sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Dois de Agosto de 2016 - 62



Aeroporto da Portela, dois de agosto de 2016. Eu tinha ido levar a minha norinha e a sua filhota ao aeroporto para seguirem viagem de regresso a Nova York, onde o meu filho as esperava. Já tinham vindo todos, três semanas em Julho, para as habituais férias de Verão. E, apesar de estar o tempo todo com eles, a minha pequena Sofia estava sempre a fugir de mim, como que me achando uma “chata”. 


Pronto, criança é assim mesmo, espontânea e na maioria das vezes, incapaz de mentir. Para uma avó ausente, que só tem a neta duas vezes por ano, pelo Natal e no Verão, por tempo muito reduzido e que, para compensar a distância tenta de tudo para mimar as suas "crianças", provavelmente a Sofia lá tinha as suas razões para se afastar sempre que podia, tanto mais que tendo recebido a visita do avô apenas por um fim-de-semana, se agarrou a ele com unhas e dentes, não o largando de jeito nenhum, o que muito o encantou, claro.

 

E não é que isso me tenha deixado infeliz. Muito pelo contrário, o meu coração se enche de alegria vendo e observando a cumplicidade dos dois, ainda que eu tenha que ficar de fora. Mas nem por isso desisto de fazer tudo para, continuadamente, agradar à minha neta querida.

 

O facto é que, aproximando-se a hora da partida dos três, o meu coração de mãe e de avó, ficou apertado de mais, sentindo-se ultrajado e enganado por ter querido um pouquinho mais de atenção. Dentro de mim, muito honestamente havia tristeza e não posso dizer que fosse pequena, porque na verdade não era. Embora eu tentasse racionalizar as emoções, a verdade é que nada adiantava porque sabia, sabendo, que tinha sido pouco apreciada pela minha pequena Sofia. Não por mal. Isso também o sabia. Mas a verdade é que não tinha conseguido ter aquele bocadinho especial, aquela atençãozinha que o avô sem esforço conseguiu, ainda que num só fim-de-semana em que “roubou” o pouquíssimo que eu tinha. E assim, tentava consolar-me com o regresso no Natal, a próxima vinda para, de alguma forma, tentar recuperar um pouco desse vazio que afogava silenciosamente a minha alma, num segredo que era só meu, porque conhecendo o meu povo como só uma mãe conhece, se me tivesse descuidado e mostrado o mais pequeno sinal dessa angústia, ainda por cima corria o risco de ser mal interpretada e de ficar pior do que já estava pois, na certa, achariam não passar de uma “fantasia” minha.

 

E a hora do voo aproximava-se, enquanto eu tentava minimizar aquela dor que me sufocava. Ao chegar a casa, com toda a certeza, jogar-me-ia no sofá para chorar todas as lágrimas que tinha direito. Mas até lá, tinha que me aguentar sem dar parte de fraca.

 

O chek-in foi feito e os três lá se despediram mais uma vez, com a pequena Sofia cada vez mais distante, não só da minha vista, mas de tudo em mim. E num último instante, talvez egoísta da minha parte, mas decididamente inconformada, rapidamente me sintonizei com o divino, me perguntando “porquê?” Porque, para mim, muito no meu íntimo e muito honestamente, alguma coisa me dizia que não podia ser assim. Bem no meu fundo e de acordo com a necessidade de expressão da minha alma, algo estava realmente errado. Algo não batia certo, porque não se tinha estabelecido aquele elo afetivo entre mim e a minha neta, como sempre acontecia. Por mais que eu tenha feito e tentado, todo o tempo a sentia escapar-se e essa é que era a verdade que tanto doía em mim. E à medida que a distância aumentava, a minha dor aumentava. Faltava. Faltava tudo. Para poder minimizar a minha dor e aceitar esse facto, fiz a única coisa que podia ter feito: entreguei para Deus. Entreguei nas mãos de Deus tudo o que sentia, aquela angústia e as perguntas que não tinham resposta. Porque, até Dezembro, era muito tempo para consolidar aquela falta de harmonia. E quando eu não consigo, porque está muito além das minhas humanas possibilidades, entrego para Deus. Só ele pode. Só ele sabe.

 

De facto, eu estava certa e a resposta veio duas semanas depois, quando a minha norinha informou que viria com a Sofia mais três semanas, no mês de Agosto. Ah!... Eu nem queria acreditar. Vinha porque o trabalho a chamava temporariamente a Lisboa e a Sofia vinha para estar mais tempo com os primos. Vinha, vinha, vinha… a verdade é que vinha porque tinha que vir, porque o Universo sabia que eu precisava da presença dela como de pão para a boca. Aquilo era um presente divino. Era a consolidação da minha paz, da minha alegria, a serenidade da minha alma sedenta da comunhão que havia falhado com a minha pequena. Não era coincidência nenhuma, nem por isto nem por aquilo, era o cosmos organizando-se para reparar a desordem. Não importa… era a resposta. Essa é que era a única verdade. Mas isso só eu sabia.

 

E assim, durante três semanas estive praticamente todos os dias com a minha pequena, sendo que muitas vezes fiquei sozinha com ela só para mim, enquanto a mãe precisava de ir à Universidade por força do trabalho. Nós duas, ela e eu. E como brincámos e nos entendemos! Eu estava tendo a minha oportunidade… aquela a que eu tinha direito, todo o direito… eu sabia que essa coisa boa me tinha sido sonegada. Eu sentia o vazio. Não era uma coisa palpável, mas a minha intuição dava sinal, dava o alarme que soava dentro de mim de maneira inegável. Eu sabia que aquela outra não tinha sido a minha hora. Mas ela chegaria, caso contrário o puzzle da vida estaria todo errado e isso nunca pode acontecer.

