terça-feira, 29 de dezembro de 2009

A minha amiga Ana - 13


A Ana era minha amiga. Uma grande amiga e uma mulher incrível. Tinha recomeçado a vida rigorosamente do zero pela terceira vez. Não é para qualquer pessoa. Uma vontade de ferro e uma capacidade de sobrevivência a toda a prova levavam-na a ultrapassar as dificuldades de uma maneira prodigiosa. Para além da nossa amizade eu tinha uma admiração enorme por essa criatura espantosa, que resistia a tudo heroicamente. Ela já não está entre nós, mas a memória dos momentos que passámos juntas e dos bocados em que tanto nos divertimos, continuam comigo. Não há como esquecer. 

Conhecemo-nos através dos nossos filhos, que estudaram juntos e eram muito amigos. Ela era Indiana e esse foi o nosso ponto de partida. Uma pessoa divertida, bem disposta, que adorava presentear e mimar os outros com o seu melhor. 

Possuidora de uma fisionomia fina, mas robusta e firme e por tudo o que já tinha passado na vida eu achava que ela tinha uma saúde de ferro. Porém, um dia, ficou doente. Foi uma coisa súbita. Telefonou-me do Hospital a dar a notícia de que tinha sido internada de urgência na noite anterior e que no dia seguinte ia ser submetida a uma intervenção cirúrgica. Fui completamente apanhada de surpresa. Ela estava apreensiva mas relativamente calma. A minha missão era tranquilizá-la, dar-lhe força e prestar-lhe toda a solidariedade. 

Foi operada, recuperou bastante bem e regressou a casa, onde ficou ainda algum tempo em recuperação. Continuou a recuperar-se espantosamente bem e logo voltou à sua vida de Professora. Parecia que estava tudo sanado e o mau bocado tinha passado. A Ana estava bem, tinha perdido muito peso, que aliás tinha em excesso, e agora estava na medida certa. 

O tempo foi passando, mas chegou um dia em que tudo voltou atrás. Vieram as dores que não lhe davam tréguas. Exames e mais exames e não havia resultados bons. O sofrimento dela aumentava de dia para dia e a medicação idem. Veio a químio e tudo cada vez pior. Eu não pude dar-lhe a atenção que ela merecia, é verdade. Tudo isto coincidiu com o internamento do meu falecido pai e não tive como me desdobrar. Telefonava, mas nem sempre ela atendia, porque passava a maior parte do tempo sedada, a fim de sobreviver às dores que eram muito fortes. Consegui ir vê-la duas vezes, depois, um pouco cobardemente, desisti. Todos os dias arranjava desculpas para não ir vê-la, embora a minha preocupação fosse constante. Fugia dos telefonemas que ela já nem atendia, dado o estado de debilidade em que se encontrava e a imagem de destruição que aparentava era verdadeiramente constrangedora. Eu sabia que devia ir lá mas, gradualmente, também as minhas forças iam abaixo. Ela estava a morrer e eu estava arrasada. Sentia-me mal, muito mal. Era como se a tivesse abandonado nos piores momentos da vida dela. Era certo que eu não podia fazer nada, mas devia ter estado mais ao lado dela e tinha a certeza de que essa minha falha tinha deixado mágoa nela, o que muito me apoquentava. 

O tempo foi passando e eu sentia que estava a esgotar-se a minha oportunidade de resgatar esse sentimento de culpa que tanto peso tinha em mim, além de que eu devia isso a ela. Esse nosso último encontro estava por um fio, tal qual a sua vida. 

Nos poucos dias que se seguiram fui interiorizando a ideia de que precisava de ir lá, custasse o que custasse. Cada dia eu assimilava e digeria mais um pouco essa necessidade, até que chegou um Sábado e eu percebi que não podia adiar mais. A intuição dizia-me que se não fosse naquele dia nunca mais a veria. 

Ao fim da tarde telefonei. O filho mais novo que vivia com ela atendeu. Perguntei como é que a mãe estava e ele respondeu que agora mais tranquila. Fiquei a pensar o que é que ele quereria dizer com "agora estava mais tranquila". Explicou que estava praticamente o tempo todo a descansar e que já não estavam a receber visitas. Deu um nó na minha garganta. Eu queria vê-la, disse-lhe eu, envergonhada. Ah, sim, claro, respondeu ele, pode vir quando quiser. Aquela resposta era um sinal de que realmente só faltava eu. Ela estava à minha espera. 

Isto, descrito assim, parece banal. Mas são coisas da alma, coisas que só a alma entende sem poder explicar, porque as palavras não conseguem descrever. E a linguagem da alma é tão sublime como soberana. Agora eu sabia que algo especial estava no meu caminho. 

Quando a vi, fiquei muito mal, por ela e por mim. Mas isso eu já sabia que ia acontecer, só que era muito pior do que eu imaginara. Eu achava que já tinha perdido a minha amiga há muito tempo, mas não era verdade. Naquele momento pude perceber que o que restava dela estava tão inteiro como antes, não naquele corpo, que já não era nada, mas no espírito, cuja presença era imponente. E senti que só faltava a minha presença. Pode parecer pretensão minha uma coisa destas, mas é a linguagem da alma. O espírito dela pairava naquele quarto, do qual ela tanto gostava. Afaguei-lhe as mãos inertes, sem vida, completamente geladas e despedi-me de coração aberto. Queria ficar ali até partir definitivamente, mas ao mesmo tempo achei que não tinha esse direito, já que antes não tinha estado ao seu lado. 

Saí e fui para casa. Sentia uma dor funda que não tinha como resolver. O facto é que tinha estado em falta, indesculpavelmente em falta e continuava a estar, sem saber exactamente o que fazer para apaziguar a minha dor. 

Pouco depois, chegou uma amiga minha que a todo o custo queria ir ao Centro Comercial. Disse-lhe que nem pensasse numa coisa dessas que eu não estava em condições. Ela percebeu que eu estava realmente transtornada, mas achou que me ia fazer bem. Eu não queria de jeito nenhum, mas ela tanto fez e tanto disse, que acabou por me arrancar da prostração em que estava e lá fomos. 

Não via nada nem ninguém. Estava péssima. Fui com ela a uma loja, mas era confusão de mais para a minha cabeça. Tinha saído de casa da Ana por volta das 19,30. Naquele momento, rondavam as 21,00 e pouco. Eu só queria ir-me embora. Apetecia-me correr para casa da Ana e ficar ali perto dela, implorando-lhe que me perdoasse, porque eu me sentia muito mal. Eu achava que ela tinha prolongado aquele horrível sofrimento só para não partir sem estar comigo uma última vez. No seu íntimo ela tinha consciência de que já se despedira de todos e para se despedir do mundo de vez, faltava eu. Quanto remorso eu sentia e a que tremenda humilhação eu estava a ser submetida! E sentia que ela estava a ir-se de vez e me chamava para perto dela e eu não estava lá. 

Foi horrível! A minha cabeça parecia que explodia de tanta tensão. Por fim, disse à minha amiga que não aguentava mais e queria ir para casa descansar. Ela compreendeu e regressámos a casa. Assim que saí daquele inferno do centro comercial, comecei a sentir-me melhor. Quando cheguei a casa deitei-me e ela ficou ali um pouco comigo a tentar distrair-me, experimentando as coisas que tinha comprado e pedindo-me opiniões, como costumava fazer. Aos poucos fui baixando, aterrando e voltando à minha serenidade, até que ela se foi embora. 

Preparei-me para me deitar e quando ia baixar os estores, reparei que havia muita luz em casa da Ana. O filho mais velho também lá estava e os dois estavam ao telemóvel, em varandas diferentes. Achei estranho. Senti uma agitação no ar... mas era hora de dormir e apesar de estar mais calma, estava exausta. Poucos instantes antes de apagar as luzes o telemóvel tocou. Olhei para o relógio que marcava meia-noite. Não fiquei assustada, mas o meu sensor deu alerta e acho mesmo que não precisava ter atendido o telefone, mas atendi, claro. Era o filho mais novo comunicando-me que a mãe partira. Perguntei a que horas tinha sido, respondeu que por volta das 21,30, a hora em que eu estava no Centro Comercial e percebi que ela estava a ir de vez, quando me senti muito, muito mal. Não estava enganada. 

