Aeroporto da Portela, dois de agosto de 2016. Eu tinha ido levar a
minha norinha e a sua filhota ao aeroporto para seguirem viagem de regresso a
Nova York, onde o meu filho as esperava. Já tinham vindo todos, três semanas em
Julho, para as habituais férias de Verão. E, apesar de estar o tempo todo com
eles, a minha pequena Sofia estava sempre a fugir de mim, como que me achando
uma “chata”.
Pronto, criança é assim mesmo, espontânea e na maioria das vezes, incapaz de
mentir. Para uma avó ausente, que só tem a neta duas vezes por ano, pelo Natal
e no Verão, por tempo muito reduzido e que, para compensar a distância tenta de
tudo para mimar as suas "crianças", provavelmente a Sofia lá tinha as
suas razões para se afastar sempre que podia, tanto mais que tendo recebido a
visita do avô apenas por um fim-de-semana, se agarrou a ele com unhas e dentes,
não o largando de jeito nenhum, o que muito o encantou, claro.
E não é que isso me tenha deixado infeliz. Muito pelo contrário, o
meu coração se enche de alegria vendo e observando a cumplicidade dos dois,
ainda que eu tenha que ficar de fora. Mas nem por isso desisto de fazer tudo
para, continuadamente, agradar à minha neta querida.
O facto é que, aproximando-se a hora da partida dos três, o meu
coração de mãe e de avó, ficou apertado de mais, sentindo-se ultrajado e
enganado por ter querido um pouquinho mais de atenção. Dentro de mim, muito
honestamente havia tristeza e não posso dizer que fosse pequena, porque na
verdade não era. Embora eu tentasse racionalizar as emoções, a verdade é que
nada adiantava porque sabia, sabendo, que tinha sido pouco apreciada pela minha
pequena Sofia. Não por mal. Isso também o sabia. Mas a verdade é que não tinha
conseguido ter aquele bocadinho especial, aquela atençãozinha que o avô sem
esforço conseguiu, ainda que num só fim-de-semana em que “roubou” o pouquíssimo
que eu tinha. E assim, tentava consolar-me com o regresso no Natal, a próxima
vinda para, de alguma forma, tentar recuperar um pouco desse vazio
que afogava silenciosamente a minha alma, num segredo que era só meu, porque
conhecendo o meu povo como só uma mãe conhece, se me tivesse descuidado e
mostrado o mais pequeno sinal dessa angústia, ainda por cima corria o risco de
ser mal interpretada e de ficar pior do que já estava pois, na certa, achariam
não passar de uma “fantasia” minha.
E a hora do voo aproximava-se, enquanto eu tentava minimizar
aquela dor que me sufocava. Ao chegar a casa, com toda a certeza, jogar-me-ia
no sofá para chorar todas as lágrimas que tinha direito. Mas até lá, tinha que
me aguentar sem dar parte de fraca.
O chek-in foi feito e os três lá se despediram mais uma vez, com a
pequena Sofia cada vez mais distante, não só da minha vista, mas de tudo em
mim. E num último instante, talvez egoísta da minha parte, mas decididamente
inconformada, rapidamente me sintonizei com o divino, me perguntando “porquê?”
Porque, para mim, muito no meu íntimo e muito honestamente, alguma coisa me
dizia que não podia ser assim. Bem no meu fundo e de acordo com a necessidade
de expressão da minha alma, algo estava realmente errado. Algo não batia certo,
porque não se tinha estabelecido aquele elo afetivo entre mim e a minha neta,
como sempre acontecia. Por mais que eu tenha feito e tentado, todo o tempo a
sentia escapar-se e essa é que era a verdade que tanto doía em mim. E à medida
que a distância aumentava, a minha dor aumentava. Faltava. Faltava tudo. Para
poder minimizar a minha dor e aceitar esse facto, fiz a única coisa que podia ter
feito: entreguei para Deus. Entreguei nas mãos de Deus tudo o que sentia,
aquela angústia e as perguntas que não tinham resposta. Porque, até Dezembro,
era muito tempo para consolidar aquela falta de harmonia. E quando eu não
consigo, porque está muito além das minhas humanas possibilidades, entrego para
Deus. Só ele pode. Só ele sabe.
