segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A Mári - 60



Mári é uma jovem Guineense de trinta e um anos, que está em Portugal há quatro. Viveu dois anos no Porto e agora está em Lisboa. 

Quando veio do Porto para Lisboa ficou provisoriamente em casa de uma irmã, mas logo providenciou a sua independência e encontrou um apartamento para alugar, nada mais, nada menos, no prédio onde vivo. 

Quando a vi pela primeira vez, na porta de entrada, percebi que estava de mudança. Depois, surpresa das surpresas, era precisamente para o meu patamar, um apartamento que estava constantemente a mudar de inquilinos, para onde só iam Africanos e Brasileiros, que depois não podiam pagar a renda e tinham que sair. 

Mas, como ia dizendo, quando a vi e percebi que ia para o meu andar, pensei “pelo menos agora vamos ter sossego durante algum tempo”. É que vi nela coisas que me fizeram acreditar nisso. Tinha bom aspecto, um ar diligente, enérgico e ao mesmo tempo calma, tranquila… segura, é esse o termo certo. E gostei. Achei-a decidida e gosto de gente assim. Senti imediatamente uma forte empatia com ela e a verdade, também, é que logo o destino se encarregou de armar situações que nos puseram lado a lado, frente a frente. 

Eu sabia que a última família que tinha estado na casa para onde ela ia, tinha levado tudo o que lhe pertencia e o que não lhe pertencia, de modo que, a pobre da Mári, que devia ter alugado um apartamento minimamente mobilado, não tinha nada, absolutamente nada. 

O prédio tem seis apartamentos por andar e no meu andar, damo-nos todos excepcionalmente bem, como uma verdadeira família. Assim, logo nos reunimos e acolhemos a mais recente vizinha, da melhor maneira possível, incluindo-a desde logo na nossa pequena “comunidade”. Todos gostaram muito dela e logo se disponibilizaram para a ajudar. 

Então, aproveitámos que uma vizinha estava em obras e sabendo que ia mudar os móveis, pedimos-lhe para os deixar para a Mári. Mais uma amiga, mais uma ajuda. Agora já havia mesa, cadeiras e um enorme móvel de parede, um misto de estante e louceiro, tudo em madeira. Eu tinha um divã que não usava, lá foi ele para a Mári, cheio de almofadas, umas maiores, outras mais pequenas, que bem que ele ficou. 

Depois, fomos todas aos nossos armários da cozinha e da sala e lá veio louça, tachos de cozinha, panelas, copos, pratos e tudo o mais. A casa que, inicialmente estava vazia, compunha-se com uma rapidez excepcional e com uma vantagem: aquilo não era da casa, era tudo dela. E por cada novidade que aparecia, lá íamos todas ver como ficava e era uma festa. 

Cortinados, que deram logo um ar acolhedor; umas plantas, que deram vida à sala e até livros para a estante apareceram. Realmente, quando queremos ser solidários, acontecem milagres. E no ar pairava um não sei quê de festa, de alegria por toda aquela partilha. Muito bom! Muito bom, mesmo. 

Por ser verão, começámos a ir à praia e lá chamávamos a Mári para ir connosco, até porque ela, coitada, não conhecia nada de Lisboa. Passeio aqui, passeio ali, a Mári lá se foi familiarizando com tudo e com todos. Estava deliciada com a recepção que tinha tido. Achava que aquilo não existia. Mas existiu e existe. 

Enfim, o tempo foi passando e a vida acontecendo. 

A Mári tinha muitos irmãos e irmãs. Como uma boa Guineense, não fugia à regra. O pai já tinha falecido e a mãe era uma senhora dos seus setenta e muitos anos e a Mári era a segunda mais nova. Depois dela, só havia um rapaz. A Mári tinha uma filha de dez anos, que tinha ficado aos cuidados da mãe, na Guiné-Bissau. A menina adorava a avó, mas é claro que queria vir para perto da mãe, com quem falava frequentemente. 

Um dia, de manhã muito cedo, a Mári ligou-me pelo telemóvel, a chorar, que queria vir ter comigo. A mãe tinha falecido. A Mári estava muito, muito triste e preocupadíssima, por causa da filha. Tinha lá irmãos e irmãs, mas a menina estava muito habituada à avó, com quem vivia. Bom, perante esta situação a Mári foi à Guiné para estar com a família e porque a filha precisava dela mais do que nunca. 

Resolvido que foi tudo por lá, regressou a Portugal, à sua nova vida. A menina ficou, agora por conta de uma das irmãs que também tinha uma filha da mesma idade. Menos mal. Mas a Mári sempre prometia à filha que tudo faria para a trazer para Portugal e ficar definitivamente com ela, o que era mais do que justo, mas muito complicado. 

E o tempo foi passando e as coisas normalizando. 

Um dia, eu estava em casa, sozinha, sentada no sofá da sala, vendo qualquer coisa na TV e de repente a minha atenção é atraída para a porta da rua. Olhei e vi um vulto negro, escuro, sem luz alguma. “Que estranho”! – pensei. E logo se foi. Soube de imediato que aquela energia era a falecida mãe da Mári. Claro que não era ela em pessoa, porque simplesmente já não estava neste mundo, mas era o seu espectro, por assim dizer. Não tinha dúvida nenhuma, só não conseguia entender porque estava ela ali. Comecei a tentar descodificar e ela estava colada à porta, de lado, vestida de negro e o rosto escondido pelo lenço da cabeça, porque era muçulmana. 