Agora tinha realmente a certeza de que ela sempre tinha estado à minha espera e eu não tinha estado lá. Senti que, de certa forma, tinha concorrido para prolongar o sofrimento dela. Por outro lado, tinha que pensar que fora uma escolha dela, a parte que nos cabe no livre arbítrio. Aquela mulher tinha sido corajosa a vida inteira, até mesmo na hora de morrer. Não partiu sem se despedir da amiga, fiel até ao fim. Atolada numa verdadeira amálgama de sentimentos, por um lado sentia um certo alívio pela partida dela, que pusera fim ao seu sofrimento e ainda porque a amizade dela tinha sido um grande presente para mim. Mas isso não me consolava o suficiente. Não estava certa desse merecimento. Sabia que não tinha cumprido por inteiro a minha missão para com ela. Ela, porém, revelara a sua fiel amizade comigo, até à eternidade, para minha grande humilhação. Era um prémio e ao mesmo tempo uma punição. 

Na história das nossas vidas, das pessoas e coisas que tiveram especial importância, nem sempre somos os heróis. Também não foi propriamente uma derrota, mas foi uma verdadeira lição de vida ou no caso, de morte, que não esquecerei nunca e a memória da minha amiga para sempre será preservada com o maior carinho e muito amor.

 

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A blusa azul - 12


Estávamos no começo da Primavera. A toda lua cheia aproximava-se a grande velocidade. As minhas dúvidas, os meus receios, encaminhavam-se devagarinho, resistindo, teimando em desabrochar, como os jardins severos dessa Primavera de esperanças, tão fora de estação e com que eu tanto sonhava.

O mundo das minhas fantasias avolumava-se de tal forma que por vezes necessitava de refúgio, obrigando o espírito a embrenhar-se pelo seio de uma verde e densa floresta, onde árvores frondosas abanavam seus ramos de uma flexibilidade invejável, entregando-se à aragem fresca e subtil, à melodia do silêncio, ao ritmo natural, suave e simples da vida perfumada pelo doce aroma dos frutos maduros e maliciosamente expostos numa evidente tentação, como as amoras silvestres cheias de espinhos, de perigos irresistíveis, prenúncio de mudança ante a expectativa de um Verão que se fazia anunciar quente e que, uma vez saboreado até à última gota, adormeceria estonteado de felicidade, acabando por se perder como que por encanto, esfumado no horizonte, soprado por uma brisa leve e inconsequente, como um eco, através de um túnel feito de um som delicioso, que tanto exaltava o meu sempre sequioso "império de todos os sentidos". 

 

Eu estava em S. Paulo, em plena feira hippy, que os meus sobrinhos e o meu filho, nessa altura ainda crianças, insistiram para que os levasse lá. A ideia não me desagradou. Passeámos, petiscámos, divertimo-nos e a certa altura vi uma vendedora que tinha umas blusas expostas numa corda. Eram todas iguais, de cores diferentes, cores lindas, cores de Verão. Fiquei fascinada e a minha sobrinha, a única menina das crianças que estavam comigo, comentou que eram a minha cara, insistindo para que eu comprasse.

Imaginei-me dentro de uma e achei que ela tinha razão, eram a minha cara. Não resisti. Mas qual seria a cor? Decidi levar uma no tom de azul indiano, que os garotos todos adoraram. Era linda, em algodão, com o decote arredondado e embutido de seda lavrada. Tinha uns cordões finos, também em seda, na parte exterior da meia manga. Era diferente e original. 

Em casa vesti e ainda gostei mais dela. Estava decididamente apaixonada pela blusa azul da feira hippy. Quando chegasse a Lisboa era Inverno, teria que esperar o Verão para me exibir com ela e ainda assim, deveria ser para um evento especial.

Eu tinha conhecido há uns meses atrás, o AS, através de uns amigos comuns e a nossa empatia foi muito forte. Ele era divorciado como eu e tinha um filho exactamente da mesma idade que o meu. Tinha negócios diversificados e por isso viajava muito. O nosso relacionamento durou uns três meses, depois, por conta do trabalho, teve que se afastar e a vida não foi exactamente pelo caminho que queria, mas prometia que voltava, pelo que eu tinha que esperar e acreditar nisso, ainda que não tivesse contacto com ele. Mas acreditei e sonhava com esse dia. Voltando à blusa azul que eu achava que merecia uma ocasião especial, decidi que seria para esse dia, o dia em que ele voltasse.

Já em casa, desfazendo a mala do regresso do Brasil, veio à minha mão a blusa que eu tive o cuidado de lavar, passar e guardar, tendo decidido que ela seria realmente para esse reencontro que um dia haveria de acontecer. Prometi a mim mesma que esperaria o tempo que fosse preciso. Não a usaria por motivo nenhum. Ela ficaria intacta. E gravei na minha mente essa decisão, fazendo o desafio a mim mesma, porque eu queria. 

Passou-se o Inverno e chegou a Primavera, com os dias a ficarem maiores e o sol a aparecer, trazendo mais calor. Chegou finalmente o Verão e o tempo a aquecer a cada dia que passava. Todos os dias eu olhava para dentro do guarda-roupa percorrendo o vestuário e às vezes, quando já estava cansada de tudo o que tinha e me apetecia vestir uma coisa diferente, olhava para a minha linda blusa azul, com uma vontade irresistível de pegar nela e usá-la, mas a promessa que tinha feito a mim mesma impedia-me de o fazer. 

E passou o Verão e o Outono e chegou novamente o Inverno. E tudo continuava na mesma. Acabou o ano, entrou outro ano, veio a Primavera, o Verão, o Outono e de novo o Inverno e a minha bela blusa lá parada. Eu já nem queria olhar para ela. Já estava cansada de vê-la. Quase me tinha arrependido da promessa que tinha feito a mim mesma. Mas ela continuaria lá porque, apesar de tudo, eu continuava a acreditar que ele viria e eu devia essa lealdade a mim mesma. 

O ano estava a acabar e eu pensava, talvez para o ano que vem e se ainda não fosse nesse ano, ficaria para o seguinte e nem me atrevia a pôr em dúvida. 

E chegou outro ano e o Inverno por aí adiante. E veio a Primavera, mais uma Primavera com que eu tanto sonhava, porque o tinha conhecido precisamente na Primavera... e a Primavera passou e chegou o Verão. Os dias lindos de morrer e a minha blusa lá, a morfar. Dava pena. De vez em quando tinha um impulso de pôr a mão nela e arrancá-la da prateleira do armário, mas a minha promessa era mais forte do que eu e não podia trair a mim mesma. Era preciso resistir. Eu tinha que ser fiel ao que tinha programado.

Os dias iam decorrendo com a normalidade do costume, inseridos num Verão espectacular de dias lindos, cheios de sol e calor.

Estávamos em pleno mês de Agosto. Saí do trabalho, fui buscar o Henrique, como de costume, e fomos para casa. No caminho comecei a notar a tarde linda que estava. Como era Agosto, o trânsito fluía sem complicação, pois nesta altura do ano muita gente está fora de Lisboa, em férias e eu estava particularmente calma. A condução tranquila, até dava para olhar para os lados e prestar atenção no horizonte, de cores lindas, azul, rosa e avermelhado, adivinhando mais calor. O ar estava agradável e a luz da tarde, radiosa, com umas tonalidades bem acentuadas. Às vezes o céu fica com umas cores que parece que levou umas quantas pinceladas de artista. Assim era. Tão bom, tão apaziguador. Comentei com o Henrique, que tinha nessa altura nove, dez anos de idade, "olha como está bonita a tarde"!...

À medida que nos aproximávamos de casa, aquela sensação de bem estar e de beleza no ar ampliava-se. Eu sentia o chacra do coração a abrir. Estava bem, estranhamente bem. Olhava-me no espelho retrovisor e sentia-me feliz, mais bonita do que era costume, mais sensual, mais atractiva. Estava bem com todas as sensações que estavam a chegar até mim. Algo estava para acontecer, mas eu não fazia a menor ideia do que poderia ser. 

Chegámos, estacionei o carro e entrámos em casa. Na minha casa, até hoje, há um espelho grande de parede e eu senti-me atraída por ele assim que entrei, o que não era normal. Fiquei um pouco em frente ao espelho a ver-me. Sem querer, mexi nos cabelos, mas perecia que não era eu. Era como se fosse outra pessoa que me estivesse a tocar. Continuei a olhar-me no espelho e parecia que alguém me estava a observar, alguém invisível. Estava tudo muito estranho, mas não me senti incomodada porque eram sensações muito boas. 

