Dois anos após o vinte e cinco de abril,
decidi deixar a RTP em Lisboa e pedir transferência para a primeira delegação
regional dos Açores em Ponta Delgada. Queria recomeçar a minha vida do zero e
achei que ir para S. Miguel era uma boa opção. Nunca tinha vivido numa ilha e
apeteceu-me fazer essa experiência. E como nunca lá tinha estado, nem conhecia
ninguém, era mesmo começar do zero, escolher os meus novos amigos, um por um e
tudo o mais. Pedi transferência e lá fui eu com a minha pouca bagagem atrás, incluindo
o meu piano, do qual nunca me separava.
Foi óptimo ter tomado aquela decisão. Era
uma lufada de ar fresco à minha volta. Mas havia uma coisa com que eu não
contava: a política. Tinham passado dois anos depois da revolução dos cravos e
os Açores estavam ainda muito "acesos", com um movimento que se
intitulava a FLA, força de libertação dos Açores. E, se bem que eu nunca
tivesse muito ou nada a ver com política, o grupo da FLA não pensou assim. Era
um grupo muito aguerrido e já tinham espancado violentamente dois colegas,
mesmo à porta da delegação, por serem de esquerda. E ainda que eu nunca me
tenha manifestado nem interessado por política, da direita é que eu não
era. Era, manifestamente, simpatizante da esquerda. Então os problemas começaram
logo a surgir.
Era Verão, um Verão lindo e quente, muito
mais quente do que o normal para as ilhas, cheio de sol e os dias grandes,
com muito calor e mais aquela humidade sempre presente, própria daquele
clima. Até parecia África. Que bem que aquilo me sabia. Eu saía da
delegação e como não tinha nada que fazer, levava documentos, toda a papelada
enfiada nas gavetas, com que os colegas não sabiam o que fazer e levava comigo
todos os dias uma pasta cheia para classificar. Sentava-me numa mesa de um dos
dois cafés existentes em Ponta Delgada, tomava uma bebida e calmamente ia
classificando os documentos, para no dia seguinte pôr no arquivo que
estava a levantar.
Mas o meu sossego depressa acabou, quando
os homens da FLA me encontraram, o que não foi difícil,e começaram a guerra
psicológica, a tentativa de me perturbarem e de me incutirem medo. Sabendo dos
antecedentes e das desordens que constantemente aprontavam, não podia dizer que
aquilo não me afectava, mas o que podia eu fazer?
Um dia, um dos empregados do café veio ter
comigo e disse-me que "aqueles senhores" eram do movimento da FLA e
não gostavam da minha presença nem no café, nem em lado nenhum. Perguntei
"porquê" e ele respondeu que, pelo facto de eu ser continental, não
era bem vinda e ainda mais porque trabalhava na televisão, etc, etc.
Ouvi atentamente tudo o que ele me disse,
sabendo perfeitamente que tinha sido recado, mas respondi que não estava a
fazer mal a ninguém e não tinha porque andar às ordens deles nem de quem quer
que fosse, porque era dona do meu nariz e sempre tinha feito o que me apetecia.
O meu propósito de estar ali e de fazer aquilo que queria havia de continuar.
Não retiraria nada e achava que eles não tinham motivo para se preocuparem com
a minha simples pessoa.
O João ouviu, afastou-se e logo foi na
direcção deles levar a mensagem. A coisa ficou feia. Nos dias seguintes a
história continuou. Eles faziam barulho, discutiam entre eles, levantavam muito
as vozes para intimidarem as pessoas, mas eu continuava mergulhada nos papeis,
quieta e calada, indiferente às provocações, pelo menos na aparência. Claro que
me enervava e muito, mas o que podia eu fazer?
Até que chegou o dia em que, depois de
muito segredarem em manifestos de bastante agitação, um deles se levantou e
veio na minha direcção. Pensei "agora é que a coisa se vai complicar a
sério!" Fingi que não percebi, até ele chegar bem perto de mim. Levantei a
cabeça dos papéis e ele perguntou se se podia sentar na minha mesa e conversar
um pouco comigo. Disse-lhe que sim, claro, pus os papéis de lado, ele pediu uma
bebida e começou a fazer perguntas. Perguntava e eu respondia. Não me custava
nada. Eram perguntas de apresentação e conhecimento, de âmbito geral... não
tive problemas.
