Havia uns anos já que o Riaz estava comigo. A nossa relação
como casal tinha tanto de descontraída como de conturbada. Não era fácil viver
com um indivíduo muçulmano de origem paquistanesa, ainda mais por eu ser
ocidental, nascida na Índia. Como ele próprio dizia, eu estava dividida em duas
metades: uma ocidental, outra oriental. Paradoxalmente, isso deveria afastá-lo,
pois nenhuma dessas condições combinavam com ele. No entanto e, novamente,
paradoxalmente, eram essas duas condições que nos uniam e sem elas, a nossa
relação nunca teria existido.
A questão é que eu o compreendia e aceitava. Aceitava o que conhecia e aceitava o que não conhecia, como um desafio. E aceitava porque queria, porque na verdade, nada, nem ninguém me obrigava a isso e quando eu contava às minhas colegas as coisas que fazia, ficavam incrédulas, achando que uma pessoa como eu, tão moderna, tão à frente, cabeça aberta, tão livre e independente, etc., não podia “submeter-me” às vontades dele. Só que elas não entendiam que eu não me submetia a nada e muito menos era forçada, bem pelo contrário, fazia exactamente o que queria. Que diferença me fazia entrar na água do mar vestida, em vez de ir de biquíni, quando era preciso?! Que diferença me fazia não comer carne de porco, se sempre fui alérgica ao porco?! Não poder usar decotes muito pronunciados e outras coisas do género… eu estava com um muçulmano, essa era a questão e seria muito burra se não soubesse o que isso significava. Portanto, ou aceitava ou não haveria relacionamento. E convém esclarecer que nada disso me inferiorizava, bem pelo contrário, porque o fazia com plena consciência de que o queria fazer. Era uma maneira de assumir a minha relação com ele.
Contudo, havia coisas em que eu não o deixava interferir. Por exemplo, com
o meu filho. Um dia ele viu fiambre de porco no frigorífico e ficou furioso.
Disse-lhe que era só ele que o comia, não eu, mas ele não ficou satisfeito e
exigia que retirasse o fiambre e não o deixasse comer. Disse-lhe “não”, sem
rodeios, sem hesitações, não. Não gostou, ficou chateado, mas expliquei-lhe que
o que servia para mim não tinha que servir para o meu filho e que a relação
dele era comigo e não com ele. Ficou calado, pensou, pensou e ponto final, não
se voltou a falar no assunto.
Um dia disse-me que queria ir à terra dele, mas queria que eu fosse com
ele. Aí estava uma coisa em que eu nunca tinha pensado, ir ao
Paquistão. Já tinha estado com ele na Grécia e tinha sido maravilhoso, mas
ir ao Paquistão… pensei, pensei, pensei muito. Falei com a minha família,
perguntei a opinião de cada um… não que eles o decidissem por mim, mas queria
ouvir o que os outros tinham a dizer acerca disso. Curiosamente, todos diziam
que sim, porque todos gostavam dele. Contra todas as probabilidades, ele tinha
sido aceite a cem por cento pela minha família e isso eu nunca iria entender,
mas melhor assim, menos trabalho para mim convencê-los a aceitá-lo. E o facto
de todos serem de opinião que eu poderia ir, seria uma boa razão para não ter
dúvidas, mas na verdade não bastava.
Pouco depois de ter estado na Grécia fui submetida a uma intervenção
cirúrgica urgente e fui para casa do meu pai para me recuperar. Mas era
complicado porque o Henrique estava em casa do pai até eu voltar para minha
casa e por mais que ele gostasse do pai, preferia estar na minha casa,
portanto, precisava de mim em casa e isso estava a criar-me muita ansiedade,
atrapalhando a convalescença. O Riaz, que tinha ficado na Grécia por conta do
trabalho, veio imediatamente e expressamente para cuidar de mim. Isso eu nunca
esqueceria em toda a minha vida, porque só assim foi possível o Henrique
regressar à sua base e eu estar na minha casa. Ele cozinhava e cuidava de tudo.
Por todas as razões ou por muitas, aparentemente não havia razão para não
fazer essa viagem, mas ainda não estava satisfeita e decidida a ir só pelo
facto de ninguém me ter apontado um motivo em contrário e continuava à procura
de indícios, isto é, à procura de uma resposta mais concisa(?)... nem tanto.
Mais verdadeira, talvez.
O nosso caminho está traçado, ainda assim, temos que descobri-lo. Então,
porque não iria eu? Era a coisa de que eu mais gostava, viajar. Porque não?