Vi o meu cabelo e pensei que estava sem brilho e descuidado, precisava dar um jeito porque no dia seguinte queria estar impecável, com tudo em cima. Andava esquecida de mim, mas tinha que mudar e uma sensação de alegria, de euforia, corria em mim, projectando a minha própria imagem no dia seguinte, com um astral muito acima do habitual. Era absolutamente inexplicável, mas delicioso. 

E o dia seguinte chegou. Acordei, levantei-me, tomei duche e novamente fui atraída para o espelho, que me lembrava as coisas do dia anterior. Eu queria sentir-me sempre assim, com aquela leveza toda. Sequei o cabelo e chamei o Henrique para se despachar. Fui ao roupeiro tirar roupa para vestir e hesitei. Queria uma coisa especial, de acordo com o meu estado de espírito. Era como se eu tivesse um encontro com alguém especial. Não tinha, mas era assim que me sentia. Estava bem, portanto, queria continuar a sentir-me assim com aquele estado de alma. Era uma coisa que vinha do fundo de mim, sem explicação plausível. Tirei as jeans mais recentes e parei. Vou pôr o quê? Mais uma vez olhei para a blusa, mas desta vez arranquei-a do armário. Pensei: "paciência, vou trair a promessa que fiz a mim mesma, mas chegou o dia de usá-la. Não quero saber e não vou esperar nem mais um dia, é hoje ou nunca".  

Dialoguei com a minha consciência que me dizia que estava a quebrar a fidelidade que devia a mim mesma e isso deixava-ma um pouco perturbada, mas a vontade irresistível naquele dia, de estrear a blusa, conseguia ser mais forte do que tudo. Estava na hora. Tudo o resto deixava de ser importante ou tão importante assim. Naquele momento a prioridade era seguir a minha energia, o resto era secundário. Vesti a blusa, vi-me no espelho, por fora estava tudo bem, por dentro estava dividida. Quebrava a minha promessa, mas satisfazia a minha vontade daquele momento. 

Durante todo o dia me questionei. Tinha resistido com tanta firmeza a todas as tentações e naquele dia, subitamente, mais do que uma intuição, tinha sido tomada por uma força maior que eu. Tinha quebrado a promessa que fizera a mim mesma ou com a vida, que é o mesmo. Estava feito. A blusa tinha saído do armário. Acabava ali o impasse e as certezas que eu tinha ou que julgava ter... ou não?!... 

Quase ao fim da tarde o telefone tocou. Atendi, mas apercebi-me de que estava nervosa sem compreender porquê. A telefonista disse que tinha um senhor em linha à procura de uma Luísa que achava que era eu. O nervosismo aumentou e não entendia a causa. Ouvi uma voz de homem: "olá, está lembrada de mim?" ... 

É claro que reconheci imediatamente a voz dele. 

E de repente percebi tudo, fez-se luz, o mistério estava esclarecido. Enquanto o ouvia, percebia exactamente tudo o que se tinha passado. Estava tudo explicado. Estranhamente, a minha programação tinha resultado. 

Espantosamente a minha promessa tinha sido cumprida na perfeição e a fidelidade a mim mesma tinha sido admiravelmente preservada.


segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Estava escrito - 11


Quando a minha sobrinha Tathiana ficou grávida da primeira criança fiquei muito feliz, como não podia deixar de ser. Eu ia ser tia-avó. E mais feliz fiquei quando me apercebi de que seria para Fevereiro. Com sorte, poderia ser no dia um, dia em que a minha irmã Guida e avó estreante faria cinquenta anos de idade. Uma feliz coincidência, porque não?

Passaram algumas semanas e veio a notícia de que seria uma menina. A minha sobrinha querida ia ser mãe de uma menininha. Comecei imediatamente a tentar adivinhar o que viria por aí e desfilaram na minha imaginação roupinhas de menina, vestidinhos, laçarotes, etc… e dentro de mim, intuitivamente, achei que poderia nascer no dia um de Fevereiro. Eu queria muito que ela nascesse no dia dos anos da avó materna, a minha irmã querida.

Um dia, depois de ter tido notícias das duas, da minha sobrinha e da minha sobrinha neta em gestação, fiquei tão contente que me deixei levar pela fantasia e dei por mim em plena comunicação com aquela coisinha pequena que iria aparecer por aí e entrar nas nossas vidas. Dei comigo a falar mentalmente com ela, pedindo-lhe carinhosamente que nascesse para o mundo no dia do aniversário da avó, o que seria um belo presente e um acontecimento muito agradável, sem dúvida.

E ao longo da gestação, conversei com ela longos momentos. Com frequência, concentrava-me e telepaticamente ficávamos ligadas. Inicialmente, era um segredo nosso, um assunto só meu e dela, mas a força daquela sintonia dava-me cada vez mais a certeza de que, mais do que tudo, estava escrito. Ela daria esse presente de aniversário à sua querida avó. Fui tomando consciência disso, interiorizando, e o nosso pacto tornava-se cada vez mais forte, mais convisto.

A data prevista para a menina nascer era onze de Fevereiro, de modo que, para ser no dia um, era apenas uma diferença de menos dez dias, o que poderia perfeitamente ser viável. O meu filho nasceu dez dias antes do previsto. E assim eu continuava a falar com ela, o que me dava um prazer imenso, um bem estar muito louco.

Sentia a energia dela, o respirar daquela vida já tão próxima, tão eminente. Era como se ela estivesse todo o tempo junto de mim. Conectávamo-nos com uma facilidade extrema. Entrava no silêncio e ela estava lá, inteira, com toda a plenitude do seu ser. O mundo inteiro deixava de existir, porque aquela energia se sobrepunha a tudo.

E quebrei o meu silêncio tendo começado por falar abertamente para toda a família que ela nasceria no dia um de Fevereiro, sem medo de errar, porque eu sabia que isso aconteceria. Não era um palpite, era uma certeza. Estava escrito, registado, selado e lacrado. Não podia ser violado de maneira nenhuma.

O tempo foi passando, foi-se aproximando da data e eis que chegou o dia crucial. Acordei de manhã pensando “é hoje”. Durante a manhã falei com a minha irmã, a futura avó, para lhe dar os parabéns pelos seus cinquenta anos e mais uma vez, lembrei-lhe que a neta iria nascer naquele dia. Logo que ela tivesse notícias me dissesse, que eu estava ansiosa. Ela não ligou e fez-me notar, uma vez mais, que ainda não estava no tempo.

Mas o dia foi avançando. Passou-se a tarde e eu sempre atenta aos telefonemas e mails, à espera da notícia. Passou-se a hora de jantar, vi um pouco de televisão e sempre à espera. Devia estar a rebentar. Chegaram as onze horas da noite, a hora de me deitar e dormir, mas nada acontecia. Começava a ficar inquieta. Onze e meia e o sono começava a ser mais forte do que eu.

O dia estava a terminar. É claro que havia a diferença horária mas, ainda assim, as hipóteses começavam a diminuir. Eu não podia estar enganada, era praticamente impossível. Tinha a certeza absoluta de que ela nasceria naquele dia. Deitei-me para dormir e pela última vez conectei-me, pedindo-lhe com todo o carinho e o mais profundo amor, que não se esquecesse do nosso pacto. Estava na hora e seria um presente para a avó.

Seria também uma grande decepção a minha falha ou eu estaria a perder as faculdades, o que teria que aceitar, naturalmente(!). Mas não fazia sentido.

Por volta da uma hora da manhã o telefone tocou. Lembro-me de ter ouvido o toque lá muito no fundo, porque já estava embalada no sono. Quem é que ia ligar àquela hora para o telefone fixo? Eu queria dormir. Ouvi o meu filho a chamar-me baixinho: “mãe, mãe, é do Brasil, a Inajá”. Achei estranho a Inajá ligar-me àquela hora. Nem me lembrei que era a outra tia avó por parte do pai. Além disso, supunha que a primeira pessoa a saber fosse a minha irmã, pela própria filha ou pelo genro, por isso não liguei uma coisa à outra.

Contudo, com grande excitação, acabava de ser informada de que a minha sobrinha querida estava a caminho do hospital. O meu coração disparou. Afinal não me teria enganado! Aconteceu de repente. Estavam a jantar em família e subitamente, as dores de parto surgiram, as águas rebentaram e todo o processo acelerou.

