terça-feira, 18 de setembro de 2018

Pôr-do-Sol - 73



Meu filho Henrique, filho único por opção e não por qualquer outra razão, foi sempre uma criança muito inteligente. É claro que todas as crianças são inteligentes e especiais para os pais, mas eu percebia que ele era esperto, inteligente e sensível, tudo mais da conta. Tímido, também, mas só até se sentir seguro, o que não levava muito tempo e então virava o oposto da timidez. Mas isso não vem ao caso. O facto é que ele era bastante esperto. Eu fazia testes de toda a ordem, a que ele respondia da forma mais eficiente e pronta possível.

 

Acontece que eu era muito preocupada com ele e sempre tentei dar o meu melhor como mãe. E isto significa dar todo o tempo possível, toda a atenção, amor, carinho, cuidar bem da sua alimentação, estar atenta a todas e quaisquer necessidades dele à medida do seu crescimento. Claro que isto é o que qualquer mãe normal faz ou tenta fazer. Com a vida do dia a dia sempre a correr, na verdade faz-se o que se pode e é preciso muita ginástica, muita paciência, muito tudo. De facto, muitas vezes me deparei com mães bem menos preocupadas que eu. Mas cada um é como é. E eu não tive um filho por um acaso do destino. O meu filho é produto de uma relação pensada, ponderada e portanto, veio na altura em que foi planeado, como muitos outros casais fizeram e fazem.

 

No seguimento da minha sempre e constante preocupação, eu queria encontrar respostas para tudo o que se relacionava com ele e tentar ser perfeita, como se isso pudesse ser possível. Hoje sei que isso é uma utopia, mas na altura eu achava que tinha que ser uma mãe perfeita e pronto. E dentro desse espírito, aconteceu um episódio interessante.

 

Eu tinha um colega de trabalho, o Tó, que por sua vez tinha um amigo de infância de quem falava muito. Segundo ele, o amigo era uma pessoa diferente. Tinha capacidades que mais ninguém tinha. E ele, Tó, já tinha assistido a coisas incríveis, mirabolantes, o que o fazia ter uma verdadeira admiração por ele, tanto, que chegava a ficar impressionado e um pouco assustado quando via uma garrafa ou um objecto de vidro partir-se, segundo ele, apenas através do poder da concentração do amigo, cujo nome não me lembro. Ele também referia que as coisas se moviam sozinhas, etc.

 

Na verdade, nunca dei muita relevância às coisas que ele relatava porque, nestes assuntos, na maioria das vezes, as pessoas vêm o que querem ver e ouvem o que querem ouvir. Eu não estava lá, portanto não podia ser testemunha de nada. Tudo aquilo era apenas a interpretação que o Tó dava. O que me tocava era muito mais a maneira como ele via e nos contava as coisas e às vezes eu até ria um pouco com aquelas aventuras. Eu e os outros, que nem sequer acreditavam, apesar dele estar sempre a insistir na  veracidade dos factos. Longe de mim duvidar dele, porque não é essa a questão. Não se tratava de acreditar ou não. É preciso compreender exactamente o que se está a passar e o Tó limitava-se a ver e ponto final.

 

Mas o que importa disto tudo é que ele dizia que o amigo sabia de tudo e dava respostas incríveis. E que havia muita gente que, sabendo como ele era, queria ir falar com ele para uma espécie de consulta, mas ele não queria que isso acontecesse, ou seja, não queria que a sua vida enveredasse por esse caminho e isso eu admirava no amigo, porque muita gente se diz “vidente” e outras coisas mais, para viverem disso. O amigo do Tó, pelo menos, tinha a sensatez e a hombridade de não ser exibido nem se achar dono da verdade, chamando a si pessoas de baixa auto estima, incutindo-lhes a suas “verdades”.

 

Num ambiente de trabalho, em geral, todas as pessoas falam umas às outras dos seus problemas. Desde o que vão jantar à discussão que tiveram com alguém. É inevitável. Conhecem-se as doenças e as maleitas de todos e as coisas boas e os podres uns dos outros. Mesmo quando as pessoas não falam muito, há sempre conversas telefónicas que não se podem evitar e onde sai tudo sem dó nem piedade.

 

Assim sendo, como eu era uma mãe sempre muito preocupada com o meu filhote, além de outros problemas à margem que foram aparecendo pela vida fora, e como o Tó era muito meu amigo, começou a tentar convencer-me de que com certeza eu ia gostar de conhecer o amigo. A princípio não liguei e realmente não passava pela minha cabeça uma coisa dessas. Queria lá saber do amigo “doido” do Tó. Eu já o achava a ele um pouco doido por conta do amigo, ia lá perder o meu precioso tempo para falar com ele?!

 

Mas o tempo foi passando e “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”. E assim, um dia, lá fui eu ter uma conversa com o amigo do Tó, que me ia receber apenas porque era um pedido dele, só por isso. Bom, tudo bem. Digamos que eu ia lá mais por uma questão de curiosidade. Mas fui.

 

Cheguei lá e era uma casa normal. O rapaz - digo rapaz porque eles eram mais novos do que eu -, aparentemente, uma pessoa normal. Recebeu-me bem, com muita calma e um clima de tranquilidade, sempre como colega e amiga do Tó. E sempre sem me olhar muito de frente, nem nos olhos, cabisbaixo, dirigiu-se para uma mesa, pedindo-me que me sentasse. Depois, sentou-se na minha frente e assim começámos a falar, normalmente, sem nada de transcendente. A nossa conversa, como não podia deixar de ser, começou pelo Tó e o trabalho. Depois, já não sei o rumo que tomou, mas a páginas tantas, falámos de mim e falar de mim era equivalente a falar do meu filho. E foi aí que surgiu uma nota curiosa. Eu apenas lhe disse que tinha um filho. E ele apenas me perguntou o nome e a data de nascimento. Tinha uma caneta e um bloco de papel onde escreveu os dados que lhe dei.

 

Atenta, reparei que transformou todas as letras em números que acrescentou à data do nascimento e o resultado, não sei como, era um. Escreveu o número um e sublinhou-o riscando no papel várias vezes. Então, sim, olhou para mim e começou a falar. Eu não tinha dito nada sobre o meu filho, apenas a data de nascimento e o nome. E ele disse “o seu filho é um”.

 

Um pouco ansiosa, fiquei à espera que ele se explicasse. E olhando para mim, explicou que ele era uma inteligência acima da média, etc, etc, etc, e explicou porquê, coisa que eu não estava à espera. Nunca tinha passado pela minha cabeça que as pessoas são o que são por isto ou por aquilo, ou pelo menos, pela razão que ele apontou. Que o meu filho tinha sido gerado por “vontade” e não por amor. É claro que casei por amor, um grande amor e tive o meu filho por causa do amor que nos unia. Mas o que ele queria dizer era outra coisa. Ele queria dizer que o meu filho tinha sido concebido num momento que surgiu da vontade de ter um filho, portanto da vontade de engravidar. E isso era correto. Eu sei exactamente o dia, a hora, o local. Eu sabia que nesse momento o meu filho ia ser gerado. Nós queríamos. Por isso eu tinha essa consciência, ou seja, na altura em que estávamos a ter relações eu sabia que era chegado o momento da sua concepção. Mas podia ser outro momento? Não, não podia. Era aquele. Foi naquele dia, naquela hora.

 

E o que ele queria dizer era exactamente isso, ou seja, independentemente da nossa relação ter sido uma relação de amor, nem podia ser de outra maneira, o momento da concepção tinha sido planeado, tinha sido o resultado de um acto da vontade soberana. E isso tinha tido um peso enorme no seu ADN (!?).