 

E como foi bom! Foi uma recompensa sem tamanho. A Sofia resolveu trazer uma das suas bonecas e queria roupas para ela. A mãe achou que as roupas para a boneca eram mais caras do que para ela e então… então esta avó entrou em cena. As duas, avó e neta desenharam um guarda-roupa completo, tão completo, que até fato de banho a boneca ganhou e não foi um fato de banho qualquer, foi um fato de banho igual ao dela. Aquilo é que foi trabalhar e dar asas à imaginação. E a menina precisava de um casaquinho de malha quentinho, com gorro e pompom igual, porque em Nova York fazia muito frio… e num piscar de olhos apareceu o casaquinho lindo com o gorro igual, para não falar dos vestidinhos, saias, blusinhas, etc... etc… etc...

 

A Sofia estava feliz. Por cada pecinha de roupa que lhe chegava às mãos ficava deliciada, encantada e era um tal vestir e despir e depois desfilava por toda a gente “olha”, “olha”, “olha”, ela só queria que apreciassem o guarda-roupa especial que a sua linda boneca tinha ganho. A Sofia tremia de emoção. Estava completamente extasiada, felicíssima com aquela novidade. Agora tínhamos finalmente tido o nosso tempo, as nossas conversas, os nossos pactos, só nossos. Eu estava saciada e agradecida à vida que sempre me surpreende por tudo o que me pode dar, mas muito especialmente por aquela oportunidade de ouro que não era mais do que um acerto de contas. O puzzle estava completo e perfeito.

 

Mas o tempo acabou e no dia dois de agosto lá fui ao aeroporto deixar as duas para seguirem viagem. Desta vez, em paz comigo, com a vida, com tudo. Eu tinha tido a minha enorme recompensa.

 

E aqui começa outra história.

 

Enquanto aguardávamos na fila para o chek-in, atrás de nós estava uma família com várias pessoas e uma criança, um menino da idade da Sofia. Apesar de estar concentrada na minha neta, não passou despercebido o que atrás de mim se passava. Algo estava errado. Como não sou bruxa, não podia adivinhar o que era e quando assim é, penso sempre que deve ser “impressão” minha. Antes fosse.

 

Quatro adultos e a criança. Eu sentia a energia do grupo e aquilo incomodava-me. Mas porquê, é a pergunta que não quer calar, quando me apetece que nada perturbe a minha paz. O que tenho eu que ver com esta gente que não conheço de lado nenhum e nunca antes vi?! Mas ali havia no ar um mistério, um problema, um poço sem fundo carregado de uma energia pesada, tão pesada que uma simples sensitiva como eu não conseguia deixar de captar. Raios!...

 

Desliguei-me e foquei-me na minha pequena família prestes a partir para os Estados Unidos: Sofia e sua querida momy. Tudo em ordem, seguimos para a entrada das portas de embarque, até onde me era possível acompanhá-las e onde fiquei até as perder de vista. Mais um último adeus e desapareceram da minha vista. Respirei fundo, dei meia volta e preparava-me para bater em retirada quando uma criança começou a chorar, a chorar, a chorar cada vez mais alto e mais forte, num desespero desesperado.

 

Volto-me e vejo o menino que estava atrás de nós no chek-in. A criança estava agarrada às calças e às pernas do pai, um indivíduo de cerca de trinta e cinco anos. Já tinham transposto a cancela uma senhora que, pela idade e postura, deveria ser avó e em cujo semblante não havia sinal de vida. A expressão era vazia, ausente. Depois havia um casal, um dos quais deveria ser irmão do suposto pai da criança, porque uma criança só se agarra daquela maneira desesperada a um pai ou uma mãe, que evidentemente não era o caso do casal com quem a criança teria que viajar. Já todos tinham transposto os torniquetes de inspeção, com exceção do pai da criança e da criança que, decididamente, não largava o pai e toda aquela família não sabia o que fazer, muito menos o pessoal da inspeção do aeroporto. O homem andou de um lado para o outro, tentando desligar-se da criança, enquanto a família já do lado de lá puxava por ele, tentando falar-lhe, convencê-lo, mas não havia forças que o demovessem, forças mais fortes que ele, naquele momento, que o fizessem largar do pai. Ele iria para onde o pai fosse e ponto final.

 

Eu estava estarrecida, pensando, o que faz uma criança gritar daquela maneira, como se estivesse a levar uma surra de morte? E a questão era exatamente essa. Quando finalmente, os dois, foram separados e sem dó nem piedade a criança foi obrigada a passar para o outro lado arrastado a toda a força e os seus gritos de horror se ouviam e se repercutiam por todo o aeroporto, atraindo os olhares de toda a gente, por alguns segundos o pai da criança ficou imóvel, sem reação alguma, olhando a partida do menino que a única coisa que podia e queria fazer era chorar ou morrer, porque de certeza, viver, ele não queria. Aquele choro denunciava tudo isso e muito mais.

 

E quando finalmente o rapaz se virou para bater em retirada e esbarrou em mim, que estava um pouco atrás dele, sem pensar, a pergunta saiu-me, foi mais forte do que eu “why?…” e ficámos a olhar um para o outro, o que me deu tempo suficiente para me aperceber da tensão a que estava submetido. Mas a pergunta estava no ar e eu precisava daquela resposta. No mesmo instante umas lágrimas rolaram-lhe pela face e respondeu, ainda que distante e sob forte comoção “mom died…”, ao mesmo tempo que rapidamente desapareceu, ao som dos gritos continuados da criança que lutava pela sua sobrevivência espiritual, mortalmente atingida por um complexo e fatídico destino que ele não entendia, não queria e se recusava terminantemente, sob qualquer pretexto, a ser obrigado a aceitar aquilo que jamais pedira.