Levantei-me, dei umas voltas, sempre pensando no que aquilo poderia querer dizer, mas não sabia. Não tinha nenhuma luz. Alguma coisa ela queria, o quê, eu não imaginava. Ela estava envolta no escuro, mas isso não era de estranhar. Tinha falecido recentemente, portanto, ainda não havia luz, quero dizer, ainda estava muito ligada à matéria, ao mundo físico. Bom, não havia nada que eu pudesse fazer. Assunto encerrado e desliguei-me daquilo. 

Umas duas horas depois, a campainha da porta tocou. Fui abrir, era a Mári. De repente, lembrei-me do que tinha acontecido, mas não falei nada. Nem todas as pessoas entendem e eu não sabia qual seria a reacção dela e não a queria assustar, porque não havia necessidade. A Mári entrou, esteve um pouco comigo, disse que estava com saudades minhas, falou um pouco das coisas dela, do trabalho, da filha e aparentemente, tudo estava bem. Isto era o que ela dizia, mas alguma coisa parecia ficar por dizer - foi a sensação com que fiquei. Ela sabia que podia falar comigo tudo o que fosse preciso. Sabia que podia contar comigo, como eu com ela, por isso, não forcei nada. Quando ela entendesse, falaria. Ou também podia ser impressão minha. E até a história da mãe ali, podia ter sido da minha cabeça. Nada era dado como certo.  

Os dias passaram normalmente, com o trabalho, os afazeres de cada uma, a rotina, os convívios, mas a Mári começou a ser diferente. A sua alegria natural e expontânea começou a esbater-se, a esfumar-se a olhos vistos e todas percebíamos isso. Era como se fizesse um esforço para estar connosco, para nos agradar, para nos ser reconhecida e grata pela maneira como a tínhamos recebido e ajudado. Mas ela não precisava nada disso, era isso que eu pensava. Ela já sabia que o tínhamos feito de alma e coração e era evidente que nada queríamos em troca, apenas e somente, que ela se sentisse muito feliz. Mas alguma coisa atormentava a minha amiguinha, embora ela tentasse esconder o melhor que podia. 

Uma tarde, estando eu a descansar no sofá, novamente senti a presença de alguém e a mesma necessidade de olhar na direcção da porta da rua e lá estava ela, a falecida mãe da Mári, exactamente da mesma maneira. A mesma energia. Eu sabia que era ela. Não que alguma vez tivesse visto uma só foto e mesmo que tivesse visto, não era por aí, porque a figura não apresentava sequer o rosto, que estava de costas, mas é que a alma sabe disso, a alma sabe reconhecer aquilo que nunca os olhos viram. Era ela. Virada para a porta, como se quisesse entrar, mas se sentisse acanhada, receosa, vestida de negro, com o lenço e na maior escuridão. Tudo igual. “Que estranho(!)”, pensava eu. Mas continuava a não ter a menor ideia do que ela poderia querer de mim. O que se estaria a passar?! 

Uma coisa era certa, se aparecia era porque alguma coisa queria. Alguma coisa muito importante. Só um motivo muito forte pode levar uma entidade desencarnada a baixar de novo à terra, materializando a sua energia, porque isso é atrasar a sua sua ascenção aos mundos da luz e nenhum ser quer isso para si. Não é o percurso correcto nem desejado. 

No dia seguinte a Mári liga-me, porque já tinha ido a minha casa no dia anterior e não me tinha encontrado, o que era perfeitamente natural. Liga-me e diz-me que precisa de ter uma conversa comigo. Ah! – pensei – aquilo que anda escondido, mas que não quer, não pode mais calar. Disse-lhe que estaria em casa logo após o almoço, portanto, que aparecesse. 

Às duas e meia da tarde, a Mári apareceu. Bateu à porta, abri e ela entrou. E mais uma vez me calei em relação ao aparecimento da mãe. Com o seu ar aparentemente sereno, sentou-se olhando para mim com um sorriso que era só por fora, que não vinha de dentro, sendo evidente que parecia ser um caso de vida ou de morte. Aí, comecei a ficar pouco à vontade. O que seria? Precisaria de dinheiro? Não me parecia que fosse isso e os problemas graves das pessoas não passam por ser só de dinheiro!... Mas era uma hipótese. Seria alguma coisa com o namorado? Bom, com trinta e um anos e já no terceiro casamento, já devia saber resolver os problemas dela!? Já não sabia o que pensar, mas que estava a ficar ansiosa, estava. Então, a Mári toda constrangida e agoniada, muito receosa, com a voz quase a tremer, começou a falar. 

Posso dizer que, logo que ela começou a falar, me desdobrei em duas dimensões: a real e a não menos real, mas… a outra. Uma, que via e sentia o sofrimento daquela jovem mulher, que só Deus sabe o quanto estava a custar-lhe tudo aquilo, que não era pouca coisa, não, e na verdade, era de uma responsabilidade de todo o tamanho e que ela não tinha mais a quem pedir senão a mim, porque não tinha meios para resolver por si mesma. Impossível. E a outra dimensão, aquela que nunca sei onde é, onde fica... 