 

Nesta altura, eu estava a falar com alguém que conseguia captar a essência das coisas e não com o amigo, ou um amigo do Tó. Aquela criatura já era alguém que falava a minha linguagem. Não era o sujeito amigo do Tó que partia vidros com a concentração do olhar, nem fazia os objectos se moverem sozinhos. Não foi nada disso que aconteceu e eu já nem me lembrava dessas coisas. Aliás, nunca foi minha intenção ir lá para ver alguma coisa que se relacionasse com isso. Se o Tó via eu não vi. Se o Tó queria ver eu não precisava nem queria ver. Aquela criatura era apenas um ser humano com uma alma sensível e que tinha a capacidade de “ver” um pouco mais longe do que qualquer outro simples mortal. E só por isso já valia a pena ter ido lá.

 

Depois, ele perguntou também o meu nome e a minha data de nascimento. Voltou a transformar aquela coisa toda em números e perguntou-me como é que eu costumava assinar. Pelo menos ele era original nas questões que punha e isso também era interessante. E assinei para ele ver. Então sugeriu-me como deveria passar a assinar. E explicou que era uma questão kármica. Também nunca tinha pensado nisso, mas a explicação dele não era descabida, fazia algum sentido. E explicou que a vida me correria melhor se passasse a assinar da maneira como ele indicou. E voltou ao assunto do meu filhote, dizendo-me para não me preocupar com ele porque estava tudo bem. “Apenas – dizia -, leve-o, de vez em quando, a ver um pôr-do-sol”. Um pôr-do-sol (?), repeti – era bonito as coisas que ele dizia - sim, um pôr-de-sol, para que não corra o risco de ficar demasiado “cerebral”. Um pôr-do-sol ajudá-lo-ia a “humanizar-se” e a não ficar demasiado centrado nas coisas que exigem muito trabalho do cérebro. E fiquei a planar com estas palavras, com esta ideia dele, assim, tão suigéneris, por assim dizer.

 

No outro dia voltei ao trabalho e comentei por alto com o Tó e com todo o pessoal, que tinha gostado de conhecer o amigo dele. Perguntou se tinha achado esquisito e respondi que não, tudo normal, sem entrar em detalhes.

 

Um dia, num belo final de tarde nos Açores, onde íamos sempre passar férias por causa do meu marido ser açoriano, indo por uma rua abaixo no centro de Ponta Delgada, S. Miguel, em direcção à marginal, portanto, de frente para o mar e de mão dada com o meu filho, que era muito pequeno, deparei com um pôr-do-sol magnífico. Era realmente uma coisa maravilhosa. E quanto mais o apreciava mais deslumbrante me parecia. Não tinha explicação. Tão bonito que pensei que nesta altura toda a gente tinha que estar a apreciar uma coisa daquelas, ou seria sempre assim e eu só tinha dado por isso naquele dia? Aquilo era simplesmente belo. Não havia palavras que descrevessem um cenário daqueles. Mas também podia ser exagero meu, sei lá. E segurando na mãozinha do meu filho, vieram-me ao pensamento as palavras do amigo do Tó. A cena do pôr-do-sol para o “humanizar”. Como é que uma criança de cinco aninhos observa um pôr-do-sol? Com o mesmo espanto e a mesma admiração que um adulto? E mesmo os adultos, quantas vezes referem um pôr-do-sol ou uma outra beleza qualquer, apenas para ficarem bem vistos, para que os outros os vejam como pessoas bonitas e sensíveis, etc…. (?!) E a mim também me podia ter passado despercebido. Mas não, não era possível. Apetecia-me gritar para que toda a gente visse o que eu estava a ver. O céu parecia de veludo azul. Era simplesmente belo! E uma criança tão pequena também teria essa noção, essa percepção? Talvez esse fosse um momento, o tal momento certo para chamar a atenção do meu pequeno sobre a magnificência daquela beleza ímpar!? Como iria ele interpretar e reagir a isso? Seria importante para ele? Ou seria eu a exagerar, empolgada pelo espírito?

 

Sempre em direcção ao mar, com todas estas questões e dúvidas pairando pela minha cabeça, e antes de ter tempo de falar alguma coisa, da maneira mais surpreendente possível, com um certo e delicioso espanto, como se tivesse entrado no meu pensamento, arrancando de mim as palavras que nunca esquecerei, ouço o meu filhote na sua vozinha de criança: “mãe… a mãe já viu como está bonito o pôr-do-sol?!”… … …

 

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Lua branca, lua cheia - 72



Sempre gostei de escrever. Mais até do que gostar é uma enorme necessidade. Escrever é um refúgio. Durante muitos anos escrevi poesia porque a poesia para mim é quase um código. E era nele que me decifrava. Até que um dia dei a oportunidade à prosa e a prosa saiu de vez.

Escrever é importante, tanto quanto dormir, comer, beber… é quando me entrego a mim mesma e me retrato. É quando exponho a verdade mais verdadeira. É quando me descubro e me desnudo. Tudo fica mais fácil, mais transparente, mais cristalino. E mais belo também, como a beleza duma lua iluminada.

Através da escrita estou sempre a desvendar mistérios e a descobrir quem sou e a que vim. Depois, há o resgate. E isso não é uma tarefa fácil. Mas é importante fazê-lo. São as lembranças que pensamos estarem enterradas e não estão. Não podem estar. Boas ou más elas estão sempre aí, presentes, ainda que adormecidas, mas sempre intactas, ao nosso lado. Somos seres multifacetados. Como o açúcar se dissolve na água, assim também o nosso ser essência se dilui no éter, fundindo-se com o cosmos e por aí vai ficando, sem termos consciência disso. Mas ele está lá inteiro, tal qual o açúcar na água.

Uma amiga muito especial, psicóloga clínica, contou-me uma vez uma história interessante. Que tinha ido a casa de uma colega onde estava um grupo de amigos reunidos com um indivíduo mais velho, professor universitário. Ao vê-la, sendo que nunca antes se tinham visto, olhou-a com uma certa surpresa para logo de seguida se surpreender a si mesmo, bem como a ela, dizendo: “ah, você é a tal… quero dizer, uma que faz parte do grupo que actua comigo nos trabalhos de cura durante a noite…”(?).

Quando ela fez esta conversa comigo não entendi ou fiz que não entendi, pois precisava de algo mais concreto. Mas ela continuou a conversa, explicando-me que também não tinha entendido o que o professor lhe teria dito. Então ele sentou-se com ela e começou a falar-lhe do projecto que tinham e do qual ela fazia parte, sem saber.

Contando-me isto ela ria, dizendo-me que não fazia a menor ideia de que durante a noite andava por aí auxiliando pessoas, levando um pouco de alívio a quem dele necessitava. Achava tão estranho quanto curioso. Mas o professor sabia do que falava e ela não o poria em causa. De certa forma ficava até agradecida por saber desse pormenor, que para ela representava um “mistério” ainda que fascinante. E contava-me aquilo numa tentativa de obter da minha parte um entendimento razoável, porque não era assunto para falar com qualquer pessoa.

Na altura, de facto, parecia-me coisa de loucos, mas só na aparência, porque há muito aprendi que as maiores verdades e as coisas mais sérias se escondem por detrás dos véus invisíveis do inconsciente. É verdade. O inconsciente sabe tudo. É uma janela fechada à espera de ser aberta de par em par.

Passaram-se uns bons anos e cada vez percebo melhor esse episódio estranho ou insólito da vida dela. Basta-me pensar que quando me deito e adormeço, só acordo para a realidade no dia seguinte, ou antes, não importa. O facto é que quando volto à realidade sei que estive ausente. Então, se estive ausente, por onde andei? E não raras vezes me recordo perfeitamente dos sítios e lugares por onde vagueei, das pessoas com quem estive, das coisas que fiz e que falei. Outras vezes não. Contudo, sempre que acordo, tenho a noção de que estive ausente. É uma sensação de tal modo forte que até hoje fico surpreendida e maravilhada, depois de mais um sono, por estar de volta ao mundo físico. É o planeta terra a chamar. Se é bom adormecer, também é bom acordar para um novo despertar.