De facto, eu estava certa e a resposta veio duas semanas depois,
quando a minha norinha informou que viria com a Sofia mais três semanas, no mês
de Agosto. Ah!... Eu nem queria acreditar. Vinha porque o trabalho a chamava
temporariamente a Lisboa e a Sofia vinha para estar mais tempo com os primos.
Vinha, vinha, vinha… a verdade é que vinha porque tinha que vir, porque o
Universo sabia que eu precisava da presença dela como de pão para a boca.
Aquilo era um presente divino. Era a consolidação da minha paz, da minha
alegria, a serenidade da minha alma sedenta da comunhão que havia falhado com a
minha pequena. Não era coincidência nenhuma, nem por isto nem por aquilo, era o
cosmos organizando-se para reparar a desordem. Não importa… era a resposta.
Essa é que era a única verdade. Mas isso só eu sabia.
E assim, durante três semanas estive praticamente todos os dias
com a minha pequena, sendo que muitas vezes fiquei sozinha com ela só para mim,
enquanto a mãe precisava de ir à Universidade por força do trabalho. Nós duas,
ela e eu. E como brincámos e nos entendemos! Eu estava tendo a minha
oportunidade… aquela a que eu tinha direito, todo o direito… eu sabia que essa
coisa boa me tinha sido sonegada. Eu sentia o vazio. Não era uma coisa
palpável, mas a minha intuição dava sinal, dava o alarme que soava dentro de
mim de maneira inegável. Eu sabia que aquela outra não tinha sido a minha hora.
Mas ela chegaria, caso contrário o puzzle da vida estaria todo errado e isso
nunca pode acontecer.
E como foi bom! Foi uma recompensa sem tamanho. A Sofia resolveu
trazer uma das suas bonecas e queria roupas para ela. A mãe achou que as roupas
para a boneca eram mais caras do que para ela e então… então esta avó entrou em
cena. As duas, avó e neta desenharam um guarda-roupa completo, tão completo,
que até fato de banho a boneca ganhou e não foi um fato de banho qualquer, foi
um fato de banho igual ao dela. Aquilo é que foi trabalhar e dar asas à
imaginação. E a menina precisava de um casaquinho de malha quentinho, com gorro
e pompom igual, porque em Nova York fazia muito frio… e num piscar de olhos
apareceu o casaquinho lindo com o gorro igual, para não falar dos vestidinhos,
saias, blusinhas, etc... etc… etc...
A Sofia estava feliz. Por cada pecinha de roupa que lhe chegava às
mãos ficava deliciada, encantada e era um tal vestir e despir e depois
desfilava por toda a gente “olha”, “olha”, “olha”, ela só queria que
apreciassem o guarda-roupa especial que a sua linda boneca tinha ganho. A Sofia
tremia de emoção. Estava completamente extasiada, felicíssima com aquela
novidade. Agora tínhamos finalmente tido o nosso tempo, as nossas conversas, os
nossos pactos, só nossos. Eu estava saciada e agradecida à vida que sempre me
surpreende por tudo o que me pode dar, mas muito especialmente por aquela
oportunidade de ouro que não era mais do que um acerto de contas. O puzzle
estava completo e perfeito.
Mas o tempo acabou e no dia dois de agosto lá fui ao aeroporto
deixar as duas para seguirem viagem. Desta vez, em paz comigo, com a vida, com
tudo. Eu tinha tido a minha enorme recompensa.
E aqui começa outra história.
Enquanto aguardávamos na fila para o chek-in, atrás de nós estava
uma família com várias pessoas e uma criança, um menino da idade da Sofia.