Porque não, era isso que eu precisava de saber porque, contra tudo e todos, a
minha intuição falava mais alto, dando-me um alerta que eu não tinha como
explicar. Precisava de uma resposta. Mas como? Como sempre. Escutando no
silêncio dentro de mim.
A verdade a todas as respostas de que precisamos está sempre dentro de nós,
registada no nosso ADN. Não é mistério nenhum. A verdade está sempre connosco,
desde o início dos tempos de toda a nossa existência, ou seja, desde sempre. É
preciso saber escutá-la.
E comecei a minha busca na paz interior do meu ser. Eu queria saber se essa
viagem era para ser feita ou não. Que ela me atraía, claro, mas isso não
chegava, isso não era o mais importante. Queria tanto ir à Índia e aí estava a
oportunidade de o fazer porque até isso o Riaz tinha prometido, ir comigo à Índia, o
que não era difícil e seria uma viagem de sonho. Mas se nada se cumprisse de
acordo com o combinado e se tudo o que estava prometido não acontecesse como o
previsto, essa viagem podia ser um inferno. Mas ele não faria isso comigo!?...
Em todo o caso, as viagens foram marcadas e as férias planeadas. A família
dele telefonava e eu falava com regularidade com os irmãos que estavam lá, com
o tio, que substituía o pai que já tinha falecido e todos me incentivavam e
queriam muito que eu fosse. Eu fazia imensas perguntas ao Riaz sobre o que
eu faria, como eu me relacionaria com cada um deles, o meu vestuário, a minha
alimentação, o que visitaria, como seria o nosso relacionamento lá, visto que
ele era casado e tinha um filho, mas isso não vem ao caso agora, isso é uma
outra história.
Eu iria respeitar a esposa dele e ser-lhe-ia apresentada como uma amiga. De
resto, nós falávamos muitas vezes ao telefone e entendíamo-nos muito bem,
porque como toda a gente sabe, eles podiam contrair mais do que um casamento,
como acontecia com o irmão mais velho que vivia com duas esposas. Os mais
novos, porém, as respectivas mulheres já não estavam a aceitar isso. A
mudança começava a tomar forma e eu não queria que a mulher do Riaz me
considerasse uma segunda esposa, de jeito nenhum. Não havia a menor necessidade
disso. O nosso relacionamento só tinha acontecido por ele estar sozinho em
Portugal e eu sabia que um dia teria o seu fim. Se ele estivesse com a mulher,
jamais teria acontecido. Por isso, era importante definirmos o nosso
relacionamento no Paquistão e eu tinha-o feito prometer que, enquanto lá
estivéssemos, seríamos apenas amigos, só isso.
Enfim, eu fazia de tudo para me documentar, digamos assim, sobre essa que seria
uma grande viagem, contudo não conseguia definir-me, não conseguia ver um sim
definitivo e sem dúvidas. Por mais que tudo apontasse para lá, dentro de mim,
bem no fundo da minha alma havia uma verdade que tardava em vir ao de cima e eu
continuava sem saber o que seria porque, essa verdade, a ser não, teria que ter
tanta consistência como a que teria o sim. E por enquanto, o não, apenas se
manifestava num silêncio profundo, lá bem no fundo, fazendo-me permanecer na
dúvida. Ainda assim eu sabia que tinha de lhe dar ouvidos porque tinha um peso
enorme.
E um dia acordei com a lembrança de um sonho que tinha tido nessa noite.
Assim que acordei revi o sonho por inteiro e percebi que nesse sonho havia
algo de revelador. Eu estava no Paquistão, na casa do Riaz, à porta, do lado de
fora, nos terrenos deles e dali avistava-se uma fronteira. Essa fronteira era a
fronteira entre o Paquistão e a Índia e tinha uma porta. E para lá dessa porta,
tudo era muito bonito, mágico, verdadeiramente tentador. Não que eu visse,
porque estava do lado do Paquistão, mas os olhos da alma viam tudo isso e era
aí que eu queria ir. Eu estava com um dos irmãos do Riaz que conheci na Grécia
e pedia-lhe que me levasse lá e ele simplesmente me respondia que não, nem
pensar. E depois de revê-lo várias vezes, de facto achei que era um indicador,
não exactamente por ele me dizer que não podia ir à Índia, porque a linguagem
onírica não é só simbólica, é também codificada. Se não fosse à Índia, ainda
assim não seria uma tragédia. A tragédia escondia-se no que representava essa
“fronteira” e no que estava barrado para lá dela. Essa fronteira representava
literalmente o meu aprisionamento no Paquistão, o meu isolamento, as minhas
dificuldades, a minha liberdade posta em causa e a não acessibilidade a tudo
aquilo que eu queria e não poderia porque, fatalmente, seria feita
“prisioneira” das vontades deles às quais, aí sim, teria mesmo que me submeter
por estar na terra deles e não ter alternativa.