Mas eu só a ouvia, dando-lhe espaço para falar, para se justificar e aliviar a carga que trazia, para a fazer desabafar e descontrair, mas que em nada resolvia e nem pensar interrompê-la para ser eu a falar. 

E enquanto olhávamos uma para a outra, na expectativa de arrancar de mim um sim, claro, foi então que percebi o significado da estranha “visita”. Agora tudo fazia sentido. Ela precisava que eu assinasse um termo de responsabilidade e assumisse toda a burocracia necessária para poder trazer a filha para junto dela. A estranha visita era a mensagem antecipada, codificada. O pedido de uma mãe que, mesmo ausente, não deixa nunca no desamparo uma filha amada. Onde quer que o seu espírito se encontrasse nesse momento, veio correndo, descendo à terra, antecipando-se, fazendo o possível e o impossível, por amor. 

Apenas isso.

 

segunda-feira, 8 de junho de 2015

A Judite - 59


Naquela manhã eu tinha várias coisas a fazer e depois de sair de casa decidi que a primeira seria passar no sapateiro. Era difícil estacionar ali pelo que, àquela hora, talvez ainda não fosse muito problemático.

 

Quando lá cheguei, o sapateiro estava ao balcão e o pai, um senhor já velhote, mas que ainda dava alguma ajudinha ao filho, estava sentado como habitualmente, numa cadeira junto à máquina de costura industrial, entretido com qualquer coisa.

 

Aquilo era mais do que um sapateiro. Era uma verdadeira oficina, muito bem equipada, o que fazia com que tivessem sempre muitos clientes. Além do mais, trabalhavam muito bem e rápido. Até calçado por encomenda faziam, portanto, tinham que estar verdadeiramente bem equipados.

 

Disse “bom dia” e quando lá estava o pai, geralmente dizia “Namasté”, que sabia que ele gostava de ouvir e ficava contente, com um sorriso bonito, os olhos muito brilhantes e quase emocionado. Namasté é das palavras mais bonitas que conheço e cujo significado é: “O Deus (ou o eu) que há em mim, saúda o Deus (ou o eu) que há em ti, para promover a paz e a luz”…

 

E dito isto, o sapateiro filho que estava ao balcão, portanto, na minha frente, parou de martelar e calma e tranquilamente como era seu hábito e costume, disse “então, a sua colega”… e em fracções de segundo, sem que ele tivesse tido tempo de continuar a frase, percebi logo que não ia querer ouvir porque, por detrás da sua calma e tranquilidade, a minha intuição percebia que algo de muito feio se escondia e tudo o que eu não queria era saber.

 

Havia algum tempo que eu não andava propriamente no meu melhor. Tudo chegava até mim com um não sei quê de dor. Fugia, mas as coisas atravessavam a barreira da sensibilidade com uma fúria desgraçada. Quase não via televisão. Os telejornais davam comigo em doida. Os filmes, as séries e até as telenovelas me incomodavam. Constantemente, dava comigo a pensar “que parva que eu sou(!)”. Mas eu sempre sabia que aquilo era passageiro. A questão, era saber quanto tempo iria andar assim, feita parva, porque não há outro adjectivo que caracterize uma coisa desta natureza.

 

Mas deixemos isso… e como ele tinha acabado de dizer “então a sua colega”… eu sabia! Mas como? Porquê, se eu tinha chegado naquele preciso instante, absorvida apenas pelos meus pensamentos e era somente largar os sapatos e pouco mais!? 


Mas não… a tragédia estava feita, eu sabia. Mas ele só tinha dito “a sua colega”… podiam ser tantas, tantas outras… mas eu sabia qual era. Porquê, não o sabia, mas sabia qual era. Mal ele abriu a boca, eu vi-a na minha frente e dizia a mim mesma… eu não tenho empatia nenhuma com ela, nem nunca trabalhei com ela… mas tinha que ser ela. 


E ele continuava “a sua colega Judite”… pronto, estava instalada e reafirmada a tragédia. O meu estômago já tinha acabado de levar um soco de todo o tamanho e a minha cabeça gritava “socorro, tirem-me daqui”. O pânico tomava conta de mim e eu só queria fugir. Mas que raio, com tantas colegas que eu tinha, logo tinha que ser aquela e eu ainda nem tinha ouvido o desfecho da notícia!?... Contudo, sabia que era algo de terrível, de muito mau. Estava estampado na cara dele? - Perguntava a mim e respondia com toda a convicção - “Claro que não”. 


Ele disse por dizer; porque era a notícia do dia; mas, principalmente, porque, embora ela já lá não trabalhasse, ele sabia que tinha estado muitos anos na RTP e portanto, tínhamos sido colegas. Fomos, durante muitos anos, em sectores totalmente diferentes, mas fomos colegas da mesma empresa. Todavia, não raro, encontrávamo-nos nos elevadores de acesso ao parque de estacionamento, com os nossos filhos ainda pequenos. O discurso dela era sempre o mesmo: “Ouviu o que a professora disse? Tem que estudar mais, tem que se comportar bem; a mamã não gosta”… e eu pensava em como era diferente o meu. Os professores sempre me diziam que não havia nada a dizer sobre o Henrique e que esperavam que continuasse assim. Enfim, não se pode ter tudo.