Olhei para o relógio e ainda pus em dúvida se não passaria para o dia seguinte, o que não estava no meu programa, mas um pouco depois recebemos outro telefonema confirmando o nascimento da menina. Eu sabia. Eu sempre soube.

Agora era preciso contactar a avó, minha irmã, de alguma maneira, que estava a dormir com o telemóvel no silêncio. Pedi ao meu filho para tentar chamá-lo pelo skype porque sabia que ela o tinha sempre ligado. Com muito custo, conseguimos, mas ela não acreditava, achava que era brincadeira. Brincadeira de mau gosto, por ser àquela hora e porque queria ter recebido a notícia pelo genro, em primeira mão, o que não aconteceu.

Mas estava a terminar o dia e o nosso pacto tinha que se cumprir e assim, cerca das 22,00 horas, hora de S. Paulo, a nossa pequena dava o pontapé de saída, mudando o rumo dos planos das festas para aquele dia. A minha sobrinha neta nascia no dia 1 de Fevereiro de 2006, impreterivelmente. O nosso pacto secreto, que há muito deixara de ser secreto, porque eu sempre disse que ia nascer naquele dia, cumpria-se extrictamente e rigorosamente e a Tamy nascia, para grande alegria de todos nós.

Estava escrito.


sábado, 17 de outubro de 2009

Os anéis da Isabel - 10


A Isabel era minha colega e minha amiga, mas uma amiga muito querida. Trabalhávamos as duas na mesma sala, para pessoas distintas, embora o nosso trabalho fosse idêntico, por isso, sempre que necessário, revezávamo-nos uma à outra. Era uma óptima pessoa e uma excelente profissional. Melhor, era impossível. Exímia em tudo o que fazia, super disciplinada, sempre a horas, rigorosa com ela própria, impecável. Aprendíamos uma com a outra, facilitávamos a vida uma da outra. Jamais houve entre nós tensão alguma e jamais rivalizámos uma com a outra.

 

Pelo contrário, durante esse período, houve um tempo em que tive problemas de ordem pessoal, que por vezes se reflectiam no trabalho e eu não estava a responder devidamente, como sempre foi meu hábito e costume e a Isabel foi o meu suporte, a minha bengala, mais do que isso, foi a minha defesa. Não fosse a coragem e a verticalidade que sempre a caracterizavam e eu teria tido problemas sérios. Mas o que mais me sensibilizou é que tudo o que ela fez por mim, não só foi feito por pura amizade, como no maior sigilo, sem dar nas vistas, sem que eu me apercebesse de nada. A Isabel é um anjo disfarçado de mulher.

 

Além disso, ela tinha duas filhas, uma com mais um ano e outra com menos um ano que o meu filho, o que fazia com que andássemos as duas sempre alerta e em ebulição com tudo o que era inerente à adolescência. Com frequência nos aconselhávamos uma com a outra, por todo o tipo de situações perfeitamente normais, mas às vezes delicadas e até no que respeita à saúde, vivíamos os problemas uma da outra, funcionando como verdadeiras irmãs.

 

A Isabel usava uns anéis de ouro, como quase todas as mulheres usam. Aliança de casada, anel de noivado, etc… um conjunto de anéis que ela prezava muito, quer pelo valor material, quer pelo valor sentimental. Um dia foi à casa de banho, como de costume tirou os anéis para lavar melhor as mãos, mas não voltou a colocá-los. Um esquecimento acontece a toda a gente, só que aquele esquecimento foi fatal. Quando deu pela falta deles ficou em pânico, correu a buscá-los, mas já lá não estavam.

 

Provavelmente todos nós já passámos por uma situação semelhante e é fácil compreender quão desagradável é esta sensação. É como perder uma parte de nós mesmos. A Isabel sentia-se derrotada, decepcionada, abatida, triste, infeliz, enfim, tudo isso e muito mais. Os anéis não voltariam aos seus dedos, era o que todos pensavam. Para outra pessoa eles teriam apenas o valor comercial e jamais o valor sentimental que só a ela pertencia. Não era o fim do mundo, mas quase. É como se tudo o que vivemos relacionado com aqueles objectos fosse atrás, fosse parar ao lixo. Era assim que a Isabel se sentia. E estava triste. Eu nunca a tinha visto assim. Sempre segura das situações, tranquila, serena, compreensiva com tudo e com todos, mas aquela situação deixou-a muito abalada e sem chão.

 

Não que ela falasse muito, que lamentar-se ou armar-se em vítima não fazia o género dela. Mas eu conhecia-a muito bem e podia ler os seus pensamentos, sentir a sua angústia, o seu desapontamento. Eu estava triste com a tristeza dela, muito triste e a única coisa que tinha feito até então era ficar parada a observá-la. Mas ela não podia ficar assim e eu não queria a minha amiguinha naquela tristeza e sem os seus anéis. Eram dela, só dela. No seu olhar havia um sinal de pobreza e desamparo. Ela sentia que tinha ficado mais pobre e mais desamparada, no que aqueles anéis representavam para ela. Eu entendia-a muito bem e não a queria ver assim. Era preciso fazer alguma coisa, por tudo o que ela era e por tudo o que ela merecia. Eu tinha que fazer fosse o que fosse. Era preciso restituir-lhe os anéis. Tinha que haver uma forma de lá chegar.

 

Mas como é que isso aconteceria? Era praticamente impossível. Que mágica iríamos fazer? Não podíamos imaginar quem os teria levado e mesmo que lá chegássemos, como a pessoa em questão iria devolvê-los? Essas coisas não têm volta. Mas eu não aceitava. Não podia ficar por isso mesmo. Eu não aceitava o facto consumado e pronto. Se o mundo inteiro fosse honesto, ela teria encontrado os anéis no sítio onde os tinha deixado. Eles tinham que aparecer, eles tinham que voltar para a Isabel, não sabia como, mas tinha que dar um jeito.

 

A minha cabeça girava, girava, percorria caminhos e tentava encontrar um meio para solucionar o problema, mas como? Olhava para ela e sentia uma força vinda não sei de onde que me impelia a fazer alguma coisa e urgentemente. Apetecia-me gritar "quem levou os anéis da Isabel é favor devolvê-los!" Que coisa mais frustrante, mas com base nisso, pensei, é por aí, mas de uma maneira civilizada, de uma maneira polida. Vão achar-me uma idiota, mas não quero saber. Peguei numa folha de papel A4 em branco, disse à Isabel para se sentar e escrever, com letras bem grandes: “a quem encontrou uns anéis de ouro, pede-se o favor de os devolver” (assinado) I.M. Fomos à casa de banho e com fita-cola colocámos o papel no espelho, exactamente no sítio onde ela os tinha deixado. Estava feito, agora era esperar e acreditar com todas as forças.

 

Eu sabia que parecia uma coisa muito louca, absurda, mas era a única coisa a fazer. E não há missões impossíveis. Há coisas que ficam por fazer. A impossibilidade somos nós, enquanto filhos da matéria, que é limitativa e nos impede de acreditar nas nossas capacidades. Era preciso tentar. Aquele papel era uma atitude de coragem, uma chamada de atenção para toda a gente. Era preciso que percebessem que errar é humano, mas reparar o mal, às vezes é possível. E era preciso dar essa oportunidade a alguém que tinha errado, levando o que não lhe pertencia. Abríamos assim um diálogo virtual com o inimigo, afrontando-o de uma forma pacífica, de um jeito mais humano, estendendo-lhe a mão e convidando-o a redimir-se de sua livre e espontânea vontade, sem outras interferências e sem drama. Noutra perspectiva, aquela mensagem também poderia ter a capacidade de o confrontar com a sua própria consciência, atingindo a sua vulnerabilidade e perceber a humilhação a que se tinha submetido.

 

A Isabel sempre chegava primeiro que eu. Por isso, no outro dia de manhã quando cheguei, ela já lá estava. E como chegava muito cedo, era das primeiras pessoas a ir à casa de banho para se arranjar. E de repente, os anéis estavam lá à sua espera, sobre a bancada, exactamente no sítio onde os tinha deixado. Parecia um milagre. Custava a acreditar. Toda a gente estava espantada com o acontecido. O pesadelo caía por terra e tudo voltava ao normal, como se nada tivesse acontecido. Os anéis voltavam ao seu lugar de sempre e a Isabel estava bem com ela. A alegria tinha voltado e com ela a sua postura habitual, calma, tranquila, serena, como sempre. Aquele pequeno gesto, dado como a hipótese menos provável, tinha-se tornado inacreditavelmente imbatível e vitorioso. 