Apesar de estar concentrada na minha neta, não passou despercebido o que atrás
de mim se passava. Algo estava errado. Como não sou bruxa, não podia adivinhar
o que era e quando assim é, penso sempre que deve ser “impressão” minha. Antes
fosse.
Quatro adultos e a criança. Eu sentia a energia do grupo e aquilo
incomodava-me. Mas porquê, é a pergunta que não quer calar, quando me apetece
que nada perturbe a minha paz. O que tenho eu que ver com esta gente que não
conheço de lado nenhum e nunca antes vi?! Mas ali havia no ar um mistério, um
problema, um poço sem fundo carregado de uma energia pesada, tão pesada que uma
simples sensitiva como eu não conseguia deixar de captar. Raios!...
Desliguei-me e foquei-me na minha pequena família prestes a partir
para os Estados Unidos: Sofia e sua querida momy. Tudo em ordem, seguimos para
a entrada das portas de embarque, até onde me era possível acompanhá-las e onde
fiquei até as perder de vista. Mais um último adeus e desapareceram da minha
vista. Respirei fundo, dei meia volta e preparava-me para bater em retirada
quando uma criança começou a chorar, a chorar, a chorar cada vez mais alto e
mais forte, num desespero desesperado.
Volto-me e vejo o menino que estava atrás de nós no chek-in. A
criança estava agarrada às calças e às pernas do pai, um indivíduo de cerca de
trinta e cinco anos. Já tinham transposto a cancela uma senhora que, pela idade
e postura, deveria ser avó e em cujo semblante não havia sinal de vida. A
expressão era vazia, ausente. Depois havia um casal, um dos quais deveria ser
irmão do suposto pai da criança, porque uma criança só se agarra daquela
maneira desesperada a um pai ou uma mãe, que evidentemente não era o caso do
casal com quem a criança teria que viajar. Já todos tinham transposto os
torniquetes de inspeção, com exceção do pai da criança e da criança que,
decididamente, não largava o pai e toda aquela família não sabia o que fazer,
muito menos o pessoal da inspeção do aeroporto. O homem andou de um lado para o
outro, tentando desligar-se da criança, enquanto a família já do lado de lá
puxava por ele, tentando falar-lhe, convencê-lo, mas não havia forças que o
demovessem, forças mais fortes que ele, naquele momento, que o fizessem largar
do pai. Ele iria para onde o pai fosse e ponto final.
Eu estava estarrecida, pensando, o que faz uma criança gritar
daquela maneira, como se estivesse a levar uma surra de morte? E a questão era
exatamente essa. Quando finalmente, os dois, foram separados e sem dó nem
piedade a criança foi obrigada a passar para o outro lado arrastado a toda a
força e os seus gritos de horror se ouviam e se repercutiam por todo o
aeroporto, atraindo os olhares de toda a gente, por alguns segundos o pai da criança
ficou imóvel, sem reação alguma, olhando a partida do menino que a única coisa
que podia e queria fazer era chorar ou morrer, porque de certeza, viver, ele
não queria. Aquele choro denunciava tudo isso e muito mais.
E quando finalmente o rapaz se virou para bater em retirada e esbarrou em mim, que estava um pouco atrás dele, sem pensar, a pergunta saiu-me, foi mais forte do que eu “why?…” e ficámos a olhar um para o outro, o que me deu tempo suficiente para me aperceber da tensão a que estava submetido. Mas a pergunta estava no ar e eu precisava daquela resposta. No mesmo instante umas lágrimas rolaram-lhe pela face e respondeu, ainda que distante e sob forte comoção “mom died…”, ao mesmo tempo que rapidamente desapareceu, ao som dos gritos continuados da criança que lutava pela sua sobrevivência espiritual, mortalmente atingida por um complexo e fatídico destino que ele não entendia, não queria e se recusava terminantemente, sob qualquer pretexto, a ser obrigado a aceitar aquilo que jamais pedira.