 

E o meu sapateiro indiano, com quem muitas vezes já tinha conversado sobre a Índia e sobre a nossa terra – Gôa -, continuava:  “A sua colega Judite… o filho teve um acidente na piscina”… a cena passava na minha cabeça e dentro de mim havia um mal estar infernal. Mas porquê, se não era nada comigo? E por mais que racionalizasse a informação, a coisa não digeria. Não era nada comigo, mas eu tremia. 


Era certo que a Judite me era indiferente. Independentemente de tudo isso, não queria estar na pele dela. Mas quem quereria? Coitada! Coitada, coitada, coitada. “O filho teve um acidente na piscina e está a morrer”. Oh, não! Era o André, ligeiramente mais novo que o meu querido e amado filho. Filho único como o meu. Que situação!? Oh, não, que horror! Porque tinha eu decidido começar o dia ali? Mas eu iria saber a notícia, mais cedo ou mais tarde. De qualquer lado ela tinha que disparar. Era inevitável.

 

E no meio daquela agitação toda que se tinha instalado dentro de mim e a que eu não conseguia escapar, pensava em como era possível, antes de ele falar no nome dela e dizer o que tinha acontecido, eu já saber que o assunto se referia à Judite e tinha a ver com o filho? Como?!

 

Às vezes, o meu chefe RM e eu, começávamos os dois a falar em simultâneo sobre o mesmo assunto, e ficávamos a olhar um para o outro com a “coincidência” da situação que, naturalmente, como ele muito bem observava, não era coincidência nenhuma. Levávamos o tempo todo a trabalhar nos mesmos assuntos, que às vezes demoravam meses a resolver, mas se um carregava uma coisa, disparava no outro e vice-versa.

 

Agora, que tudo voltou ao normal e que consigo finalmente manter a devida distância do assunto “Judite”, realmente, não sei se o que mais me afectou foi o drama dela ou o facto de ter sido um perfeito receptor do meu amigo e sapateiro indiano. É claro que me condoí e muito com a dor dela. Mas também é verdade que na altura, fiquei tão confusa, que não me apercebi de que tinha ficado bastante assustada com o facto de ter recebido a notícia de forma astral. As duas coisas mexeram muito comigo. Foi tudo muito forte. 


E a dor dela foi minha. Não invalida o facto de sempre a ter achado uma chata, de ouvir de todos os lados os colegas dizerem que ela era insuportável, histérica, que só sabia gritar, mandar e desmandar, enfim… mas a dor dela foi minha durante bastante tempo. 


Apenas porque sou mãe, com muito amor.

 

segunda-feira, 4 de maio de 2015

As Túlipas - 58


As túlipas são lindas, mas aquelas eram mais do que isso. Eram belíssimas e muito especiais. Negras, brancas, amarelas, roxas....

Aquelas tinham sido especialmente encomendadas. Os bolbos vieram da Holanda directamente para o frigorífico da casa de Alcobaça. E foram para o frigorífico porque não era a altura de irem para a terra. Mas chegou o dia em que era necessário plantá-las e então escolheu-se cuidadosamente o lugar.

Na porta que dava para o jardim, frente à piscina, havia dois potes de barro, muito grandes e altos, que estavam vazios. Foi aí mesmo que decidimos plantá-las e ficámos a aguardar, com grande espectativa, o dia em que elas surgiriam à luz do sol.  

Antes disso, muito chuva viria, certamente, e muitas outras coisas também, acima de tudo, com que não contávamos. Seguramente... 

O tempo passou e o Álvaro queria tanto ver as suas túlipas, sobretudo porque não sabia de que cores eram. Era surpresa e eu também estava ansiosa por vê-las, pois elas ficariam lindamente naquele espaço e dariam outra vida ao terraço e ao jardim, demasiado verde, apesar de que o verde nunca é demais. 

Todas as semanas íamos a Alcobaça e todas as semanas espreitávamos as nossas túlipas, mas nem sinal delas. O Álvaro já achava que não íam dar em nada. Já eu, não. Porque não pegariam? Tinham todas as condições, pelo que era apenas uma questão de tempo, só isso. Ele ouvia-me e ficava na expectativa de que eu estivesse certa, porque ele adorava flores. Nunca antes tinha visto um homem gostar tanto de flores. Era admirável. 

Finalmente, chegou o dia em que fomos surpreendidos com os caules das benditas túlipas a proliferarem, despontando na terra. Estavam quase todas já de fora, umas mais adiantadas que outras, mas agora já não havia dúvidas, as que faltavam haveriam de chegar, tal como aquelas. E ficámos muito contentes, feito crianças.  

Semana a semana os caules cresciam e todas rebentaram, cada uma a seu tempo. Entretanto, a chuva parou e era necessário regá-las, para garantir o seu sucesso, por isso, todas as semanas iamos a Alcobaça, nem que fosse só para as regar e supervisionar, dado que os caules continuavam a crescer a olhos vistos. 