 

Entre nós, não deixámos de nos interrogar, como teria sido, quem teria sido? Porque, afinal, quem quer que fosse, também tinha tido uma atitude corajosa. Não é fácil, quando se dá um passo em falso, voltar atrás. Assim, por exclusão de partes, fomo-nos aproximando. Depois, jogámos com as horas, o que facilitou a tarefa. Outro pormenor que tivemos em conta, é que só podia ter sido uma pessoa que gostasse e estimasse muito a Isabel, caso contrário, não teria devolvido os anéis e muito menos com o cuidado que o fez. 

 

Quem foi, sabia a que horas a Isabel chegava e conhecia os hábitos dela, para não correr o risco de serem levados por outra pessoa. Finalmente, foi isolada a célula e dentro da célula, não havia dúvidas de quem teria sido. Uma pessoa que, no momento, estava atravessando um mau bocado na vida. Problemas monetários, misturados com problemas graves de saúde, fazia um certo sentido. Só que a pessoa em questão não esperava que os anéis fossem da Isabel, justamente uma pessoa por quem tinha uma alta estima, o que a Isabel confirmava, porque já tinha tido provas disso. Aí, quando viu a mensagem, rendeu-se e ao fazê-lo, praticamente se entregou. Mesmo assim, fê-lo. Foi um gesto nobre e corajoso.

 

A Isabel obteve, assim, de volta os seus anéis muito preciosos e ficámos felizes com o sucedido e pela forma como tudo decorreu. Tomaram-se as providências certas, sem dúvida. Tivéssemos dado as voltas erradas e os anéis jamais teriam aparecido. Cada um tem exactamente aquilo que merece e a Isabel, mais do que ninguém.

 

Desaparecerem objectos que ficaram esquecidos, é vulgar, é normal. Pôr um papel com um pedido de retorno, já não me parece muito normal, pelo menos, muito comum. Terem aparecido sem a menor resistência, muito menos.

 

Mas há uma coisa que é muito importante salientar. Quando me veio à ideia pôr lá um papel, o que parecia absurdo, eu disse à Isabel para escrever aquela mensagem na forma de um pedido. Ambas estávamos sintonizadas. Ela mais vulnerável e portanto mais passiva do que eu, porque era um assunto dela. Eu, por outro lado, mais activa porque, apesar de me tocar, não deixava de ser expectadora. Por isso, quando lhe disse para escrever, ela não pôs objecções e quando lhe disse para escrever "pede-se o favor" aquilo era apenas o que se podia ler. Mas o que estava realmente escrito nas "entrelinhas" e não se podia ler com os olhos físicos, mas ler com a alma, era uma ordem. Nas entrelinhas ordenava-se a reposição dos anéis, sem a menor sombra de dúvida. Era na verdade uma ordem, tanto é, que eles apareceram e isso é verdadeiramente relevante, porque esse, sim, é o ponto da questão.

 

Eu nunca tinha assistido a uma coisa daquelas e não teria feito o mesmo se fosse para mim, estou certa e também não aconteceria com outra pessoa. Aconteceu com a Isabel, por ela ser a pessoa especial que era.

 

Estou grata à vida por um dia ter posto no meu caminho esse anjo disfarçado de mulher, que caminhou comigo diariamente, lado a lado, pelos caminhos da luz, do amor e da alegria.


quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Falei com as estrelas - 9


Todos nós temos desejos ou sonhos, como lhe quiserem chamar. Muitos são legítimos, outros, nem por isso. E se alguns não se podem realizar, outros há que são possíveis.

 

Alguns realizam-se sem esforço da nossa parte - são presentes da vida - outros, porém, obrigam a um grande empenhamento pessoal e a uma força de vontade muito forte e nem por isso deixam de ser presentes da vida.

 

Quando um sonho se torna realidade não tem que ser um milagre, embora por vezes possa parecer. Não sendo uma coisa do outro mundo, algo pode acontecer que nos deixe maravilhados. Mesmo dentro da normalidade pode ter algo incomum, de tão extraordinário, que valha a pena recordar. Foi isso que aconteceu.

 

A Lurdes era uma colega de trabalho e uma amiga muito especial. Daquelas pessoas raras neste mundo, constantemente capazes de pequenas grandes coisas. Assim era a Lurdes, sempre igual, sempre fiel a si mesma. De natureza humilde, jamais se deixou corromper pelo materialismo. Uma vida sempre na "corda bamba", com problemas de toda a ordem, como só ela tinha e como só ela conseguia superar. Mas ela não era só o suporte de uma família, era também o suporte de todos à sua volta. A capacidade psicológica e física que tinha de aguentar, lidar e superar as coisas dela e ainda ajudar os outros, era absolutamente inesgotável.

 

Um humor à prova de fogo, como ninguém. Das tragédias fazia uma comédia. Da vida fazia o palco onde ela própria se fosse preciso, morria, aplaudia e ressuscitava. Ela reinventava a vida. Era uma criatura única. Onde ela estava, tudo estava bem. Ajudava, sem olhar a quem, mesmo que não gostasse desta ou daquela pessoa. Na hora da aflição, do problema, isso não tinha a menor importância. Automaticamente os laços se estabeleciam e o mal era transmutado. Ela dava a cara, se necessário, e mais facilmente salvava a pele dos outros do que a dela própria. Onde houvesse alguém num momento mau, aí estava ela a consolar, a levantar o astral. Essa criatura ensinou-nos a viver e proporcionou-nos horas de ouro. Só quem a conheceu é que pode compreender isto, porque ela era a prova viva de que o amor incondicional existe.

 

Um dia a Lurdes teve um sonho que se tornou um desejo que foi crescendo, crescendo, até se tornar realidade. Quis ter outro filho e desta vez queria que fosse uma menina. O Sérgio já estava bem grandinho, já era maior de idade e nunca lhe tinha passado pela cabeça ter outra criança. Ela e o marido não tinham muitos recursos e a coisa passava por aí. Mas agora ela queria. Depois de reunida a família decidiram que, apesar das circunstâncias, todos queriam essa criança. Estava decidido, portanto, o sonho realizado pela metade, o que já não era pouco. E todas começámos a sonhar e a torcer para que a coisa se concretizasse e já agora, que fosse uma menina como ela tanto queria.

 

Havia uma outra colega nessas condições, que tinha tido um rapaz com uma diferença de 18 anos da primeira filha, mas essa outra, era uma pessoa problemática. O oposto da Lurdes. Gostava de pregar rasteiras e as intenções dela nem sempre eram as mais desejáveis. Um carácter um pouco duvidoso. E enquanto que todas nós torcíamos pela Lurdes, ela distorcia. Dizia que ela não ia ser capaz daquela proeza(!?). Uma data de disparates, como se só ela no mundo tivesse dado à luz duas crianças de sexos diferentes. Só ela tinha sido capaz de fazer as coisas bem feitas(!) e não queria de maneira nenhuma que a outra tivesse outro filho, muito menos uma menina. A mim incomodava-me e como aquela atitude. Era demasiado provocatória e mesquinha. E tivemos todas que levar com aquela coisa ruim, que não cedia de maneira nenhuma.

 

O tempo foi passando e um dia a Lurdes veio da médica com a confirmação da gravidez. Foi uma festa, uma alegria só. A emoção foi tão grande que as lágrimas bailavam nos olhos dela e nos nossos também. Ficámos todas excitadas com a notícia. Começámos a fazer as contas para quando seria e a planear tudo em conjunto com ela. Ela queria uma menina, porque já tinha um rapaz, mas no momento em que soube que estava grávida, a felicidade era tão grande, que isso deixou de ser relevante. Tudo o que importava agora era que essa criança fosse saudável. Se era menino ou menina já não tinha a menor importância. Estava demasiado agradecida à vida para exigir fosse o que fosse.

 

Sinceramente, eu ficava pasmada com a capacidade de aceitação que ela tinha. Era uma fonte de ensinamento para mim. A outra, em nada receptiva, continuava dizendo que nunca seria uma menina. Ia sair outro rapaz. Mas ela já não se incomodava nada com isso. E fez a primeira ecografia e todo o mundo a postos para saber o que seria. Quando ela chegou, foi com alguma decepção que ouvimos a notícia de que a médica dissera que não dava para confirmar, mas achava que era um rapaz e ponto final.