Durante todo o dia, enquanto trabalhava, o filme do sonho passava, passava
e tornava a passar e a leitura era sempre a mesma. Não tinha nada que saber.
Esse sonho era um indicador. Mas, até que ponto poderia levá-lo em
consideração, uma vez que estava tão mergulhada e influenciada na dúvida?
Apesar da verdade que ele continha, podia ser simplesmente o meu inconsciente a
trabalhar em favor do subconsciente. Involuntariamente eu podia estar a
atraiçoar-me. Logo, a coisa continuava a não ser decisiva e deixei o tempo
passar.
Faltava uma semana para a grande viagem que continuava de pé, e um dia
ligaram da agência dizendo que os bilhetes tinham que ser levantados no dia
seguinte sem falta. Atormentada, pensei que o tempo se tinha esgotado e que
estava na hora de saber. Mas não sabia mesmo que mais voltas dar. À noite,
quando me deitei, e deitei-me um pouco mais cedo do que o costume porque me
sentia esgotada física e psicologicamente, pedi a Deus que me trouxesse uma
resposta imediata, porque já não tinha de onde sacar essa resposta. Era o meu
último recurso e tinha plena consciência disso. Pedi com todas as forças do meu
ser. Assim, adormeci.
O Riaz não estava porque nem sempre ficava comigo. Às vezes ficava na
casa dele e nesse dia à tarde tinha ido ter com um amigo que já não via há
muito tempo. Deitei-me por volta das dez e meia da noite e devo ter adormecido
logo de seguida. Sei que acordei com a campainha de baixo a tocar. Achei que
era engano, não liguei e continuei a tentar dormir. Mas o toque repetiu-se uma
e outra vez. Olhei para o relógio, era uma e meia da manhã. O que poderia ser?
O Henrique já estava a dormir e não queria perturbar o sono dele. Contrariada,
levantei-me e fui ao intercomunicador. Era a voz do Riaz a pedir para lhe
abrir a porta, porque ele não tinha chave. Disse-lhe que não eram horas de
estar a tocar, que era muito tarde e estávamos a dormir. Pediu novamente para
abrir a porta e só abri porque estava a falar muito alto e àquela hora, ia
certamente incomodar todo o prédio, o que era uma chatice.
Num instante estava cá em cima, mas não estava sozinho. Queria entrar com o
amigo que eu nunca tinha visto e queria que eu fosse com ele levá-lo a casa, de
carro, claro. Percebi que não estava sóbrio. O Riaz não bebia álcool, por
isso, bastava-lhe uma gota para ele ficar ko. Eu estava de rastos, morta de
sono e tinha que aturar aquela cena completamente fora de contexto… alguma
coisa estava errada. Ele nunca tinha feito uma coisa daquelas, porque se o
tivesse feito antes, era certo que já não estaríamos juntos àquela altura.
Disse-lhe que se fosse embora porque não ia levar o amigo dele, nem o queria lá
em casa assim. Começou a exercer domínio sobre mim para não ficar mal visto
perante o amigo e a dar-me ordens, etc, etc. Fiquei muito nervosa e disse-lhe
que não o queria ver assim, que se fosse embora, que queria dormir e não o ia
aturar, nem a ele nem ao amigo e que chamaria a polícia se fosse preciso.
Depois desta cena, não teve outro remédio e foi-se embora. Felizmente que
ele não gostava de bebida, mas aquela cena não vinha por acaso, porque era
simplesmente a resposta que eu tinha pedido. Já não tinha dúvida alguma. A
viagem não era para ser feita porque aquilo era apenas uma pequena amostra das
surpresas negativas e desinteressantes que me aguardavam numa terra estranha em
que eu, com toda a certeza, perderia toda e qualquer “chance” de fazer o que
queria.
A fronteira do sonho jamais seria ultrapassada. Ela estava ali, bem
presente, naquele indesejável episódio e era apenas uma pequena amostra de
todos os aborrecimentos que eu teria de enfrentar em território muçulmano.
Mesmo sem saber, o Riaz tinha acabado de me fazer um enorme favor. Ele
próprio, que tanto queria que eu fosse, quase se recusava a ir caso eu não
fosse, tinha acabado de ser o portador da verdade que tão bem se escondia,
porque aquela atitude tão fora de propósito era tudo o que eu precisava. Era a
resposta indubitável de que aquela viagem não era mesmo para ser feita.
E não foi.