Mas então, o imprevisto aconteceu. O inusitado chegou e as voltas das nossas vidas foram trocadas, sem dó nem piedade. O homem põe e Deus dispõe. Assim, o Álvaro adoeceu. Teve que ser internado, submetido a uma intervenção cirúrgica, a outra e mais outra e em menos de uma semana foram, nada mais, nada menos que três cirurgias. 

Logo após a terceira, percebemos que não poderíamos ir a Alcobaça e era preciso regar as túlipas. O resto podia esperar, as túlipas não. Para o efeito e a seu pedido, telefonei para o único vizinho que tinha acesso ao jardim, para fazer o favor de regar as túlipas. Tudo acautelado. 

Fui para casa descansar, posto que as coisas tinham corrido bem com a cirurgia e esperava que no dia seguinte, o mais tardar no outro, ele tivesse alta e saísse do hospital. Mas nessa mesma madrugada o coração dele não resistiu às três cirurgias em tão pouco tempo e subitamente partiu, para não mais voltar. O terramoto estava instalado. 

À minha volta tudo tremia e ruía e eu não sabia, literalmente, onde pôr os pés. Da mesma maneira que tudo ruía eu caía, não conseguia estar de pé. Um mar de emoções avassaladoras tomava conta de mim e eu não assimilava o que me estava a acontecer. Era um pesadelo infernal. Todos os nossos sonhos se desfaziam. As nossas viagens sonhadas, os planos de vida em comum, tudo, tudo... e tudo... já era. 

Tinham decorrido três semanas em que eu só chorava. Não fazia outra coisa que não fosse chorar. Falava a chorar, comia a chorar... chorava, chorava. Mas foi preciso ir a Alcobaça uma última vez. Era estranho ir lá sem ele. Seria a última vez. E a Clara levou-me no carro dela, porque eu não tinha condições de fazer aquela viagem, nem de ir lá sozinha.  

Pelo caminho, fomos conversando e eu chorava. Aquele percurso, aquela estrada de que eu tanto gostava, parecia-me um inferno, não fazia mais sentido nem queria vê-la mais. Lá fui dando à Clara as indicações, até que chegámos. Abri o portão para o carro entrar e chorava. Olhei para a figueira que todas as vezes saciava a minha gula com os deliciosos figos com que sempre me presenteava e percebi que não voltaria a tê-los. Até isso acabava ali. Claro que o supermercado tinha figos, mas não eram seguramente os mesmos, nem nada que se parecesse. Aqueles eram únicos. E eram mesmo. 

Entrámos em casa e tudo aquilo era estranho para mim. Nada mais era igual. Eu gostava tanto daquela casa... gostava, agora menosprezava. Não queria estar ali. Olhei lá para fora, em três semanas e mais uma em que ele esteve internado, a relva tinha crescido e a falta de manutenção do jardim era notória, bem como a sujidade da água da piscina, etc... 

Enfim, tal como ele, eu já não pertencia ali. Aquilo que até há bem pouco tempo eu tinha como o meu paraíso, era agora um lugar vazio, que já pertencia ao passado e que me fazia sentir mais mal do que já estava. Não percebia porquê, mas era assim que eu sentia. Tudo tinha mudado e o pior é que não havia nada a fazer, nada que pudesse reverter a situação. Era definitivo. 

Passei pela garagem e abri a porta que dava acesso ao terraço do jardim e que ficava em linha de vista com a porta que dava para a piscina... e parei. As túlipas. As túlipas... lindas! Esplendorosas! Elas estavam ali à espera dele, mas ele tinha partido sem ter tido tempo de vê-las. E ele queria tanto!... O choro parou momentâneamente. Perante tanta beleza, algo travou e mudou a minha emoção. A energia dele estava ali. Eu podia sentir. Era quase visível, quase palpável.  

Os potes tinham ficado lindos, adornados pelas túlipas de cores variadas. Elas ali estavam, imponentes, cheias de vitalidade, embora evidenciando rigorosamente a sua bela fragilidade, pela doçura das suas formas, do desenho das pétalas,  da graciosidade de toda a frescura e até das tonalidades fortes, mas cálidas... 

De pé, bem erguidas à luz, enraizadas na terra, davam a sensação de homenagear algo ou alguém, ao mesmo tempo que pareciam estar gratas à mão que as tinha dado à terra para que lhes desse vida. Vida, era isso, elas homenageavam e estavam agradecidas à vida, ainda que essa vida tivesse partido. 

Eu sentia as lágrimas nos meus olhos a rolar pela face. A pele do meu rosto já estava massacrada e cansada desse rio que se acostumara a invadi-la sem descanso. Mas, naquele momento eu não me importava de sentir o peso delas. Essas eram quase de felicidade, porque ali havia algo de mágico, algo que o tocava a "ele". 

Ali, naquele espaço, no éter ou onde quer que fosse, estávamos os dois ligados de uma forma misteriosa, através da magia libertada pelas túlipas, que se recusava a ficar presa e o manifestava abertamente, através de uma pétala que se tinha evadido. 

Sim, havia uma, uma túlipa branca... talvez um pássaro ali tivesse pousado, ou não, mas uma pétala de uma túlipa branca como a neve, tinha ido parar ao chão, a menos de um metro de distância do pote onde estava. 