A alma e o espírito, sendo coisas diferentes, trabalham para o mesmo fim - é sabido - e se o espírito tem liberdade infinita, a alma tem uma pluralidade fragmentária igualmente infindável. Logo, eu não sou só eu, ou seja, aquela que mostro ou que aparento ser, é apenas uma das muitas versões que eventualmente posso ser. E se durante o dia, acordados, fazemos determinadas tarefas e agimos em concordância com o meio, de forma coerente ou não, durante a noite, em pleno sono, em que alma e espírito se libertam da matéria para dar vazão ao ser genuíno que somos, porque não aceitar que alguns de nós tenham a capacidade de se unir numa corrente solidária, orientada pelas leis cósmicas, organizando-se de forma inteligente, a bem da humanidade? Eu sei que à primeira vista isto parece uma coisa muito louca. Mas não estará isto relacionado com o princípio da questão dos mundos paralelos?

O que sei é que durante a noite, através do sono, vagueio sem destino. Quando me recordo, sei que estive lá, mas quando não me vem nada à lembrança, aí é que reside o maior mistério. Onde estive? O que fiz? Parece que venho dum buraco negro. Do vazio. Mas isso não existe. Apenas, não me lembro. Mas porque não me lembro sempre? Deve haver uma razão. E o facto de não me lembrar altera alguma coisa?

Claro que para tudo isto tem que haver respostas. O facto de não as termos não significa que não existam. Tudo tem uma razão de ser, um propósito. Nada é ao acaso. Tudo o que não sabemos é apenas “consciente”. A resposta para tudo está no nosso inconsciente. Ir lá buscá-la é que é o problema. É estranho, porque isso significa que não comandamos zonas do nosso cérebro. Confiamos tanto e entregamo-nos à inteligência artificial que passa pela robótica, mas não conseguimos acessar o nosso próprio computador humano!?

Quanto maior for a nossa capacidade de fusão com o cosmos, maior será a nossa capacidade de entendimento dos mistérios que pensamos desconhecer. Os nossos olhos, os olhos da alma, vão-se abrindo magicamente à medida que penetramos na poeira cósmica e mergulhamos na profundidade etérica. A morada do mistério. Do mistério de todos os mistérios. A vida e a luz.

E é por isso que uns têm a capacidade de durante o sono se desdobrarem para a realização de tarefas que durante o dia, no mundo real não podem, porque não têm tempo ou simplesmente porque são tarefas que estão para além das suas possibilidades no mundo material. A matéria limita, atrofia, bloqueia. Na matéria reside o medo que fora dela não existe. Precisamos do mundo material para aprender, mas somos muito mais do que isso.

Assim sendo, não parece tão estranho, tão surreal, pensar que seres de luz se manifestem durante a noite, colaborando em missões verdadeiramente válidas, onde o mundo das trevas se desfaz para dar lugar ao bem maior do amor incondicional.

Pelo muito que há a fazer e a trabalhar nesse campo, não me incomodava em nada fazer parte desse projecto, mas provavelmente não serei para aí chamada, pois muito caminho tenho ainda pela frente. Mas quem sabe um dia muitos de nós não seremos também chamados, por estarmos habilitados a entrar nesse ou noutro plano divino tão sublime. Por ora contento-me com a minha escrita.

Muitas luas passarão, mas uma especial virá. Quem sabe?!


quarta-feira, 25 de abril de 2018

A avó Marta - 71



Eu estava em casa dos meus tios em Beja. Não sei bem porquê. Alguém achou que era bom eu ir lá passar uns tempos. Nessa altura eles ainda não tinham filhos, mas havia o Fausto, um rapazito que vivia com eles. Era uma história esquisita que me incomodava um pouco. Filho de pai incógnito, a mãe raramente o via. Os meus tios trabalhavam, pelo que só regressavam ao fim do dia. Em casa ficava a avó Marta, o Fausto e agora eu.

 

Não havia nada para fazer e eu e o Fausto não tínhamos a menor intimidade. Éramos perfeitos estranhos um para o outro. Um dia, sem saber o que fazer, peguei num objecto qualquer que estava no parapeito duma janela e conforme peguei, caiu no chão partido em dois. Fiquei muito atrapalhada e aflita, achando que iam ralhar comigo. Contudo, contrariamente ao que era esperado, a avó Marta olhou para o Fausto, que estava meio escondido atrás da porta do quarto, e começou a ralhar com ele muito alto e a chamar-lhe nomes. Muito zangada ela dizia, “olha o que fizeste, não tens vergonha, porque é que partiste aquilo?”, etc… no que me deixou muito baralhada. Então eu é que tinha partido o objeto e o coitado do Fausto é que pagava? E queria assumir a culpa, de acordo com o que ela tinha visto, mas ela não me dava tempo e insistia em barafustar com ele. O Fausto muito vermelho e com o olhar de espanto recusava-se de todas as maneiras e feitos a aceitar a culpa, apontando para mim, acusando-me com todas as evidências do que parecia ter toda a razão. Mas a coisa não resultava. A avó Marta estava cada vez mais chateada e aborrecida com ele, tanto, que até lhe atirou com um chinelo acima, enquanto o Fausto a todo o custo continuava a fazer-se de vítima. Achei aquilo muito estranho!

 

Éramos crianças e eu não entendi logo à primeira. Levou tempo até cair a ficha. O que aconteceu é que de facto aquilo tinha sido quebrado pelo Fausto que, para ninguém saber, voltou a pôr tudo no lugar, muito quietinho, convencido de que assim se tinha livrado da culpa. E não sei como, mas a avó Marta sabia. Parece que ela tinha visto, mas na altura não esteve para se chatear. Agora que a culpa recaía sobre mim ela tratou de chamar o rapaz à atenção. Mais tarde o Fausto, também não sei porquê, foi para um internato, um orfanato, e nunca mais se ouviu falar nele.

 

Esta era a avó Marta, que entrou para a família por conta de um tio meu, irmão da minha mãe, casado com uma senhora que, por ter perdido os pais cedo demais, foi criada pela avó – o que para nós seria uma bisavó -, uma figura muito especial porque, segundo diziam, falava com os mortos, ou seja, era médium.

 

Sempre a conheci velhinha, de cabelos completamente brancos, vestida de preto e com um semblante sofrido. A vida não lhe tinha sido particularmente fácil, era tudo o que eu sabia. E sempre me lembro dela queixosa por males físicos, mas também por outros. O facto é que a avó Marta tinha fama de médium e todos a viam e falavam dela como uma pessoa muito especial, diferente das outras. E não raras  vezes ouvia da boca dos meus tios que, quando ela estava pior e a levavam ao médico, o médico simplesmente dizia que o “problema” não era do foro dele, transcendia-o, o que confirmava a capacidade mediúnica da senhora.

 

Claro que tudo isso fazia com que eu também a visse como um ser “estranho”, misterioso, diferente das outras pessoas. Se eu acreditava ou não, isso não estava em causa, mas que ela era diferente, isso era. E fui crescendo com este assunto sempre em torno do nosso universo familiar. No entanto, e apesar das histórias que estavam sempre a contar das coisas que ela transmitia, etc., passava-me tudo um pouco ao lado porque me limitava a ser simplesmente espectadora, isto é, aquele assunto, verdade ou mentira – mentira no sentido de fantasia –, não era meu, era dos meus tios e daqueles que acreditavam piamente. O facto é que, volta e meia, lá vinha mais um episódio estranho, quanto mais não fosse, pelo modo como era apresentado. E já ninguém estranhava. Para os outros fazia sentido, o que eu admirava, porque não conseguia aceitar aquilo como uma verdade absoluta. Mas isso também não importava nada porque, na verdade, eu pouco contava. Na maior parte do tempo eu achava que ninguém se preocupava com a minha pessoa, com a minha existência.

