segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O encontro - 55


Nos meus dezassete anos tive um namorado da minha idade que foi o meu primeiro e único namorado de adolescente. Ambos passávamos a semana inteira em Lisboa. Ele, por causa do curso que estava a fazer e eu porque nessa altura já trabalhava, no que foi também o meu primeiro trabalho, no Ministério das Finanças. Durante a semana, em Lisboa, nunca nos encontrávamos, mas ao fim-de-semana, em Setúbal, era infalível. Acho que vivíamos a semana para isso, para o encontro do fim-de-semana e aproveitávamos tudo o que era festas, feiras, Carnavais e outras coisas mais, mas tínhamos um sítio que era especial, porque os nossos encontros sempre começavam e terminavam aí, sem hora marcada, porque não era preciso. Eu sabia sempre quando ele estava à minha espera. Como um sussurro no meu ouvido, eu ouvia a voz dele chamar por mim, nesse lugar muito especial, muito romântico, pode dizer-se que sim e muito, muito bonito. 

Ainda hoje, o miradouro de Setúbal é um local privilegiado pela vista magnífica que tem sobre o rio e sempre muito bem cuidado, com uns bancos em pedra, todo decorado com azulejos lindos, com umas trepadeiras que embelezavam, davam sombra e ainda desenhavam de uma forma airosa, uns cantos e recantos onde, na verdade, namorar, era um momento mágico, porque não acontecia mesmo nada, isto é, tudo era ingénuo, naqueles anos, ingénuo e doce. O namoro era estar ao pé um do outro, sem tocar um no outro. Apenas se conversava e muito mais com o olhar do que propriamente com palavras. O desejo sufocava-nos, porque não sabíamos, nem poderíamos, como extravasar toda aquela emoção que aflorava, independentemente da nossa vontade. Explodia por todo o nosso ser, mas ficava silenciosamente contida e contida ficou “ad eternum” porque, passado um tempo, veio o serviço militar e as nossas vidas tomaram o seu rumo, cada um seguindo o seu destino, que não era comum. 

Uns anos mais tarde, já eu estava casada e com um filho, encontrei uma amiga daquela época, que me deu notícias dele, que também já tinha casado e tinha um filho da mesma idade do meu. Nessa altura eu já tinha discernimento suficiente para perceber o traçado da linha do meu destino e para tanto, bastava-me olhar para trás e perceber que estava no lugar certo. Mas foi interessante falar com a minha amiga e ter notícias dele. Não que eu tivesse “saudades”. Apenas, não podia nem queria apagar o passado. Ele fazia parte de mim, da minha história. Depois disso, nunca mais voltei a ter notícias dele. Perdemos completamente o rasto um do outro sendo que, na verdade, não fazia falta. 

Os anos passaram. Na verdade passaram muitos e muitos anos. Por força das circunstâncias, as idas a Setúbal foram-se espaçando, até que se tornaram raras, raríssimas. No entanto, apesar da raridade ou por conta da raridade, não conseguia deixar de pensar nele. Ele sempre me vinha à lembrança e em certa altura, depois de tantos anos, uns vinte anos, comecei a sentir uma certa curiosidade em revê-lo. Apenas vê-lo, olhar para ele, rir com ele, do nosso passado, lembrando carinhosamente algumas passagens e nada mais. Mas isso era praticamente improvável. Há muito que ele já não vivia em casa dos pais, em Setúbal, junto ao miradouro dos nossos encontros. 

Lembro-me de duas ou três vezes ter ido ao miradouro e imaginar que ia ao encontro dele, como nos velhos tempos, sabendo, embora, que isso não aconteceria e entrar em contacto com ele, além de não ter como, não teria a menor graça. Não estava ali para me entregar ao JM, sob que pretexto fosse. A nossa entrega tinha sido a outro nível, portanto, isso estava fora de questão. Eu só queria mesmo experimentar aquela magia do antigamente, se isso fosse possível. Nenhum de nós era o mesmo, mas o facto é que tínhamos criado momentos mágicos. Como seria vê-lo no agora? E como aconteceria isso sem que eu desse um passo para conseguir essa magia? Impossível!  

E aqui começa a história. 

Certo dia, estando de breve passagem em Setúbal, decidi que queria, porque queria, reviver uma gota daquele velho passado. Em pensamento, vesti a pele da adolescente que tinha sido um dia e saí de casa destinada a subir a rampa em direcção ao miradouro. Isto era um absurdo, porque não havia a mais pequena probabilidade de acontecer. Mas eu queria e fui, calma e tranquilamente, a cada passo, me aproximando mais e mais do miradouro, porque, na verdade, eu não o queria ver só por ver. O que eu realmente queria era vê-lo naquele lugar que era nosso. Noutro sítio qualquer, não teria a mesma graça. Era a magia do quadro completo e só isso, nada mais. Depois, tudo se podia quebrar, o encanto, o espanto, ah… sei lá. Depois eu podia acordar, despir a pele já há muito despida da adolescente e voltar ao meu mundo actual, à minha realidade. Mas eu queria pôr o pé lá, por um só instante, naquele passado distante. 

E fui, ladeira acima, imaginando que, por qualquer passo de mágica do destino, ele estaria lá, como antes, chamando silenciosamente por mim. E, enquanto ia caminhando, pensava em quanta tolice passava na minha cabeça e em quanta fantasia alimentava. O razoável seria voltar para trás e pôr a cabeça no lugar. Meu Deus, como era lamentavelmente tola, por vezes! 

Mas quando já estava decidida a voltar para trás, a meia dúzia de passos do miradouro, a paisagem abre-se como a página de um livro, mostrando aquele belo cenário, sempre diferente e único. As cores do sol sobre o rio sobrepunham-se a tudo e a qualquer coisa fútil e fugaz. Era lindo demais! Do outro lado do rio, Tróia a compor o quadro. Era um belíssimo fim de tarde, com uma temperatura excelente. Mais um passo e estava no fim do muro que acompanha a ladeira. Nesse preciso ponto é uma esquina e esbarro em alguém que vem do meu lado direito. Levanto a cabeça e vejo um sorriso largo, acompanhado de um ar de espanto e admiração. Um sorriso que eu tão bem conhecia, o JM, ele mesmo, inteirinho, em pessoa... 

Nesse preciso momento percebi que não sabia de nada, que não tinha explicação razoável, plausível, nem mesmo inventando o que só podia ser uma invenção, não minha, do destino. Eu não invento, porque simplesmente não tenho a capacidade de alimentar a ficção. Eu sou sólida e mesmo no que toca ao plano espiritual, preciso de consistência, preciso de me sentir enraizada. O facto é que, sem saber como, os nossos passos, uma vez mais, tinham entrado numa sintonia cósmica perfeita, colocando-nos ali, uma vez mais, naquele momento e naquele lugar de sempre.