E aquilo que eu via da garagem, tão bem enquadrado pela ombreira da porta aberta, bem podia ser um quadro, uma pintura. Um misto de Van Gogh e Delacroix ou até mesmo Renoir, pela luz e pela côr. Mas ali, era ao natural, genuinamente natural, aquela bela combinação da natureza com a côr e a luz. A luz!... 

O amor corria ali ao de leve, com a paz a seu lado, bebendo tranquilidade e respirando harmonia infinita, transportada pelo berço da natureza até à eternidade. 

Era uma coisa linda de se ver, de se sentir, aliás, era uma coisa única que apelava a todos os sentidos extrasensoriais. Todas as campainhas tocavam, dando alarme de algo belo e único que jamais se repetiria e que além de mim, ninguém, mas ninguém mesmo, poderia testemunhar. Um exclusivo que a minha alma jamais dispensaria. 

Não havia nada naquela casa que eu quisesse, a não ser ele. Nem mobília, nem objectos me seduziam ou valiam de alguma coisa. Apenas ele era importante.  

Mas de repente, corri para os potes, meti as mãos bem fundo na terra e arranquei os bolbos com o cuidado necessário e o propósito de os não danificar em hipótese alguma e um por um, guardei-os num saco para voltar a pô-los na terra, bem perto de mim. Aquele era o único e real valor que dali me interessava. 

Voltaria a pô-las em outra terra para voltarem a florir à luz da vida. 

Só uma pétala ficou caída.

 

terça-feira, 17 de março de 2015

O roubo das jóias - 57


As histórias da minha vida não fazem de mim a melhor das criaturas, nem tão pouco uma heroína. Esta, muito particularmente, serve de exemplo e talvez nem a devesse escrever. Mas essa não seria eu já que, a primeira pessoa a quem devo fidelidade, é a mim mesma.  

Uma tia minha, octogenária, tinha muito ouro que sempre foi comprando em Portugal ou por esse mundo fora, nas viagens que fazia. Caixas e mais caixas de tudo: anéis, brincos, colares, gargantilhas, enfim, muita coisa. 

Há uns anos atrás, tive umas dificuldades financeiras e a minha cabeça começou a trabalhar no sentido de encontrar uma solução para o problema. Passei dias, semanas, a pensar, mas no fim, nada me parecia viável. 

Eu acredito que o ser humano nasce com o bem e o mal, o que todos têm em medidas diferentes, porque ninguém é igual a ninguém. Começa-se a crescer e começa-se assim a definir a quantidade ou tendência para o bem e para o mal, porque não há ninguém que seja cem por cento bom, assim como não há ninguém que seja cem por cento mau. A vida que levamos e as experiências que vivemos levam-nos e conduzem-nos a bons ou maus caminhos e pronto. Por isso, muitas vezes somos surpreendidos com atitudes de outras pessoas com que realmente não contávamos, mas esquecemo-nos de que nós também estamos sujeitos a cair nessas teias. 

Mas eu tinha um problema para resolver ou achava que tinha. O certo é que um dinheiro extra dava jeito naquela altura e aquilo não me saía da cabeça. E durante bastante tempo, todos os dias pensava nisso, à procura de um milagre que não acontecia, é claro, até que um dia, estando em casa da minha tia, mais propriamente no quarto dela, que estava a escolher as jóias que usaria naquela noite para ir à ópera, me dei conta da quantidade de ouro que ela possuía e de repente bateu-me uma ideia. Se eu levasse alguns anéis e mais umas coisas, ela nem daria por isso porque, com tanta coisa, era quase impossível perceber. 

Até hoje, não sei como aquela ideia maluca me veio. Nunca tinha feito nada igual nem parecido. Considerava-me uma pessoa “boa”, correcta, justa e honesta… mas são muitos predicados para uma só pessoa. Mas era assim que todos devíamos ser(!). 

E a minha cabeça que, tinha andado semanas infrutíferas a pensar em como arranjar dinheiro, de repente, viu-se a braços com uma solução especialmente embaraçosa - roubar - sim, porque seria um roubo. Na minha cabeça, inventava mil e uma desculpas e razões para o fazer, mas era apenas para me justificar e não me sentir uma pessoa tão vil, só isso. E a mesma ideia que uns dias me parecia inofensiva, outros dias parecia-me abominável. 

Os dias passavam e a minha cabeça trabalhava, trabalhava sem descanso. O facto é que era uma solução viável. Pelo menos eu assim achava e todos os dias ensaiava a cena, tornando-a mais verídica para a conseguir concretizar. Fui amaciando a ideia, visualizando, encenando, preparando o espírito para uma coisa que nunca na minha vida tinha feito, pensando que para tudo havia uma primeira vez; não, nem tudo tem que ter uma primeira vez. Mas, digamos que, naquela altura, me dava jeito pensar assim.  

E o tempo passando e eu me torturando, dando cabo da minha cabeça a inventar as mil e uma maneiras de me sair bem daquela história, com o problema resolvido e sem ninguém dar por nada porque, ninguém, jamais, saberia desta história. Não me achava esperta por isso. Tinha apenas que me desenrascar e de entre todas as hipóteses, aquela ainda era a que me parecia mais “praticável”, por assim dizer. Ela não precisava nada daquilo tudo e a mim dava-me imenso jeito, só isso. 