 

E fui crescendo com esta coisa da mediunidade, sem saber muito bem o que pensar acerca disso. Depois, dava para perceber que era um assunto um pouco “tabu”, embora toda a gente falasse disso abertamente. Apenas não podíamos fazer perguntas porque à partida, não era um assunto para todos. E sempre que vinha mais uma história em que todos ficavam meio pasmados com o que ouviam, eu sempre me interrogava porque razão haviam de acreditar sem quaisquer reticências? A possibilidade de ser verdade era exactamente igual à de ser uma grande mentira!? Mas isso não estava em causa.

 

A avó Marta vivia com os meus tios em Beja e de longe em longe, natal, páscoa, verão e outras datas, vinham a Setúbal, a casa da minha avó, onde eu vivia com a minha irmã e os meus primos. Era uma casa cheia. A minha irmã e eu, porque a nossa mãe falecera muito nova, e os meus primos porque os meus outros tios viviam em Lisboa e a minha avó queria os netos com ela. Era mais ou menos assim.

 

Um fim de semana qualquer especial, lá vieram os meus tios de Beja mais os meus primos ainda muito pequenos e lá veio a avó Marta. Aquela casa comportava gente que nunca mais acabava. Havia sempre lugar para mais um. Quando assim era, havia colchões que se punham no chão para a criançada dormir. Depois vinham as refeições e era uma azáfama naquela cozinha que primeiro que nos sentássemos à mesa era complicado. E quando a cozinha, enfim, ficava limpa e toda arrumada de uma refeição, era hora de recomeçar tudo de novo.

 

Nesse fim de semana a avó Marta assim que chegou foi directa para a cama porque não se sentia nada bem. A criançada toda junta era uma folia, da qual eu era a mais velha porque, primeira filha, primeira sobrinha e primeira neta, e a primeira também em quem tudo era descarregado, desse por onde desse, apenas porque a minha mãe já não existia e o meu pai estava ausente, só por isso.

 

E assim a avó Marta estava na cama, meio recostada, descansando da longa viagem, enquanto todos iam chegando perto dela com o cuidado de saber se estava melhor, se queria alguma coisa, etc… até que, a páginas tantas, a avó Marta começou a ficar mais agitada e a dizer coisas que aparentemente não faziam muito sentido. A voz dela era grossa e embargada. Ela nem bem falava, mais balbuciava. Parecia que as coisas lhe saíam sem o controlo dela. E começaram a aproximar-se numa tentativa de a acalmar, mas ela continuava naquela espécie de delírio, ao mesmo tempo que parecia querer gesticular. Era estranho. Porque não a mandavam calar de vez e ficar quieta(?), pensava eu. Em vez disso, olhavam-na na expectativa de que ela conseguisse dizer algo que fizesse sentido.

 

Entretanto, a minha irmã um pouco assustada, começou a espreitar, tentando perceber o que se estava a passar. E por ver a minha irmã intrigada com a situação, aproximei-me dela para a tranquilizar. A avó Marta toma consciência da nossa presença e é então que acontece um facto extraordinário, que muda completamente a minha maneira de ver, de lidar e de acreditar naquilo que até então eu achava uma verdadeira fantasia. A avó Marta, com a voz agora bastante mais clara, aponta para todos, dizendo: “eu não quero flores na campa, eu quero que tratem bem as minhas filhas que são as minhas duas únicas flores”.

 

“Eu não quero flores na campa…” isto eu podia reconhecer como linguagem e pensamento muito próprios da minha mãe. Isto era dela. Como ela o tinha dito não sabia. Mas ela tinha captado. E …”eu quero que tratem bem as minhas filhas…”, porque ela sabia melhor do que ninguém, o quanto estávamos a ser ignoradas e postas de lado, o que para uma mãe amorosa era uma dor tamanha. “Que são as minhas duas únicas flores”… isto era linguagem da minha mãe! Além disso, a energia que avó Marta tinha imputado àquelas palavras, tudo junto, era a minha mãe sem tirar nem pôr, disso eu não tinha a menor dúvida. Agora eu estava rendida. Não tinha a menor dúvida dessa coisa a que chamavam mediunidade. Estava rendida e achava aquilo uma coisa verdadeiramente transcendente, sobrenatural.

 

Por um longo momento fizera-se silêncio e avó Marta muito cansada, agora sim, descansava. As flores a que ela se referia, a minha irmã e eu, olhávamos uma para a outra sem saber o que pensar. Todos sem excepção tinham mergulhado no silêncio, pensando sabe-se lá o quê. Esquecido aquele momento, tudo voltou ao normal como se nada tivesse acontecido e sem que nada tivesse sido levado em conta, o que muito me surpreendia.

 

As flores a que a avó Marta se tinha referido continuaram meio ignoradas, sobrevivendo no meio das pedras, até ao dia em que um sol as libertou e as fez brilhar de vez.




quarta-feira, 28 de março de 2018

O Cunha - 70



O Cunha era um grande amigo. Meu colega de trabalho, embora em áreas diferentes. Muitas vezes almoçávamos juntos em grupo, no refeitório da empresa ou em qualquer restaurante fora, quando nos apetecia arejar.

 

O Cunha era uma pessoa do bem, isto é, uma pessoa bem formada. Um excelente profissional, enfim, uma pessoa como deve ser, pelo que tinha muitos amigos e todos gostavam dele. E talvez porque tinha mais dezassete anos do que eu, tinha a mania de tomar conta de mim. Na verdade, estava sempre preocupado com o que eu comia, quando almoçávamos juntos, porque sempre fui magra e ele achava que era uma questão de alimentação. Não era nada, era eu que era assim mesmo, como ainda hoje o sou.

 

Mas ele estava sempre a mandar-me comer, a vigiar se eu comia tudo e sempre a tentar acrescentar mais alguma coisa à minha refeição, dizendo sempre o mesmo, que o que eu precisava era de comer e beber. Sim, porque, se eu lhe conhecia algum defeito era, talvez, a bebida. Gostava muito de beber. Não que alguma vez o tivesse visto bêbado nem nada que se parecesse mas, realmente, sempre achei que bebia um pouco demais. Era às refeições, no fim das refeições, com o café e fora das refeições também. Sempre havia alguma coisa que se adequava à hora, ao momento e isso era álcool, nada mais. Sempre achei que era demasiado, mas ele era maior e vacinado e não tinha idade para mandarem nele, muito menos eu. Ele é que sabia da vida dele.

 

Posso ainda dizer que era um indivíduo sempre muito bem disposto, quase permanentemente com um sorriso nos lábios, bem parecido, boa figura, um tipo de homem que em geral agrada a qualquer mulher. Simpático, educado, polido, nada inconveniente, pelo contrário, enfim, uma pessoa afável, bem disposta e de bem com a vida. Nada a apontar. E na verdade éramos muito amigos, embora ele fosse amigo de toda a gente.

 

Um dia, por conta da idade, reformou-se e foi-se embora. E uma ou outra vez foi lá de visita, como fazia toda a gente que se ia embora. É difícil, quando se passa toda uma vida ali, o trabalho é a nossa segunda casa. No meu caso foram trinta e oito anos, o que é uma vida e tanto. Não é fácil sair e de um dia para o outro cortar com tudo. Por isso, uma vez ou outra, aparecia por lá para matar saudades. Depois, como também é normal, as visitas começam a ser cada vez mais espaçadas, até que um dia se corta de vez o cordão umbilical. É assim com toda a gente ou pelo menos com a maioria. Mas, porque há sempre um amigo que ainda vai à empresa e se vêm lá fora, vai-se sabendo da vida de cada um.

 

Entretanto, com o passar dos anos, chegou também a minha vez de me vir embora e o processo não escapou à generalidade. Durante dois anos, de vez em quando eu ia matar saudades. Depois, as minhas idas começaram a rarear, até que também me desliguei completamente das idas à RTP. Mas as notícias acabam por nos chegar. O mundo é pequeno e sempre aparece alguém que sabe deste e daquele. Assim, um dia, alguém me disse que o Cunha estava doente. Doente? Cancro nos intestinos. 