Disse-lhe que tinha ido para os Açores por
razões meramente pessoais, não havendo nenhum motivo especialmente forte.
Falei-lhe um pouco da minha vida passada, da minha infância em África por causa
do meu pai ser militar de carreira e aí aconteceu uma coisa interessante. O pai
dele também era militar de carreira e da idade do meu. Começámos a falar
do percurso feito por eles no âmbito da vida militar e descobrimos que ambos
tinham estado nos mesmos sítios, Angola, Guiné, Cabo Verde, nalguns sítios até
na mesma época. E eu e o Vinicius, era o seu nome, já estávamos familiarizados
e já parecia que nos conhecíamos há um tempo. Percebi que tinha havido uma boa
empatia entre nós dois e a conversa fluiu com muita facilidade, enquanto rimos
de algumas coisas e a camaradagem foi-nos levando para um lugar comum muito
agradável. Os outros não estavam a gostar nada daquela amena confraternização.
Não era nada daquilo que eles pretendiam.
Tendo-se apercebido do mesmo que eu e,
mais, percebendo que a sua missão comigo estava a falhar redondamente, o
Vinicius abriu o jogo e disse o motivo de ter ido ter comigo. Falou dos
companheiros, do que o grupo se propunha fazer e que não me queriam, por isso o
mandaram falar comigo. Podia ter sido outro qualquer, mas por acaso (ou não),
foi a ele que mandaram. Portanto eu estava sob vigia, não havia dúvida nenhuma.
E repeti ao Vinicius tudo o que tinha dito ao João, o empregado do café. O
Vinicius disse que ia falar com eles e disse também que ia falar em mim ao
pai. Levantou-se e foi.
Houve confusão, claro, ele teve que fazer
das tripas coração para os acalmar e entretanto resolvi que estava na hora de
me retirar. Mas a coisa estava no ar e eu não estava a gostar do rumo delas.
Estava apreensiva.
No outro dia, lá fui eu para o café e lá
estavam eles. Passado pouco tempo lá veio o Vinicius falar comigo novamente.
Mas a agitação entre eles estava pior, muito pior. Curiosamente, eu já não
sentia medo e estava descontraída e até indiferente. Mas não era para estar,
porque eles estavam todos em desarmonia. Alguns tinham bebido demais da
conta e estavam incontroláveis. Outros tentavam segurá-los, falavam
muito alto e insultavam as pessoas que simplesmente fugiam com medo deles.
Enfim, era complicado. E eu estava na mira deles. Isso era certo, sem sombra de
dúvida. Parecia que queriam vir todos ter comigo e fazer-me mal. Só
podia.
Então, depois de os ter segurado, o
Vinicius veio ter comigo e sentou-se mais uma vez na minha mesa. Tinha falado
em mim ao pai e surpreendentemente o pai dele conhecia muito bem o meu pai.
Tinham estado em campanha no norte de Angola e tinham sido companheiros de
guerra, pelo que havia muita estima entre eles. Com base nisso, o pai do
Vinicius disse-lhe que se eu era filha do amigo dele, pela amizade que tinha
com o meu pai e em nome dos tempos e das dificuldades que passaram juntos, não
admitia que ninguém me tocasse nem me fizesse mal. Disse ao filho que se algum
deles me fizesse mal, ele mesmo trataria do assunto.
Eu nem queria acreditar no que estava a
ouvir. A minha protecção divina nunca me abandonava! E depois de me
transmitir a mensagem do pai, lá foi o Vinicius ter com os "amigos"
que provavelmente já estavam a par da decisão do pai do amigo e espumavam por
todos os lados. Pareciam animais sequiosos de sangue.
Ao longo dos anos eles continuaram a fazer
a revolução deles e muitas vezes me cruzava com eles, que tentavam sempre
armar confusão e agitar o ambiente. Mas lá estava sempre o Vinicius que sempre
me protegia e os segurava da onda má.
As coisas são o que têm que ser. O caminho
de cada um tem que ser percorrido e por onde quer que ele passe, temos que
acreditar que algo superior nos protege de todo e qualquer mal.
Os outros? Os que foram espancados mesmo
antes de eu lá ter chegado?
Não sei qual era o caminho deles, o que
equivale a dizer, não sei qual era o propósito deles. Talvez eles estivessem no
caminho dos homens da FLA! Talvez eles pertencessem ao mesmo plano, o que não
era o meu caso.