O tempo foi passando, passando, até que um dia, a minha cabeça voltou a ser a minha cabeça, porque aquela outra não era a minha, com certeza. Aquela não era eu e nisso estava certíssima, porque eu jamais faria uma coisa daquelas e no final das contas, vendo bem, eu nem precisava nada de um dinheiro extra. Tinha tudo o que precisava e o que não tinha não precisava. Não havia mais o que pensar. Pedi desculpa a mim mesma, conscientemente me perdoei a mim mesma e senti vergonha de ter pensado numa coisa daquelas. Eu não podia. Se tivesse cometido aquele deslize, nunca mais seria a mesma. Era impossível fazer semelhante coisa. Não é da minha índole nem faz parte dos meus princípios; não tem nada que ver comigo. Eu não sou assim. E respirei aliviada, ainda sem saber muito bem como me tinha passado pela cabeça semelhante coisa e ainda que ninguém, a não ser eu mesma, soubesse daquela treta. E a história deveria terminar aqui. Mas não termina. 

Oito dias depois, exactamente oito dias depois, uma senhora estranha, da maneira mais idiota possível, entrou lá em casa, levou boa parte das jóias e foi-se. Não havia muito o que explicar. Ao que parece, enquanto a minha tia estava na casa de banho a tomar o seu duche e a fazer a sua higiene diária uma desconhecida qualquer tocou à campaínha e quando a empregada foi atender ela disse que ia fazer uma visita à senhora. A empregada pediu-lhe que aguardasse na sala de estar, tendo-se retirado para a cozinha. Com a passagem livre, foi direita ao quarto, levou o que pode e pôs-se a andar sem a empregada dar por isso. E a minha tia, infeliz, telefonou-nos, dizendo: fui roubada.

A história também podia terminar aqui. Mas ainda não vai terminar. 

As casas são assaltadas – acontece. A minha tia ficou sem as suas queridas jóias, no entanto e estranhamente, nem ficou tão abalada quanto eu supunha. Mas eu pensava: aquele roubo foi planeado por mim! Porque não aconteceu antes? Antes, enquanto eu decidia sobre o assunto? Podia ter sido; mas não. Aconteceu exactamente quando eu decidi que não faria semelhante coisa. Coincidência! 

Mas coincidências não existem, isto é, para além da coincidência, as coisas têm uma razão de ser. O roubo só aconteceu depois, “depois” de eu ter decidido que não o faria. Se tivesse acontecido uma semana antes, na altura em que eu ainda estava a decidir o que fazer, o meu livre arbítrio não teria sido posto em causa e a minha escolha não teria mérito algum. 

Pois é. Estava escrito que ela ficaria sem as jóias, por razões que se prendem a ela e só a ela dizem respeito. A vida pôs-me à prova, só isso. Deu-me a mim a oportunidade de escolha. A escolha, claro está, não se trata da posse das jóias, mas do acto em si: um roubo. A vida deu-me uma lição. Disse-me para roubar as jóias. Eu disse que não e ela enviou outra pessoa que aceitou a tarefa. 

E é aqui neste ponto que se define o ser humano, a qualidade da alma, a delicadeza do espírito. Todos somos chamados e postos à prova. Cabe a nós escolher o caminho que queremos. 

Agora sim, a história chegou ao fim.

 

domingo, 15 de fevereiro de 2015

O casamento - 56


Tinha chegado a hora da boda e todos estavam sentados à mesa enquanto iam sendo servidos. Havia uma sala com muitas mesas, para os convidados e outra com uma única mesa, muito grande, para os noivos, pais, padrinhos e os mais idosos de ambas as famílias. E tudo estava a correr na perfeição, quando um acontecimento inédito falou mais alto, elevando o nível vibratório da energia daquele evento a uma frequência ímpar.

 

A Mariana tinha tocado um tango ao som do seu violoncelo, acompanhada de uma amiguinha que tocou violino. Foi um momento lindo e relaxante. O dia estava solarengo, com uma temperatura generosamente amena, podendo os convidados estar lá dentro ou ao ar livre, nos jardins do hotel. Alguns sentavam-se por ali, na esplanada, nos espaços verdes, à volta da piscina, enquanto as máquinas fotográficas disparavam constantemente para registar e filmar um momento especial. As crianças estavam eufóricas e a Sofia sempre convencida de que o casamento era dela, tanto que, na hora de entregar as alianças e as flores, era visível o seu empenho, compenetradíssima da importância da sua pessoa naquela festa que, para ela, era só dela e dos pais. Desde que começara a ouvir falar do casamento e a perceber que teria a sua participação, desde a compra do vestido e dos sapatinhos, entendeu que não era um acontecimento qualquer. Na sua curta existência nunca tinha sido tão cuidadosamente preparada para tudo o que devia fazer. E estava certíssima porque, efectivamente, ela seria a peça chave desta história.

 

O convívio decorria sensacionalmente bem porque, de modo muito agradável e afável, todos conversavam uns com os outros e todos se davam a conhecer uns aos outros de uma forma muito natural, posto que, nem todos se conheciam. A Sofia ficou a conhecer mais primos para juntar aos que já tinha e todos ficaram a conhecer os que ainda não conheciam porque, na verdade, não havia uma única pessoa que conhecesse toda a gente. Assim, as conversas despontavam naturalmente, tornando o ambiente cada vez mais íntimo, familiar e acolhedor.

