quinta-feira, 22 de maio de 2014

A mãe da Fátima - 47


A Fátima, minha parceira de sala de trabalho, naquele dia estava mais aluada do que nunca. Ela já o era de sua natureza, mas naquele dia estava pior. Eu conhecia-a muito bem e sabia que algo estava a preocupá-la e muito. Então, comecei a falar com ela para ver se ela se abria e deixava sair aquilo que tanto a perturbava. 

Na verdade, estava tão aflita que não foi difícil começar a falar. E o que é que se passava? A mãe, com quem ela e a irmã tinham uma relação difícil, estava numa casa de repouso onde não queria estar, mas tinha que estar, porque era viúva, precisava de certos cuidados e não tinha ninguém para tratar dela. Então, por vezes, tinha atitudes críticas, a fim de conseguir forçar as filhas a tirarem-na de lá. 

A Fátima, porém, afirmava que o lugar era óptimo e que a mãe estava segura e muito bem tratada. Mas nem por isso deixava de fazer chantagem emocional com ela. Por essa razão, tinha feito um telefonema para a filha, dizendo-lhe que tinha fugido de lá, que não ia voltar e que nem pensassem em procurá-la porque não a encontrariam, pois preferia morrer, para elas ficarem cheias de culpa, etc, etc... 

A Fátima até chorava, coitada. Lamentava-se, dizendo que a mãe era má, muito má, que não lhes dava descanso, que se preocupavam tanto com ela e ela não reconhecia isso. E eu ia ouvindo todos os desabafos da pobre da Fátima que se sentia deveras amargurada, sem saber o que fazer. Não queria ligar para a irmã que vivia em França para não a alarmar. E estava naquele desassossego, às voltas na sala, ora se sentava, ora ia até à janela, falando o que lhe ia na alma, enfim... 

A páginas tantas, deu-se um click na minha cabeça e achei que podia ajudá-la. Eu nem conhecia a senhora pessoalmente. Nunca a vira na vida. Nem fazia ideia do lar em que ela estava. Era coisa que desconhecia por completo. Mas comecei o meu trabalho de concentração, na tentativa de apanhar a energia dela. E aos poucos, o quadro foi clareando, clareando, e percebi que ela não andava nada à solta, pelo contrário, estava no lar, quietinha e bem tranquila. Poderia ser?! Continuei fazendo o meu trabalho e percebi que estava certa. Era mesmo. Não tinha dúvidas. 

Falei à Fátima e disse-lhe que a mãe estava no lar. Ela dizia que não. Afirmava com toda a convicção que não era possível. Que conhecia muito bem a mãe e sabia que ela estava a falar verdade quando lhe dita dito que estava desaparecida. Voltei a insistir dizendo-lhe que não era assim. Que ela estava a ser enganada pela mãe e que podia e devia ficar tranquila pois não havia motivo algum para se afligir. 

Ela reagiu mal. Talvez porque já estava muito enervada com a situação. Mas reagiu mal. Dizia que sentia que era verdade o que a mãe lhe tinha dito, etc. Então, com toda a minha paciência, sugeri-lhe apenas que ligasse para o centro do lar a saber da mãe. Mas ela não queria, tinha medo. Continuei a tranquilizá-la, insistindo para ela ligar, porque eu tinha a certeza de que ela estava lá. Finalmente ela concordou e fez o telefonema. Aguardou e lá veio a resposta. A mãe estava lá, não se passava nada de errado e não tinha saído. Tinha estado lá o tempo todo. 

Desligou o telefone, suspirando, num misto de alívio e de raiva. Até me agradeceu, mas não conseguiu disfarçar a insatisfação do facto de que era ela, como filha, que deveria ter sido capaz de ter aquele alcance, não eu, que não lhe era nada. 

Esta reacção dela, porém, não me surpreendeu em nada. Não raro, as pessoas sentem-se com "direitos" a percepções que não têm, nunca tiveram e talvez nunca venham a ter, só porque se trata de um ente querido, um membro do seu clã. Daí, a exigência da "exclusividade". 

Porém, esquecem um pormenor muito importante e que faz toda a diferença. O clã reclamado não lhes é exclusivo de maneira nenhuma. Somos todos um. Somos todos uma só família. É isso.



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