Por esta altura ele estaria muito próximo dos oitenta anos, de qualquer modo lamentei. E volta e meia pensava nele. O tempo foi passando, até que um dia, alguém me telefonou comunicando o seu falecimento. Oh, fiquei muito triste, mas a vida é isso mesmo: nascer e morrer. Contudo, com a morte dele muitas lembranças encheram o meu pensamento. Comecei a recordar muitas coisas que tínhamos vivido, muitas situações engraçadas, muitos momentos bem passados. Eram boas as lembranças mas não deixavam de me transmitir uma certa nostalgia e um certo pesar por tudo o que já ia algures no tempo distante. 

Não me preocupando em demasia, achando que aquilo era normal, deixei as lembranças à solta, fluindo livremente. E durante uns dois dias dei comigo a pensar sempre no mesmo. Percebi que lamentava o facto de não me ter despedido dele. Era isso. Eu gostaria mesmo de o ter visto recentemente, antes de partir. Mas a vida não permitiu que tal acontecesse. Apenas isso. Contudo, eu lamentava, e à medida que tomava consciência disso, uma tristeza aflorava. Eu achava que não era motivo para isso, mas o facto é que sentia tristeza por não me ter despedido dele. Parecia que alguma ponta da vida tinha ficado solta e não tinha sido rematada - era essa a sensação -, o facto é que não havia nada a fazer e remediado está o que não tem remédio, portanto, tinha que me conformar com a situação.

 

E então, passou um dia e uma noite e mais um dia e outra noite e eu sempre pensando naquilo. Na terceira noite o inusitado aconteceu. Foi uma coisa espectacular. Sempre que a vida toca os planos superiores é uma coisa sensacional. Foi o que aconteceu.

 

Na terceira noite, mal acordei de manhã, veio-me à lembrança o sonho lindo que tinha tido. Lindo, porque aquilo era a resposta ao meu desconforto, à minha sensação de algo que não se tinha completado, que tinha ficado em suspenso e precisava de ser consolidado para então, sim, finalizar.

 

No meu sonho, o Cunha aparecia vindo de cima, impregnado no éter e, embora vestido normalmente, estava completamente envolto em luz. Apresentava-se muito bem disposto, como se estivesse cheio de vida e saúde, como sempre aparentara e também como sempre, sorrindo. E eu olhava para ele, impressionada com com aquela visão tão cheia de luz. Era uma visão linda! Mas acima de tudo ele estava ali, mais do que completo, mais do que confirmado. 


Agora eu já não tinha nada a lamentar. Naquele momento estávamos os dois no mesmo plano, ou seja, não havia um que estava morto nem outro que estava vivo. Coexistíamos na mesma dimensão. Não sei qual, mas aquela que permite estarmos visíveis e comunicáveis. E isto é uma coisa extraordinária!

 

É claro que já me tinha acontecido outras vezes, com outras pessoas, mas de cada vez que isto acontece é sempre como se fosse uma primeira vez. A alma vibra a uma frequência sem limites e o espírito acede a um plano verdadeiramente transcendente. Naquele momento mágico, a única coisa importante é que eu estava na presença do meu amigo, apesar de ele ter partido. Também não sei qual é a capacidade que nos permite este tipo de comunicação; não sei qual é o neurónio que funciona para isto, nem o tipo ou qualidade de ADN que contem este mistério e que proporciona este fenómeno. Não sei. Eu realmente não sei, nem sei se alguém sabe. O que eu sei é que a comunicação a este nível me fascina e me deslumbra de uma maneira verdadeiramente incrível e apaixonante. E mais uma vez eu estava dentro dela, olhando o Cunha ali materializado aos olhos da minha alma. E mergulhada no sono do silêncio da noite, de forma telepática, ia recebendo a mensagem que ele me passava: “vim para me veres... para te dizer que estou aqui e estou bem... vim para te dizer adeus”…

 

Acordada e com os olhos bem abertos revia, extasiada, aquele sonho fantástico, lindo e maravilhoso, que trazia de volta a minha paz. E feliz, pensava para comigo mesmo: ele veio em resposta ao meu chamamento. Ele veio!

 

Agora tudo estava bem.




terça-feira, 27 de março de 2018

A máquina fotográfica - 69



Era uma vez uma máquina fotográfica… que era para ser um presente de alguém muito especial. Alguém com quem vivi sete meses, com quem planeei ficar junto o resto da minha vida, etc…, etc..., etc… e que, ao fim de sete meses, em vésperas de fazermos a viagem que tínhamos idealizado para a nossa de lua de mel, que marcaria também o nosso casamento, adoeceu repentinamente e, em menos de uma semana, partiu para não mais voltar.

 

Seis anos depois deste triste e infeliz acontecimento, consigo falar perfeitamente sobre o assunto, porém, na altura e durante bastante tempo, foi difícil. Foi uma tragédia e tanto na minha vida. Mais uma a somar a outras.

 

Eu sempre gostei de fotografar e tinha uma máquina pequena que cabia em qualquer mala de senhora. O Álvaro dizia que eu levava jeito para a coisa e gostava que eu fizesse um curso para aprender e melhorar. Ao mesmo tempo, como era engenheiro na Sony, mandou vir uma máquina profissional ou quase, para me oferecer. Máquina essa que eu não cheguei a ver porque estava guardada no gabinete dele, na Sony, e que seria para me dar na hora certa. Nem questionei nada, posto que na cabeça dele estava tudo sempre muito bem pensado, planeado e nada falhava. Cabia-me apenas esperar que ele decidisse a tal “hora certa”.

 

Todavia, eu sabia qual era a máquina e quais as características dela, porque ele tinha dado as dicas. Não era segredo. Ele apenas queria esperar uma altura qualquer especial. E aparentemente nada disto deu certo, uma vez que ele partiu repentinamente e, portanto, aparentemente - repito - tudo foi para o espaço. Tudo. Não restou nada, a não ser as lembranças daquilo que foi muito bom. E com as voltas que o destino nos trocou, nunca mais pensei na máquina. Tinha tantas outras coisas com que ocupar o meu pensamento! Com a partida inesperada dele fiquei meses à deriva, pairando, sem conseguir reagir, à espera que aquela dor me desse tréguas. E o tempo foi passando. É verdade, o tempo foi passando e levando aquela dor, ao mesmo tempo que, conforme podia, ia apanhando todos os cacos do que tinha restado de mim e um por um, fui colando no lugar certo, até me refazer completamente.

 

Um dia, pegando na minha velha máquina, veio-me à memória a tal especial que ele tinha mandado vir para mim. Até isso eu tinha perdido, muito embora esse fosse o menor de todos os males. Mas ele queria tanto que eu tivesse uma máquina boa e esse prazer não lhe tinha sido concedido. Mas eu haveria de ter uma máquina decente, quanto mais não fosse, em sua memória. Haveria de comprar uma e pensar que tinha sido presente dele na mesma, porque a intenção é que contava. Pois bem, era isso que eu faria.

 

Nesse sentido, liguei para um dos colegas dele que eu conhecia bem e falei da minha intenção de adquirir uma máquina boa para melhorar a qualidade do meu registo fotográfico. É claro que nada falei sobre a outra que ele tinha mandado vir, porque iria parecer que eu a estava a pedir e isso não fazia muito sentido. Perguntou exactamente em que é que eu estava a pensar e respondi, com toda a franqueza, que não fazia ideia. Ele disse que falaria com outro colega que estava mais dentro do assunto e decidiriam o que fosse melhor para mim. Pedi-lhe que tivesse em conta o preço, só porque não queria uma coisa excessivamente cara e assim ficou combinado que resolveriam o assunto por mim. Finalmente eu ia ter uma máquina a sério, conforme o Álvaro queria. Não sabia quanto tempo poderia demorar, mas ela viria, era só esperar e também tinha a certeza de que o que viesse era bom, sem ter de me preocupar se tinha feito a escolha certa. Também era certo que não seria a mesma, mas a intenção é que contava.