 

Toda a gente de volta dela felicitando-a e dizendo-lhe que não fazia mal, era igualmente bom e ela também, feliz por estar tudo bem e voltava a salientar que estava muito feliz por ser um menino. E estava mesmo, era visível. A outra toda emproada dizia, viram, eu tinha razão, se a médica disse que devia ser um rapaz é porque é de certeza, porque não ia arriscar a dizer sem ter a certeza. Nunca faria isso e chateava a cabeça dela e a cabeça das outras. A mim, mais do que isso, apunhaláva-me. Apetecia-me jogá-la pela janela fora.

 

A barriga foi crescendo, foram-se tomando as providências, colaborando em tudo o que era possível, só a outra desdenhava, com grande tristeza minha. Tristeza que se foi transformando numa espécie de raiva, porque era de um mau gosto que chegava a doer. Chegava a ser injusto, já que a Lurdes toda a vida tinha sido amiga dela. Como era possível tamanha ingratidão?!

 

Os dias decorriam assim numa harmonia interceptada por um mau agoiro, um só, que estragava tudo. A barriga crescendo e o dia do nascimento a aproximar-se. E aquela raiva a apoderar-se de mim, dia após dia, que me sufocava. Se fosse comigo não me incomodava tanto, mas com a Lurdes não, não podia ser. Ela queria tanto uma menina! Ela tinha conseguido conquistar tudo o que queria, dentro do possível, só faltava aquela criança ser uma menina e eu não me conformava. Primeiro, porque a outra tinha ganho aquilo que não tinha que ser uma disputa, mas assim parecia. Segundo, porque a Lurdes tinha começado aquele projecto com o objectivo de ter uma menina. Eu sabia que não era tão importante assim. Nós sabíamos. Mas não custava nada. Que pena! E que raiva!

 

A poucos dias da criança nascer... fui para casa, fiz o que tinha a fazer e quando me sentei no sofá para descansar um pouco antes de me deitar, comecei a pensar no assunto. Pensei naquela situação caricata da outra ter conseguido levar a teimosia venenosa dela avante que eu não aceitava, não conseguia engolir. Imaginava a Lurdes a ter uma menina e a outra sem palavras, morta de inveja. Pensei tanto naquilo que não conseguia parar.

 

Fui para a minha varanda. Estava calor. Sentei-me a olhar o céu limpo, duma noite de Verão. Valia sempre a pena observar as estrelas. Elas repunham um pouco a tranquilidade. Mas não conseguia deixar de pensar na Lurdes. Era tão bom se ela tivesse uma menina! Ela ia ficar tão feliz! Ela, o Sérgio, o "Jaquim" e nós. Ah, era tão bom se fosse possível! Mas àquela altura, o que estava feito, feito estava. Não era possível alterar. A menos que… a menos que… a médica estivesse enganada. Afinal ela não tinha dado a certeza. Está certo que eles não adiantam nada de ânimo leve. Mas, naquele caso, também não era grave(?). E podia ser, não podia? Ela podia ter-se enganado!?

 

Senti uma corrente de energia tão forte, mas tão forte, que dentro de mim uma força estranha gritava: pede, fala com as estrelas, elas podem tudo. Pede para que a situação seja revertida. Ainda é tempo. Não quero saber do que a médica disse. Céu... estrelas..., porque é que a felicidade nunca há-de ser por inteiro, tem que ser sempre pela metade? Não estou a pedir nada para mim, mas é mais importante do que se fosse para mim. Ela só queria uma menina, mais nada. Ela não quer o céu e a terra, este mundo e o outro. É só uma menina e as estrelas podem, podem tudo. Porque é que a outra há-de ganhar e há-de rir-se à nossa custa, não é justo!? Eu sei que o mundo não é justo, mas a Lurdes não merece. Ou melhor, a Lurdes merece tudo de bom. Tudo. Estrelas, façam o milagre. Eu imploro! Eu quero! Era tão bom, tão bom mesmo. Se for um menino não faz mal, mas tragam uma menina. Estrelas, por favor, tragam uma menina para a Lurdes!

 

Eu estava de rastos de eufórica, com a energia que corria dentro de mim. O facto é que, a partir dali deixei de sentir raiva. Sentia-me mais leve e pronta para aceitar o que viesse. As vozes da outra já não tinham eco em mim, já não me atingiam.

 

Às 23,45 do dia dez de Setembro de 1991 eu completava 39 anos de idade. Poucas horas depois, na manhã do dia seguinte, mais propriamente a 11 de Setembro de 1991, as estrelas respondiam ao meu chamado, traziam o meu "presente" e a Lurdes realizava o seu sonho por inteiro - a Beatriz nascia.

 

A Beatriz é hoje uma jovem linda, inteligente e saudável. A Beatriz é a prova viva de que as energias negativas se diluem quando confrontadas com as energias positivas. A Beatriz nunca me fará esquecer que um dia, em nome da amizade incondicional, da luz, do amor e da alegria eu consegui falar com as estrelas.

 

A Beatriz esteve lá desde o início. Todo o tempo ela foi testemunha de que quando queremos alguma coisa com muito amor, mais do que tudo, é preciso acreditar.

(A história que acabei de descrever, verídica como tudo o que estará contido neste blogue, além da importância que teve no plano físico, teve um reflexo extremamente relevante no plano espiritual. Da mesma maneira que a Beatriz esteve lá todo o tempo, porque a médica se enganou, fazendo da questão uma verdade intemporal, uma verdade absoluta, completamente alheia à vontade e aos desejos humanos, também as estrelas estavam lá todo o tempo. Depois disto, pode dizer-se que aprendi a falar com as estrelas. Aprendi a reparar na sua existência plena, com todo o poder que elas encerram. Aprendi que elas são a luz que nos ilumina, que nos fornece a energia que nos alimenta física e espiritualmente e que nos guia pela eternidade. Elas não estão lá apenas em noites especiais quando, casualmente olhamos para o céu, numa daquelas noites que as achamos únicas. Elas estão e são o nosso tecto, a nossa casa e o nosso encontro com elas pertence ao passado, presente e futuro. Elas passaram a abrilhantar a minha vida e o meu caminho, porque eu me tornei perfeitamente consciente, não só da sua existência como da sua presença. A partir daí fiquei mais rica espiritualmente. O meu elo com o Divino estava selado e a minha gratidão e respeito pela vida são eternos.)


segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O Thiago nasceu - 8


Era véspera de S. João e estávamos a festejar os santos populares como era habitual. Além disso e enquanto vivi nos Açores, tudo era motivo para festejar. Éramos novos, os caminhos estavam em aberto em todos os sentidos. Tanto no campo pessoal como no profissional. Tudo estava no início.

Naquele dia, excepcionalmente, a festa era numa quinta do Zé Eduardo Moniz. Costumávamos fazer as festas na quinta da Ribeira Grande, mas o Zé Eduardo quis ser o anfitrião daquela noite, talvez porque o filho mais velho era recém-nascido e não lhe desse jeito deslocar a mulher e o bebé. Em consideração a isso e para variar, acedi ao seu desejo.

A sardinhada ao ar livre, como convinha, era acompanhada de vinho de cheiro, pão de mistura, bolo lêvedo e outras coisas mais. Reinava sempre a boa disposição. Alegria era coisa que não faltava. 

Naquele tempo ainda não havia rivalidades profissionais e dávamo-nos todos muito bem. Quem tinha família, estava sempre convidada e todos se conheciam e se respeitavam. O pessoal da Rádio muitas vezes partilhava das nossas festas, de modo que, nos Açores, já nessa altura, Rádio e Televisão estavam juntas. Era muito divertido, muito animado.

Também havia sempre um voluntário para assar as sardinhas, por se achar especialista no assunto e tudo era cuidadosamente encomendado para a RTP, o vinho especial, as sardinhas maravilhosas, enfim, era tudo óptimo, nunca ninguém teve do que reclamar e as nossas festas até se tornaram famosas no melhor dos sentidos.

Neste clima de festividade e descontracção, dum fim de dia espectacular que prometia entrar pela noite dentro, aconteceu então uma coisa fantástica.

De repente, comecei a sentir uma sensação estranha. O ambiente à minha volta pareceu ficar irreal, com uma luz diferente. As vozes soavam como um eco e uma impressão de que os meus pés não tocavam o chão. Parecia que flutuava no espaço. Era estranho mas era uma sensação muito agradável e uma alegria, mais do que isso, uma felicidade imensa inundava o meu coração. 