 

Em plena marginal, os carros passavam e enquanto o jovem casal posava para as fotos, as pessoas que iam nos carros abriam as janelas para acenar e desejar aos noivos votos de muitas felicidades, a que eles retribuíam com um gesto de agradecimento.

 

As crianças de várias idades, todas vestidinhas de branco com laços cor-de-rosa, brincavam com as flores, abraçavam-se, faziam rodas enquanto cantavam, corriam e sorriam de felicidade, parecendo anjos. A alegria estava no ar, estampada no rosto de todos e não era uma falsa alegria. Percebia-se que era uma alegria espontânea, que vinha de dentro, que emanava luz. É que, não era só de um casamento que esta ocasião se tratava. Era um grande encontro. Um encontro muito especial. Um encontro de duas grandes famílas, de almas e espíritos, que tornava uma simples união, num verdadeiro e grande encontro de corações verdadeiramente felizes e que, pelo menos naquele dia, naquele momento, falavam a mesma linguagem, partilhavam o mesmo sentimento, compartilhavam uma mesma vida numa única experiência, que a seu tempo iriam presenciar e da qual todos fariam parte integrante.

 

E ainda há quem não acredite no destino... quem ache que isto é tudo obra do acaso! Realmente, por vezes, a vida mais se parece com peças de um puzzle que andam todas por aí a passear, ao Deus dará, desnorteadas, sem qualquer sentido. Mas quando menos esperamos, parece que alguém se lembra de agrupá-las de modo a encaixarem no sítio certo, para então, começarem a fazer sentido, caso contrário, continuarão sozinhas, cada uma por si só, sem fazerem parte de nada, fora de contesto, desligadas do todo.

 

O cosmos cuida de tudo. O universo é a mão grande que se encarrega de dar forma, estrutura e sentido à vida. O cosmos é a "ordem" divina, o cérebro da inteligência máxima que tudo rege. E aquele casamento que, aparentemente, começava ali, já estava traçado lá muito atrás, o que equivale a dizer que estava escrito nos registos akáshicos, como tudo, aliás.

 

Enquanto se saboreava uma agradável ementa, corria uma conversa aqui, uma conversa ali, uma troca de ideias aqui, outra ali, um cumprimento, uma graça, uma piada de bom tom, enfim… foi então que um cruzamento de perguntas e respostas, recuando quarenta anos, relembrou tempos de tropa em Angola. Meu ex-marido, pai do noivo, comentou qualquer coisa relativamente a essa altura da sua vida. No mesmo instante, o tio da noiva, irmão do falecido pai da minha norinha querida, comentou que também tinha estado em Angola na mesma época. A conversa continuou acertando o paradeiro de ambos no mesmo tempo, sítio, lugar, companhia, por aí fora e só por isso, já estavam os dois animadíssimos, quando começaram a descrever um ao outro exactamente o que faziam e mais precisamente quem era quem. Foi aí que se retrataram. Um perguntou ao outro se ele era fulano tal, ao que o outro respondeu com a mesma pergunta, se ele era fulano assim, assim. Em quarenta anos uma pessoa muda completamente. Quarenta anos podem tornar as pessoas irreconhecíveis.

 

Para quem foi testemunha deste encontro, o rosto de ambos transfigurara-se por completo. O sangue tinha subido num pico de adrenalina inconcebível. Os olhos dos dois adquiriram subitamente um brilho incomparável, parecendo saltarem das órbitas, ao mesmo tempo que se levantavam em simultâneo, de lados opostos da mesa, um em direcção ao outro, com uma sofreguidão e tanto, de braços estendidos na direcção um do outro, até que chegaram um ao pé do outro e se abraçaram com uma efusão e um entusiasmo a que ninguém conseguiria ficar indiferente. Dois irmãos perdidos no tempo.

 

Por um longo momento o silêncio era aquele momento único que não era só de dois amigos, era de pais casando os filhos; era de um passado que já estava cruzado, embora sem consciência disso; era do presente que tudo trazia à tona e acabava de selar aquele momento, que era um registo ímpar nas suas vidas e nas vidas de todos que ali estavam. E enquanto eu pensava que a vida é uma coisa maravilhosa, cheia de surpresas inesperadas, a tia Ana Maria - a matriarca da família da minha querida norinha - dizia baixinho, que aquilo era obra do Armando, o falecido pai da noiva - ali representado pelo irmão -, lá em cima, unindo as duas famílias. Ouvi e pensei - as duas famílias já estavam unidas há quarenta anos atrás. Não o sabiam, mas já estavam. O não saber é apenas um pormenor que faz parte da condição humana, por isso, unidas já estavam. Mas quem poderia saber?  

 

Na verdade, ninguém poderia dizer que eles já eram uma só família porque, uma criança faria com que, só quarenta anos depois, um, fosse seu avô e outro, tio avô.

 

O tempo, onde tudo acontece, tem três faces: passado, presente e futuro. Mas, verdadeiramente, ele é um só.