 

O tempo passou. Passa sempre. Felizmente, para o bom e para o mau. Não pára. E então, um belo dia, o Luís telefonou-me para saber se eu podia ir ter com ele à RTP, porque tinha que lá ir com o colega a quem tinha pedido ajuda para a máquina e já a tinham. Ah, fiquei toda contente! E assim marcámos encontro no gabinete do meu antigo chefe, porque, embora eu já estivesse reformada, mantinha ligação com ele. Por lá estive toda a tarde, até que eles apareceram com um saco da Sony.

 

O Luís era um amigo muito especial. Foi ele que me apresentou o Álvaro e foi ele que esteve por dentro e a par de tudo, aquando do problema de saúde que o levou sem volta. 

 

Eles chegaram sorridentes, cumprimentámo-nos todos, fizemos perguntas uns aos outros sobre como ia a saúde, a vida em geral e finalmente deram-me um saco grande dizendo que era a máquina. Fiquei muito feliz e comecei a abrir a embalagem para ver a máquina. Era uma máquina a sério, que metia respeito. Para quem tinha uma que cabia em qualquer lado, não estava nada mal. Eu sabia que eles resolveriam o assunto. Mas ao olhar mais atentamente, de repente, pensei que aquilo deveria custar um balúrdio e talvez fosse mais do que eu podia pagar. Havíamos de ver, porque talvez pudesse pagar em duas vezes, por exemplo. Não me preocupei muito porque confiava neles e sabia que eles confiavam em mim.

 

O Luís pediu ao colega e amigo para me dar umas dicas e assim ele começou a dar umas explicações sobre o funcionamento: para que serve isto e para que serve aquilo e por aí fora. Eu estava radiante. Finalmente tinha uma câmara fotográfica a sério. O Álvaro ficaria feliz. E eu já me via de máquina em punho, inventando fotos por todo o lado. Agora tinha que justificar semelhante aquisição, mas como eu gostava muito de fotografar não seria nada difícil.

 

E já tinha quase um curso ali, de tanta troca de impressões com o colega do Luís. Ele também tinha uma igual e estava muito satisfeito com ela. Se ele estava satisfeito era certo que eu também estaria e aos poucos havia de me familiarizar para tirar o máximo de rendimento.

 

Estava feito, mas ainda não sabia quanto aquela brincadeira me ia custar. Finalmente e um pouco apreensiva, perguntei quanto era a minha dívida, porque estava um pouco ansiosa para saber. E aí os dois responderam que não era nada. Nada? Como podia ser? É oferta da Sony para ti, responderam eles. Mas… oferta porquê? Eu só tinha pedido a eles porque não ia saber comprar uma máquina boa, adequada à minha pessoa. Mas eles, sorrindo, disseram que era uma oferta merecida. Merecida? Então porquê, perguntei novamente. Ah, porque tu mereces, responderam eles. Bem, fiquei um pouco sem jeito, pensando, eu até aceitava que eles me fizessem um desconto qualquer, mas daí a oferecerem-me a máquina, realmente, com essa não contava. E como perceberam o meu constrangimento, reforçaram que eu merecia, que não estavam a fazer nada de mais, enfim, muito simpático da parte deles. Para finalizar tudo sobre a máquina o amigo do Luís referiu ainda que eu só teria que comprar um cartão de memória e uma tampa, porque a máquina não tinha. Respondi que sim, sem qualquer problema. Agradeci e voltei a agradecer,até um pouco comovida com a atitude deles e tudo ficou por aí mesmo.

 

À noite, quando ia para me deitar, comecei a pensar no assunto e então a ficha caiu, isto é, fez-se luz. A máquina correspondia à descrição da que o Álvaro tinha mandado vir para mim. Talvez ele até tivesse pedido ao colega uma opinião mais avalizada, tal qual eu fiz. A máquina estava lá guardada no gabinete dele. Quando ele faleceu, certamente fizeram uma limpeza e encontraram a máquina. O amigo do Luís, uma vez que a máquina era igual, ficou com o cartão, que dá sempre jeito e provavelmente com a tampa que é uma coisa também susceptível de se perder com facilidade. No entanto, a máquina ficou lá guardada porque não tinha registo para ser vendida ao público. Quando eu pedi uma, eles devem-se ter lembrado daquela e a máquina era a que o Álvaro tinha mandado vir para mim. Provavelmente eles não sabiam, mas eu sabia que, apesar de vir das mãos deles, o presente do Álvaro acabava finalmente de chegar às minhas mãos. 

 

E hoje eu posso dizer, sem dúvida alguma, que foi mais um presente dele, de entre tantos, mesmo depois de ter partido e por mais que doa, na “hora certa”(!) …

 

 

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

O oftalmologista - 68



Alguém me disse, depois de ter lido algumas das minhas histórias, que dou sentido à minha vida. Por acaso eu acho que é mais a vida que me dá o sentido, a orientação, sei lá… porque as coisas acontecem simplesmente, encaixando-se por si mesmas.

 

Eu tenho uma meia-irmã, filha do segundo casamento do meu falecido pai, com quem deixei de me comunicar, por conta das maluquices do meu cunhado, marido dela, que a obrigou a cortar relações com as irmãs. Foi terrível para para ambas, mas para não complicar ainda mais a vida dela, que ficou encurralada numa situação extremamente delicada, não tivemos outro remédio senão distanciarmo-nos. As escolhas são feitas e a responsabilidade cabe a quem as faz.

 

O tempo foi passando e as feridas sarando sem nunca serem definitivamente curadas, mas o facto é que a vida continua. Passaram-se anos e a páginas tantas comecei a sentir uma grande saudade dela e das crianças que, entretanto, já estariam bem crescidas. Como estariam, como seria a vida deles? Lembro-me de que uma das minhas grandes preocupações era que ele não queria que as crianças fossem à escola (?) porque - dizia ele - os pretos batiam-lhes(?). E coisas destas eram difíceis de digerir, além de que um grande problema para a minha irmã.

 

Bem, então, um dia comecei a pensar neles com saudade e as preocupações começaram a voltar. O que fazer? Como saber deles se já todos tinham falecido? O pai a mãe, os tios… restavam os primos dela, mas como encontrá-los? Por esta altura já eram homens… sabia-se lá por onde andavam?

 

Até que um dia, estando eu em casa de uma vizinha e amiga, onde vou com frequência passar um bocadinho de tempo, por acaso comentei que precisava de consultar um oftalmologista e logo ela me falou do dela, recomendando-o vivamente. É muito bom, muito bom mesmo. Nós todos gostamos muito dele, o Miguelito. Perguntei o nome: MR. Ao ouvi-la pronunciar o nome fui apanhada de surpresa e achei curioso, dizendo-lhe que sabia muito bem quem era, um primo/irmão da minha meia irmã.

 

Lembrava-me dele ainda garoto, brincando com o irmão e a minha irmã. Ela também achou engraçada a coincidência de ele ser primo da minha irmã, sobrinho do meu pai por parte da minha madrasta e voltou a frisar que ele era um bom especialista. Poderia lá ir mas, de repente, lembrei-me de como toda aquela gente era materialista, vivendo só em função do dinheiro. Ele mesmo, ainda garoto, com frequência salientava o facto de querer ser médico e fazer uma especialidade que desse bastante dinheiro e como o pai e a tia tinham ambos casas de óculos (oculistas), a oftalmologia vinha a calhar. E apesar da minha vizinha, que é psicóloga clínica, ter dado uma referência tão boa a seu respeito, ainda assim não me convencia. Por outro lado, talvez fosse o caminho para saber alguma coisa da minha meia irmã. Para ser bem franca, já me tinha passado pela cabeça tentar localizá-lo, porque era o único recurso viável. Eu sabia que ele era médico oftalmologista e isso seria uma pista. Com toda a certeza ele teria notícias dela. Mas essa possibilidade eu mesma me tinha encarregado de descartar. Aquela gente nunca tinha atraído a minha simpatia. E agora, sem mais nem menos, aí estava ela a dizer-me aquilo, com a agravante de que tinha aí um bom pretexto, porque iria à consulta e ficava a saber dela. O que fazer?