Deixei-me levar porque era bom demais e não podia perder aquela energia que eu não sabia de onde vinha mas que era muito bem vinda. Perguntei ao meu marido se ele se apercebia de alguma coisa estranha. Ele não percebeu o que eu queria dizer e eu não tinha como explicar. Mas insisti e disse-lhe que estava a acontecer alguma coisa que não sabia o que era. Uma coisa que vinha de longe e chamava por mim... mas ele continuou a não perceber e disse que aquilo não era nada. Uma reacção normal. 

Retirei-me um pouco da confusão, isolei-me por uns instantes para melhor saborear aquela sensação e ter a percepção do que estaria a acontecer. E de repente percebi o que era. O meu sobrinho tinha nascido. É verdade. Recebi essa notícia assim, vinda do nada, ou melhor, vinda de desejo da minha irmã, de tanto querer comunicar-se comigo para dar-me a boa nova, lá, do outro lado das águas. 

No dia 30 de Setembro de 1974 eu ia levar a minha irmã ao aeroporto com destino a S. Paulo, Brasil, onde a esperava o António, com quem ia casar. No dia 30 de Setembro de 1974, estava traçado o destino dela. 

No dia seguinte, 1 de Outubro do mesmo ano, eu apanhava um táxi para o aeroporto com rumo aos Açores. Estava traçado o meu destino. Conheci o A.L. com quem me casei. 

O Thiago era o segundo filho da minha irmã. Isto aconteceu por volta das 22 horas dos Açores. Foi assim que recebi a notícia de que ele tinha nascido. Ele parecia querer nascer prematuro. Então, desde os seis meses ela precisou de fazer muito repouso. O meu cunhado, que tinha sido aluno de medicina em Portugal, onde se conheceram, teve que tomar todas as providências para ela conseguir levar a bom termo aquela gravidez. Talvez por isso, não sei, fiquei sempre muito ligada nela. Estava sempre à espera de notícias. 

Não havia telemóveis naquela época. Mas a notícia chegou na hora certa, bem em cima do acontecimento. Só não sabia o nome dele, mas sabia que era um menino. Fiquei doida de felicidade e mais ainda, por se ter estabelecido aquela conexão tão forte.  

Lembro-me que corri novamente para o meio do pessoal, chamei o António e disse-lhe que a minha irmã tinha tido o bebé. E ele ingenuamente perguntou como é que eu sabia. E eu, ingenuamente respondi-lhe que aquela sensação estranha que estava a sentir, me tinha trazido a notícia. Ele olhou-me de lado, sorriu e abanou a cabeça, simplesmente, porque não entendia nada. É normal. Saímos dali de madrugada e no outro dia íamos trabalhar, mas isso não tinha a menor importância. Éramos jovens!... 

No outro dia a meio da tarde veio um telefonema da minha tia a dar a notícia, que para mim era apenas uma confirmação. O Thiago nasceu.


terça-feira, 25 de agosto de 2009

O meu primeiro namorado - 7


Eu tinha dezanove anos quando conheci o Pedro, o meu primeiro namorado com carácter sério. Quando o conheci vivia num lar para estudantes. Uns tempos depois mudei-me para uma casa arrendada com uma amiga do lar, a Lídia. Ela era da província e muito solitária. Tinha dificuldades em se relacionar e não tinha amizades, coisa que eu tinha de sobra. Era um pouco mais velha do que eu, mas apoiava-se muito em mim por falta de confiança e muita timidez. Era uma pessoa muito simples e muito apagada, mas com o tempo consegui transformá-la um pouco na sua aparência e enfim, com as minhas amizades, fazê-la sair um pouco da "casca". Isso foi muito interessante porque, de repente, ela começou a desabrochar, a ver-se como "gente" e até já conseguia dar um ar da sua graça, começando a despertar as atenções.

 

O Pedro era uma pessoa bem formada, responsável, com vinte e dois anos era licenciado em engenharia mecânica e dava aulas no Instituto Superior Técnico, enquanto procurava um emprego que o satisfizesse. Moreno, 1,80 de altura, muito bem constituído, como ele mesmo dizia não era qualquer um que se metia com ele. Eu gostava dele, mas ele era muito possessivo, achava que era meu dono, perguntava e queria saber tudo e não me dava espaço. Todavia, a nossa sintonia era muito forte. De tal modo, que eu pressentia a chegada dele, os telefonemas, tudo. Onde quer que eu estivesse, em casa, no trabalho, sem mais nem menos, a minha conexão com ele estabelecia-se automaticamente. Era tão marcante que às vezes achava que aquilo não era normal.

 

Um dia, para tirar dúvidas e ter testemunhas do que se passava comigo, resolvi começar a falar com a minha amiga acerca disso. Quando sentia que ele ia telefonar, chamava-a e dizia-lhe exactamente o que estava a sentir naquele momento. Por exemplo, "Lídia, o Pedro vai telefonar", dizia eu. "Agora?" respondia ela. "Sim". Eu olhava para o relógio da sala e dizia-lhe concretamente dentro de quanto tempo. Ela sorria e perguntava como é que eu sabia. Eu respondia "sei, só isso". "Ah!"...dizia ela e sorria. Depois o telefone tocava e ela punha-se à escuta, porque ficava curiosa a ponto de querer confirmar se era ele ou não. Eu atendia o telefone, ela ficava parada a olhar e sorria. "Já sabias?", perguntava ela. "Não, não sabia", respondia eu. Ela limitava-se a deixar escapar o "ah!..." de um certo espanto ou uma certa dúvida. Eu dizia-lhe, "Lídia, ele vem aí". "Mas não telefonou?" Perguntava ela. "Não, mas eu sei que ele vem aí. Eu sinto. Daqui a meia hora, mais ou menos, está a tocar à campainha, vais ver!" Daí a meia hora a campainha tocava e ele aí estava. Ela olhava para ele, para mim, com um meio sorriso intrigado e estava na cara que não sabia o que pensar, como eu, aliás. Mas era um facto. E estas cenas repetiam-se diariamente. "Lídia, ele hoje não vem nem telefona". "Ah, como sabes?" Eu encolhia os ombros. "Lídia, ele vai telefonar a dizer que não sabe se pode vir, mas vem".

 

E isto durou cerca de dois anos. Por fim, ela já não dizia nada, só sorria, dizendo que achava engraçado, porque nunca tinha conhecido ninguém assim. Não se pode dizer que fosse uma questão de hora, porque nunca havia horas. Não havia nada de consistente, nada em que nos pudéssemos basear para justificar fosse o que fosse. Era assim, simplesmente. Ela ficava de queixo caído e eu atónita. Apesar de estar habituada, não deixava de ser estranho e não via aquelas coisas acontecerem com ninguém, só comigo.

 

Era garantido que eu nunca podia saber nada da vida dele, onde estava, com quem estava, quando nos víamos ou quando me telefonava. Era tudo por conta dele. Era ele que geria a nossa relação, coisa que hoje seria impossível. Nem os contactos dele eu tinha. Não conhecia ninguém de família, nem amigos, nada. Se ele quisesse, pura e simplesmente desaparecia da minha vida. Dava aulas no IST, era a única coisa que eu sabia. E mesmo o apelido dele, só o soube muito mais tarde. 

 

Também sabia em que zona ele morava, mas nem imaginava a rua, o prédio, fosse o que fosse. Tinha pais e uma irmã casada com um filho e era tudo o que eu sabia, porque ele me tinha dito, de modo que era impossível que as minhas informações tivessem uma suposta origem. O Pedro era super possessivo, tinha que saber tudo da minha vida, ao mais pequeno pormenor, da minha família, dos meus amigos... mas o contrário não se aplicava. A liberdade que queria para ele era impensável querê-la para mim. Eu suportava tudo isso porque gostava muito dele e sobretudo, porque não tinha a mínima experiência da vida. Mas não é esse o assunto.

 

A Lídia era a minha única testemunha. No trabalho, também havia colegas que presenciavam o mesmo, mas eu não me alargava muito. As pessoas em geral definem tudo como "coincidência". Mas eu sabia que aquilo não tinha nada a ver com mera coincidência. Isto era uma constante. Eu sentia o momento em que a minha sintonia com ele se estabelecia. Eu captava o pensamento dele, se estava bem disposto, se estava chateado, tudo passava para mim. Era assim.

