela e era um vazio completo do qual ela abdicava pura e simplesmente. Ele alimentara uma secreta esperança que fora redondamente em vão. Assim, a família ficou ciente de que Nina não queria mais Tiago. Tudo o que ela via nele tinha-se desvanecido completamente. Tudo virara fumaça no ar. Não restava nada do amor que tinham um pelo outro. Nina tinha vindo exactamente para deixar a situação bem esclarecida, bem definida e para que ninguém tivesse a menor dúvida. E mais, uma vez que Tiago não tinha lá família, ela achava que ele não tinha motivos para voltar para os Estados Unidos. Queria que ele ficasse de vez em Portugal. De facto, toda a família dele estava em Portugal, tirando os filhos, cujas mulheres viviam em Miami. E dito isto, partiu com a filhinha rumo aos Estados Unidos onde, nesta altura, já vivia com a família.

 

Perante esta situação, Tiago estava completamente de rastos. A vida tinha perdido todo o sentido e não havia forças para organizar as ideias do que restava de si mesmo. Depois de muita luta os irmãos conseguiram levá-lo a um psiquiatra. Contrariado, Tiago foi e voltou para casa medicado, o que nada adiantou, porque os medicamentos ficaram metidos numa gaveta. O tempo foi passando e Tiago não melhorava, muito pelo contrário. Toda a família preocupadíssima com as suas atitudes inadequadas, uma vez mais se envidaram esforços para o levar a um psicólogo e mais uma vez ele reagiu mal. Em todo o caso, por insistência dos irmãos e primos, Tiago foi ao psicólogo. Não era um, mas uma psicóloga e ele logo começou a falar da psicóloga de modo nada abonatório. Mas isso já era de esperar.

 

O tempo foi passando e um dia Tiago sentiu-se mal, pelo que foi necessário levá-lo à urgência hospitalar. Exames e mais exames, já não saiu do hospital. No curto espaço de tempo em que ficou internado teve o  azar de contrair uma bactéria. Mas para além disso foi-lhe diagnosticado um tumor no cérebro. A situação que já era complicada, mais complicada ficou. Os médicos chamaram a família e comunicaram que o tumor precisava de ser removido o mais depressa possível, para lhe poderem tratar da infecção pulmonar causada pela bactéria que se estava a alastrar. Uma cena complicadíssima. Dada a gravidade do seu estado clínico foi ainda necessário induzi-lo em estado de coma.

 

Isto provocou uma verdadeira corrida ao hospital por parte de toda a família e amigos mais próximos, revezando-se sem descanso. E Tiago teve mesmo que ser operado de urgência, sendo que os médicos prepararam a família para a realidade nua e crua do problema, dizendo que não podiam garantir nada. Em todo o caso, a cirurgia correu bastante bem e agora era aguardar a reacção do paciente, a resposta do seu corpo a tudo o que a medicina aparentemente tinha podido fazer. Uns rezavam, outros iam à igreja, outros choravam e lamentavam… tudo o que é natural nestes casos. É normal as pessoas reagirem assim. Vieram as duas ex-mulheres da América, os dois filhos adolescentes e todos se condoíam pelo estado do pai, do amigo, do irmão, do filho, sobrinho, etc…

 

Passou uma semana em que o estado de saúde de Tiago andava ora para a frente, ora para trás, para finalmente sucumbir. Para grande pesar e tristeza de todos sem excepção, Tiago partira para não mais voltar. Casos destes acontecem todos os dias, a todas as horas, mas nós não sabemos, graças a deus. Até ao dia em que nos toca pela porta.

 

Estávamos no funeral, um funeral com gente que nunca mais acabava, porque é uma família muito, muito grande. Uns choravam, outros aceitavam. As duas mães dos filhos acompanharam o corpo até entrar no gavetão e ambas choravam, choravam, mas o desassossego da segunda era bem maior que o da primeira. A segunda era Nina, a mãe de Mia, que tinha ficado com a família materna em Miami por ser muito pequenina. Nina estava sozinha e chorava que dava dó. Chamava por ele, beijava o caixão, etc, etc, etc… e é nesta altura que começo a ouvir vozes que se salientam, comentando que Nina tinha muita culpa. Nina tinha “expulsado” Tiago e arruinado a vida dele. Como é que podia agora mostrar-se tão chorosa, tão infeliz, se tinha corrido com ele da maneira mais cruel possível!? Ela tinha dito que não queria mais nada com ele e não o queria na América porque, sem ela, não havia justificação para ele continuar lá. E porquê? Porque ficaria sozinho, sem família. Ela não o queria mais.

 

E os comentários continuavam, chamando a atenção para o facto de ela ter sido um “diabo” na vida dele.

 

Aparentemente era assim. Ela despachara-o, efectivamente, sem dó nem piedade. Tinha sido muito dura. Todos estavam cientes disso porque ela mesma, a própria, não mandara recado, tinha feito questão de deixar isso bem esclarecido. Não era segredo para ninguém.

 

Eu estava assistindo a tudo isto e não tinha razões para a defender ou para a atacar. Mas, de repente, pensei para comigo mesmo “e se ela não o tivesse mandado embora, se apenas se tivesse desligado dele e não se importasse com o facto de ele ficar sozinho ou não? Como é que teria sido? Não teria sido muito pior?”

 

Segundo os médicos, o tumor de Tiago era muito grande, teria no mínimo uns cinco anos. Foi o tempo de eles se conhecerem, se apaixonarem e terem uma filha. E o tumor lá. Só na hora da bomba rebentar é que ele foi “escorraçado”. A minha questão é: Nina foi um “anjo” bom ou um anjo mau? Ressalve-se que “anjo” é apenas um modo de falar. Então Nina foi do bem ou do mal? Pelas aparências, tudo leva crer que foi do mal. Mas, insisto, se ela não o tem mandado embora, ele tinha ficado lá sozinho com aquele problema e quem sabe, teria morrido sozinho, sem a família por perto, o que teria sido muito, mas muito pior para todos. 


Quando ela o manda embora não sabe, claro, não está consciente disso, mas está apenas cumprindo a sua missão, porque o está devolvendo ao seio familiar, para com eles viver os seus últimos dias de vida. Nem ela nem ninguém sabe disso, mas o cosmos sabe o que faz e nós somos apenas induzidos superiormente para cumprir as nossas missões, que é para isso que aqui estamos. Apunhalar Nina seria, à primeira vista, a coisa justa a fazer. Mas aí estaríamos apenas a considerar uma das faces da moeda. Se a virarmos, a história é outra e então compreenderemos muito melhor o destino dos homens, o destino da humanidade. 


As coisas não são o que parecem. O plano divino é verdadeiramente fabuloso. Mas acima de tudo é um grande mistério. E é essa a razão porque não podemos nem devemos julgar, pois o risco de errar é quase certo. A verdade é que a atitude aparentemente desumana de Nina poupou à família um desgosto ainda maior. Nina sem saber, fez a coisa certa, devolvendo-o à família. É assim. A moeda tem sempre duas faces.