 

Fiquei com aquilo no pensamento mas deixei o tempo afastar aquela hipótese, porque era um caminho que, decididamente, não me apetecia percorrer. Havia de haver outra hipótese de me aproximar dela. Entretanto, era certo que precisava de ir a um oftalmologista, mas mais uma vez o tempo foi passando, até que um dia, o meu olho esquerdo não estava nada bem, via passar umas coisas esquisitas e aquilo estava a perturbar-me muito.

 

Voltando a pensar no assunto, mais uma vez veio a hipótese de ir ao Miguel e mais uma vez senti que não queria lá ir e ponto final. E como sou uma pessoa prática, decidi de uma vez por todas ir ao oftalmologista, independentemente de querer ou não conciliar as duas coisas. Paciência, o problema da minha irmã continuaria por resolver e portanto, peguei no telefone para ligar para a Cuf Infante Santo. Eles tinham muito bons especialistas, haveria de ser encaminhada para o médico que fosse, não importava qual, mas acreditava que ia ser a solução certa.

Fiz a chamada, o telefone começou a tocar e veio do outro lado uma voz feminina. Disse que precisava de uma consulta de oftalmologia, ela perguntou para quando queria e respondi que o mais depressa possível, pois era de carácter urgente. Para hoje, deseja? - Perguntou ela. Fiquei espantada com a brevidade e não podia deixar de aproveitar aquela óptima oportunidade. Estava tudo no caminho certo e eu não tinha precisado de ir ao Miguel. A empregada disse que a consulta seria às dezassete e trinta e como já passava das quatro da tarde, era só o tempo de me pôr a andar, pois teria que atravessar toda a cidade para lá chegar. Perguntei ainda qual era o médico, para me orientar e ela respondeu: consulta hoje às dezassete horas e trinta com o doutor MR. Hã?!...

 

Estava feito. Não havia como fugir.



domingo, 25 de fevereiro de 2018

Um casaco de pelo - 67


Passei o inverno correndo as lojas vezes sem conta, na expectativa de encontrar um casaco em pelo sintético. Mas não era um casaco qualquer. Tinha que ser um casaco comprido, em pelo sintético, sim; leve, fofo e com padrão de bicho: leopardo, tigre, cobra… qualquer coisa assim, que para mim não fazia diferença. Só precisava de ser bicho. 


Em vão, porque todos os que encontrei não preenchiam os requisitos.  E se bem que eu o tivesse deixado de procurar, no fundo continuava a querê-lo, só não sabia como. Até já me tinha entretido a ver na internet, mas nada se parecia com o que eu queria.


Um dia à noite, sentada no meu sofá da sala a ver o telejornal na televisão, passou a notícia de um jogador de futebol qualquer, em que aparece uma foto dele com a namorada, uma jovem linda, top model, de mãos dadas com ele e com um casaco comprido… mas não era um casaco qualquer. Olhando com mais atenção, percebi que era o que eu queria, aquele mesmo, portanto, ele existia.


Incrível! Eu tinha finalmente achado o meu casaco de “sonho”, porque logo comecei a fazer contas e a ficha caiu. Modelo, devia ter ganho o casaco num desfile qualquer e deveria ser de uma colecção de algum estilista, o que me fez pensar que barato não poderia ser. Mas era aquele o casaco certo, sem dúvida alguma. Enfim, mesmo que o encontrasse, custaria um balúrdio. Não valia a pena pensar mais no assunto. Caso encerrado.

 

O tempo foi passando e um dia acordei muito cedo, mal raiava, ainda estava escuro e o sol ainda nem sequer estava no horizonte, apenas uma luz muito ténue anunciando a madrugada de um final de Janeiro. Acordei e o primeiro pensamento consciente que tive foi a certeza de que não tinha mais sono. Lembro-me perfeitamente de ter pensado, aflita, que o sono tinha terminado ali e a preocupação com o que eu iria fazer até serem horas decentes para me levantar. E como durmo com as persianas abertas deixando entrar a luz, olhei para o relógio de parede e vi que eram, nada mais nada menos que seis horas da manhã.

 

Por que raio não teria mais sono? Aquilo não era normal. Parecia que ao meu ouvido algo sussurrava, dizendo-me para acordar, porque estava na hora, mas para quê? Não havia nada para fazer, pelo que, aparentemente isto não se podia explicar. O certo é que eu sabia que não tinha acordado por nada, isto é, eu tinha acordado por uma razão especial, ainda que racionalmente isto não fizesse sentido. Acontece que há muito que aprendi que há coisas que não se explicam. Assim, não tive outro remédio se não aceitar as coisas como elas eram, como se apresentavam e esperar para ver.

 

Chateada, levantei-me e fui buscar o tablete para me entreter e ajudar a passar o tempo até o dia amanhecer. De volta ao conforto da cama, peguei no tablet, e não tendo emails para ver, sigo para o safari. Veio-me imediatamente à memória a busca do “casaco comprido de pelo sintético para senhora” porque, na verdade, eu tinha deixado de pensar nele apenas em modo consciente, porque inconscientemente ele continuava na minha cabeça. E só para me chatear ainda mais porque, primeiro: eu já tinha feito isto e nada; segundo: estava muito chateada por estar acordada sem sono àquela hora, mas como não tinha mais o que fazer, voltei ao assunto e então, um “site” novo apareceu e mais casacos começaram a passar.

 

Começo a ver, a ver e de repente… lá estava ele. Tal qual, o casaco de pelo da jovem modelo da televisão, que tanto me tinha encantado. Incrível! Parecia que tinha sido posto ali propositadamente para mim, só podia ser. Que coisa incrível! 

 

Comecei a ver os pormenores, tentando encontrar algo de errado, algo que me dissesse que não, que ainda não era aquele, nem que fosse para não ficar com pena de não o ter. Mas não, estava tudo certo. Era aquilo que eu queria. Comecei a ver o preço e então, com grande espanto percebi que era um preço bastante acessível. Que raio! Continuo a ver mais coisas sobre o casaco e dizia “disponível apenas por dois dias”. Uau! Vejo os tamanhos e havia o meu tamanho em stock. Vejo o preço em euros, quarenta e quatro, ponto, qualquer coisa. Não chegava sequer a quarenta e cinco euros. E os portes? O casaco vinha da China, é certo, mas não havia portes a pagar para toda a Europa. Eu nem queria acreditar!...

 

Ah, mas era da Internet e eu tinha medo, mas também, por aquele preço, não era tanta a desgraça, no caso de alguma coisa não dar certo. Começo a ver as opiniões das pessoas que já o tinham adquirido e as opiniões eram todas muito boas: confortável, preço acessível, etc. Porque não? Mais algumas informações e o casaco era um artigo de há três anos atrás. Queria lá saber, se era aquilo mesmo que eu queria!? Esperei que o dia amanhecesse e após o almoço, contactei a minha nora no Estados Unidos para lhe perguntar acerca do site. Respondeu-me que era um site muito conhecido de roupa on line e que não haveria problema.

 

Estava resolvido. Peguei no cartão de crédito e fiz a encomenda que, segundo eles, demoraria cerca de trinta a quarenta dias. Agora era esperar. Talvez ele não viesse. Talvez viesse mas não correspondesse ao que as fotos mostravam. Talvez… talvez… talvez… era só esperar para ver. Estava feito.