 

Três anos depois, estava eu com vinte e dois anos, tive a feliz oportunidade de ir trabalhar para os Açores. Mudei-me com carácter definitivo, sendo que nada nesta vida é definitivo. Abria-se um novo capítulo na minha vida. Terminei a minha relação com o Pedro e preparei-me para recomeçar tudo do zero. E assim aconteceu, porque quando eu abro os olhos, não há quem me segure.

 

Era tudo muito bonito. Era tudo novo e eu não conhecia nada nem ninguém. Fiz novos amigos, novos colegas, a ilha de S. Miguel era muito bonita e eu tinha tempo bastante para passear e curtir aquela mudança radical que eu considerava um verdadeiro presente da vida.

 

Trabalhava na Delegação da RTP que ficava em Ponta Delgada, mas ia com frequência ao Emissor da Barrosa, o ponto mais alto da Ilha, porque adorava esse percurso. A estrada tinha muitas curvas, pelo que havia muitos recantos bonitos. Os campos eram muito verdes e praticamente não havia casas. Uma aqui, outra ali, quase passavam despercebidas. Contudo, havia uma que, embora isolada como as outras, não ficava muito longe da estrada, posto que, quem passava de carro, dava perfeitamente para ver. Era bonita, com rés-do-chão e primeiro andar. Toda branca, com os telhados vermelhos, tinha umas varandas largas com arcadas e tinha um pátio muito grande no rés-do-chão, com as arcadas iguais. Não era exageradamente grande mas também não era pequena e sobressaía no meio do verde. Todas as vezes que aí passava, parecia que me enfeitiçava e sentia uma atracção, via-me lá dentro com filhos, família, como se fosse uma outra vida que não tinha nada que ver com o meu presente.

 

O tempo foi passando, eu já conhecia a ilha, já tinha visto outras casas igualmente bonitas, mas nenhuma me chamava a atenção como aquela. E não era por ser mais ou menos bonita do que as outras. Era como se eu tivesse ligação com ela. Ela exercia sobre mim uma estranha força, como se tivesse um segredo escondido e esse segredo fatalmente me incluísse.

 

Havia decorrido apenas um mês desde que eu tinha chegado a S. Miguel. Um dia, saio de manhã como de costume para ir trabalhar e a meio do caminho, um táxi pára na minha frente. A porta abre-se e um homem sai: o Pedro, sem tirar nem pôr. Fiquei perplexa, sem pinga de sangue. A minha sintonia com ele tinha acabado, o que fazia sentido. Eu não tinha tido nenhum pressentimento, não sabia o que fazer, o que dizer. Sei que fiquei muito chateada, pensando que o meu sossego e a minha liberdade tinham sido invadidos e isso eu não queria. Ele vinha ao meu encontro para recuperar o que tinha perdido, só que eu não estava disposta a isso de jeito nenhum. Eu estava com vinte e dois anos e queria outra oportunidade na minha vida, a oportunidade de ser feliz.

 

Decorreram dois meses massacrantes porque não havia um só dia em que ele não me procurasse para ter uma conversa e explicar-se e pedir que o aceitasse de volta com planos de futuro para nós, etc... e eu não queria, não queria mesmo. Estava tudo muito bom até ele aparecer e tudo o que eu queria era a minha liberdade, o meu espaço. Todos os dias lhe repetia a mesma coisa e todos os dias a conversa era a mesma. Mas isto não vem ao caso. O que interessa é que um dia em que ele realmente já estava cansado e a perder a paciência, como último recurso, quis que eu fosse com ele a um lugar, porque tinha uma surpresa para mim. Depois de muita coisa, não tive outro remédio e fui com ele.

 

Pelo caminho, disse que me ia mostrar uma casa que seria nossa, caso eu voltasse atrás. Já tinha contactado o proprietário e estava garantido que podia ficar com ela. Ele falava e eu, para ser sincera, não ligava a menor importância. Achava que tudo aquilo era inútil, porque eu não voltaria com a palavra atrás.

 

O caminho, eu conhecia-o muito bem, era o da Serra da Barrosa. Parámos e lá estava ela a olhar para mim. A casa, a dita casa! Lá estava ela. Pensei que finalmente estivesse lá gente e ele fosse falar com alguém, quando ele me diz, "esta casa é nossa, se aceitares ficar comigo". Eu não queria acreditar no que acabava de ouvir. Jamais me passou pela cabeça, com tanta casa noutros lugares, que ele fosse escolher precisamente aquela, a misteriosa casa que me hipnotizava, me fascinava e me deixava confusa.

 

Assim terminou definitivamente a nossa sintonia. Ou não? Nada é definitivo...

 

Pois é... ele voltou para Lisboa, seguiu a vida dele e eu a minha, feliz e contente, em S. Miguel.

 

Durante o tempo que andámos juntos eu pensava em ter um filho. Às vezes falávamos nesse assunto mas nunca comentei com ele que, se um dia tivéssemos uma criança e caso fosse menina, ela se chamaria Joana. No entanto, eu sempre pensava nisso. Era certo que se um dia tivesse uma filha com ele se chamaria Joana. Ninguém me tirava isso da cabeça. Mas nunca tinha falado com ele acerca disso. Era coisa minha, só minha. Seria para falar apenas na hora certa, caso viesse a acontecer.

 

Bem, o tempo passou. Um dia conheci o António, que viria a ser o meu marido e que era Açoriano. E um dia, passeando com ele pela cidade, parei em frente de uma montra de uma loja de brinquedos, que tinha bonecas de pano. Vi uma que tinha uma cabeleira de lã grossa amarela, muito engraçada e tinha o tamanho de uma criança. Fiquei encantada a olhar para ela, de tal modo que ele me disse, entra e compra, se gostas tanto! E foi o que fiz. Entrei, comprei a boneca e toda feliz fui para casa com a minha "Joana", claro, tinha que ser Joana! A Joana era gira, todas as crianças que iam lá a casa, filhas de amigos nossos, queriam brincar com ela, mudar a roupa, fazer trancinhas, trocar a maquilhagem e até tinha óculos. A Joana sobreviveu a muita coisa.

 

Quando o meu filho nasceu, tinha os brinquedos dele, brinquedos de rapaz mas, de vez em quando brincava com ela. O engraçado é que sempre tinha o cuidado de realçar que era a "Joana da mãe". Era assim que lhe chamava porque ele sabia que não era um brinquedo dele, embora eu nunca lhe tivesse dito nada, porque não havia nada a dizer.

 

Mas voltando atrás, um dia, eu já estava casada, já tinha regressado a Lisboa depois de ter vivido quatro anos nos Açores, já tinha o Henrique nessa altura com seis anos e estávamos de novo em S. Miguel, de férias. Todos os anos íamos estar com a família do meu marido no período de férias. Com o lazer e as horas mortas passou pela minha cabeça o passado. Lembrei-me do meu namorado Pedro, que um dia se deu ao trabalho de me seguir até lá. Foi nessa altura que fiquei sabendo pormenores da vida dele que nunca antes tinha sido possível. Onde ele morava, o nome completo e até ao B.I. tive acesso, só que já não estava interessada. Era tarde. Mas passou pela minha cabeça telefonar-lhe. Que seria feito dele? Gostava que ele soubesse que eu tinha o Henrique. Mas a questão não é essa. O ponto da questão é que eu falei com ele, ele estava casado e tinha uma filha com menos um ano do que o meu filho. E como é que a menina se chamava? Nem mais nem menos: "Joana".

 

Passou rápido pela minha mente, "onde foi parar a minha Joana? Aquela era para ser a minha Joana!..." Claro que não... não passava duma grande coincidência. 

 

Hoje eu sei que toda a minha vida e todas as minhas escolhas têm sido uma perfeita sintonia comigo mesma, em estado de alerta constante. Daí, que os meus relacionamentos mais profundos têm lugar nessa simbiose universal e já nada é estranho, pelo contrário, tudo é perfeito, tudo natural. 


E se eu achava que a minha telepatia com o meu primeiro relacionamento, o Pedro, tinha sido uma coisa espantosa, mais tarde eu iria perceber que tudo aquilo não tinha passado de uma gota de água no meio do oceano, comparado com o que viria a acontecer depois, com outras pessoas, pelo caminho fora.


Portanto, não tinha sido uma coisa de circunstância com aquela pessoa, com aquele acontecimento. Era uma coisa minha, que eu haveria de confirmar com o tempo. Podia até ninguém saber, ninguém acreditar, mas eu sabia, pertencia-me, quer eu quisesse ou não e isso ninguém me poderia tirar.