 

Passaram-se três semanas, até que um dia, ao abrir a minha caixa de correio, lá estava um papel dos CTT anunciando uma encomenda proveniente da China. O meu casaco de pelo sintético de leopardo! Eu não queria acreditar. Agora era verdade. E como seria ele?

 

Fui ao correio, levantei a encomenda que mais parecia uma almofada, entrei no carro e disparei rumo a casa. Entrei rapidamente e rasguei o plástico e o papel. Lá estava ele. Que lindo, o pelo, imitação de leopardo! De uma assentada o casaco saiu todo do pacote. Era casaco que nunca mais acabava, mais parecia uma manta. Vesti e olhei-me no espelho. Claro que eu não era a garota top model, mas o importante é que o casaco, o casaco sim, era o tal, tal e qual eu tinha visto, tal e qual eu queria e agora sabia porque tinha acordado naquele dia às seis horas da manhã.

 

Bingo!

 


sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Inajá - 66






Inajá, uma das tias avós por parte de pai, dos meus sobrinhos netos - porque netos da minha irmã -, uma mulher sempre muito bem disposta e pronta para tudo, estava doente.


Apanhada pela dengue, padecia de febres altas, dores musculares e tudo o mais que o vírus provoca. Não tínhamos o hábito de nos falarmos todos os dias, nem todas as semanas, era quando calhava, para saber das notícias de ambas as partes, porque Brasil é Brasil e Portugal é Portugal. Dadas as circunstâncias, as coisas alteraram-se. A cada dia que passava ela só piorava, o que fez com que eu começasse a telefonar diariamente, ansiando por uma alteração positiva no seu estado de saúde. Contudo, Inajá não melhorava e sempre que falava com ela a sua voz era mais débil, sendo notório o seu acelerado enfraquecimento, o que muito me inquietava, deixando-me terrivelmente angustiada. Até ao dia em que, tendo desligado o telefone, depois de ter acabado de ouvir a sua voz, percebi que a coisa estava mesmo feia, feia a sério e alguma coisa teria que ser feita.

 

No caminho do trabalho para casa, enquanto conduzia no meio do trânsito infernal, ia pensando que precisava de fazer alguma coisa para reverter a situação. Depois daquele telefonema eu achava que no dia seguinte ela já não estaria neste mundo, nem para me atender o telefone, nem para mais nada. Aliás, ela própria tinha essa consciência, sendo tão honesta quanto possível em relação ao facto de o seu corpo não estar a conseguir aguentar por mais tempo, todo o sofrimento por que estava passando.

 

Mas não, isso era uma coisa que não podia acontecer. Fora de questão. Eu queria Inajá viva e bem viva. Ela era amada por todos nós e não podia morrer. Então percebi que tinha que me ligar às minhas fontes espirituais, as mais fortes, mais poderosas, para aquelas situações de último recurso, em que não há mais nada a fazer.

 

Chegou a hora de me deitar e sentada na minha cama, que é o sítio e a hora em que estou preparada para estas situações, porque o dia acabou, tudo terminou e o espírito pode entrar na outra dimensão, aquela onde me ligo da forma mais verdadeira à fonte de todas as coisas, aquela que considero ser o sobrenatural, focada na minha intenção, comecei por visualizar a minha amiga. Através de um tubo de luz de cor indefinida fui visualizando, visualizando, à medida que afastava todas as outras imagens que tentavam sobrepor-se. Fui abandonando o meu ego, o meu eu material e navegando por aquele túnel de luz, fui aproximando as nossas duas entidades: ela e eu. Quando nos aproximámos uma da outra, estava pronta para “ver” a realidade do mundo dela, tendo-me excluído completamente do meu. Sentada na minha cama, em posição de lótus, eu estava lá, com todos os meus sentidos despertos. E assim pude vê-la, jogada numa cama de hospital, cuja cabeceira estava bastante elevada.

 

Fiz a chamada do seu corpo energético e à medida que ia testando as suas energias, ia percebendo a prostração e a dor porque estava passando. Iluminei todo o quarto, pedi luz, mais luz para transmutar toda a energia negativa que tomava conta dela, ordenando a retirada do mal. E de repente aconteceu uma coisa fantástica. De dentro dela começaram a sair mosquitos, muitos mosquitos, era um verdadeiro enxame. Uma nuvem negra que se libertava do seu corpo e saía em direcção ao espaço. Era um nunca mais acabar de mosquitos. Fiquei parada a olhar aquele espectáculo absolutamente transcendente. E quando finalmente eles acabaram de sair, a minha amiga deu sinal de vida e começou a virar o corpo lentamente na cama, ao mesmo tempo que entreabria os olhos. Ordenei que viesse alguém vê-la. E logo apareceu um médico que chegou junto dela, tendo começado a observá-la. Depois veio outro médico e mais outro. Veio ainda um quarto e formaram uma equipa. Os médicos todos de volta dela examinavam-na cuidadosamente enquanto falavam uns com os outros. Enviei luz para toda a equipa médica, muita luz e fiquei observando.

 

Passado algum tempo, a equipa médica retirou-se e veio uma enfermeira que trouxe um caldo para ela tomar. Inajá já se sentou e com a ajuda da enfermeira conseguiu então tomar o caldo todo, o que foi uma grande vitória, porque há alguns dias que não conseguia comer nem beber. Estava reagindo, finalmente. A enfermeira foi-se embora e deixou-a deitada com a cabeceira um pouco mais baixa. Agora eu sabia que ela estava bem. Já tinha uma cor e o semblante estava aliviado.

 

Estava na hora de me desligar, de abandonar aquele plano e voltar à minha realidade, à minha dimensão. Já no meu mundo, cansada pelo esforço de visualização, deitei-me para dormir, com a convicção de que alguma coisa tinha sido feita pelo bem dela.

 

No outro dia acordei, levantei-me e fui trabalhar. O dia foi passando e quase à hora de me vir embora, precisava de lhe ligar para saber notícias. Como estaria? Sentia um certo receio, mas precisava de ter coragem para lhe falar. Não podia deixar de lhe telefonar, independentemente do receio do que poderia vir do outro lado. Ela estava tão mal no dia anterior que a dúvida era muito grande.

 

Peguei no telefone e comecei a marcar. A chamada estabeleceu-se e alguém atendeu do outro lado. Todo o meu ser estremecia de ansiedade. Mas fosse o que fosse tinha que saber. Aquele passo tinha que ser dado. E finalmente a voz que acabava de ouvir era a voz de Inajá, fresca e sorridente, com a sua gargalhada de sempre… eu nem queria acreditar. Ela tinha conseguido reagir e ali estava ela inteira, em franca recuperação. O meu coração pairava de alegria. Tudo tinha passado.

 

Ansiosa, perguntei como tinha sido aquela súbita reviravolta. Contou então que no final do dia anterior tinha tido a visita de uma “equipa médica” que tinham estado de volta dela muito tempo, fazendo não sei o quê e que depois de se irem embora começou a sentir-se muito melhor. Depois veio uma enfermeira com “alguma coisa para comer” e até conseguiu comer tudo. E a partir daí começou a melhorar a olhos vistos.

 

Ela falava e eu revia nas palavras dela tudo o que tinha presenciado enquanto estabelecia o meu plano de cura à distância. E tudo se tinha passado exactamente como eu havia visto e no mesmo fuso horário, de acordo com a hora indicada por ela mesma. Era uma coisa fantástica. Se há muita coisa que não tem explicação, esta é uma delas.

 

Inajá estava bem e isso era tudo o que eu queria. O que eu fiz com ela é uma coisa que não se aprende e que não tem preço. É intuitivo e o que reverteu para ela reverteu para mim também. Foram apenas as forças do bem que foram activadas. A vontade, o amor incondicional, a fé, essas foram as únicas vitoriosas. E essas são as únicas coisas na vida que não se corrompem e não se vendem por nada.

 

Viva a vida!