domingo, 11 de abril de 2010

O isqueiro - 16


Eu tinha um conjunto de objectos pessoais, pertencentes a familiares muito chegados, que guardava como recordação. Eles tinham um significado estimativo para mim, por isso os conservava. Entre eles havia um isqueiro que a minha tia me tinha dado. Ela fumava apenas em ocasiões especiais e quando era nova. Para isso tinha um isqueiro dourado, muito bonito, que lhe tinha sido oferecido. 

A Carol, que fazia limpeza na minha casa, coleccionava isqueiros. Segundo ela dizia, tinha um número incalculável e queria sempre mais para a sua colecção. Quando descobriu aquele, ficou encantada e quis saber donde tinha vindo, etc. Ela pegava nele com muita avidez e queria à força que lho desse. Disse-lhe sempre que não podia, porque era especial, mas ela era insistente e continuava a fazer um choradinho a que eu não dava ouvidos, porque nunca lhe daria o isqueiro, era sabido. 

Um dia, por acaso, reparei que o isqueiro não estava no sítio. Procurei por toda a parte, sem sucesso. Comecei a ficar chateada, sem saber o que fazer para achar o isqueiro. Dava voltas e mais voltas mas não conseguia entender como o isqueiro tinha desaparecido. O facto é que sumira. Não era o fim do mundo, mas aquilo não me agradava. Tinha que haver uma explicação. 

Quando a Carol veio perguntei-lhe se ela sabia onde tinha posto o isqueiro, mas ela respondeu que não o tinha visto. Achei aquilo esquisito. Ela sempre pegava nele, sempre me chateava com o isqueiro e agora simplesmente dizia que não o tinha visto?! Não estava a gostar daquilo. Tê-lo-ia ela levado? Ela não me pedia só o isqueiro, estava constantemente a pedir-me coisas: roupas, malas, bijuteria, sei lá, não havia nada meu que ela não quisesse. Quando eu podia dava-lhe, quando não podia ser, não podia mesmo. Teria ela levado o isqueiro por sua conta e risco? Atrever-se-ia a uma coisa dessas?  

Era verdade que ela estava cada vez pior em tudo, não fazia nada de jeito e chegava sempre atrasada. Às vezes nem aparecia. Ganhava um dinheirão e as coisas não estavam a resultar. Mas aquela cena do isqueiro era demais. Também era verdade que arranjava sarilhos por todo o lado e depois vinha chorar e pedir que lhe desse dinheiro adiantado, porque fazia imensas dívidas e não queria que o marido soubesse, nem os pais, e tinha-se metido com o homem da papelaria do rés-do-chão do meu prédio... enfim, realmente eu não sabia porque continuava a aturá-la, mas seria ela tão estúpida a ponto de ter ficado com o isqueiro? Tinha que tirar as coisas a limpo. Mas não podia acusá-la, isso não. Precisava de ter a certeza antes de falar com ela novamente, porque agora ia doer. Mas como? 

Nessa noite, deitei-me a pensar naquele assunto e em como resolvê-lo, sem fazer nada de que me viesse a arrepender. Não podia cometer nenhuma injustiça. As coisas podiam não ser o que pareciam. Quando tudo aponta para um lugar, ainda assim pode ser que esteja errado. A verdade é que eu nunca ia poder saber. Dei um tempo para que o isqueiro aparecesse fosse de onde fosse, posto que, findo esse tempo, falaria com ela seriamente. 

Todos os dias pedia a Deus que me iluminasse, que me mostrasse o caminho e sobretudo, não me deixasse levantar falsos testemunhos, que isso eu não ia suportar. E como estavam esgotadas as possibilidades naturais, pedi auxílio do sobrenatural, isto é, pedi ao Universo que me trouxesse uma resposta em quarenta e oito horas, que era o tempo que eu tinha para falar com ela. 

Estava esgotado o prazo. Nesse dia, ao fim da tarde, falaria com ela. Fiz a minha vida normal, mas sempre a pensar naquele assunto, que me parecia de resolução impossível e incomodava-me de sobremaneira a hipótese de ela ter levado o isqueiro e também a possibilidade de ter de confrontá-la sem volta. Não gosto nada destas situações, mas não podia permitir semelhante coisa. O facto é que ela era muito abusadora e me dava todas as razões do mundo para a culpar. Mas eu não a tinha visto levar o isqueiro, por isso era-me muito difícil acusá-la. 

Um pouco antes da hora do almoço o meu telefone tocou. Era o Victor, um amigo de longa data a convidar-me para almoçar com ele, porque estava nas redondezas e o dia estava muito bom para sair. Não me apetecia nada, mas ele praticamente não me deu tempo. Tratou de marcar o lugar e a hora antes que eu dissesse que não, de modo que lá fui ter com ele ao local combinado. Pelo caminho pensei que o melhor era esquecer o assunto, pelo menos enquanto almoçava, já que ele não tinha nada a ver com o assunto e também porque já não havia realmente nada que pudesse ser feito para alterar o quadro. 

Cheguei, fui ao encontro dele, que já estava sentado a uma mesa e pedimos os pratos. Vieram as bebidas, ele puxou do cigarro e antes que eu começasse a falar, adiantou-se e disse "antes de mais, quero pedir-te desculpa porque tenho aqui no bolso o isqueiro que me emprestaste quando estive na tua casa e sem querer levei comigo. Só depois é que dei por isso"(?). 

Estava explicado o desaparecimento do isqueiro no prazo que eu tinha determinado, quarenta e oito horas e a Carol, apesar de tudo, não tinha mesmo nada com o assunto. Eu estava longe da possibilidade de alguém o ter levado porque, sem ser o Victor, ninguém frequentava a minha casa e mesmo ele, era muito raro. Só quando ele me passou o isqueiro para a mão é que me lembrei daquele pormenor, dele ter lá estado e lho ter emprestado enquanto estávamos na varanda a conversar. Estava completamente esquecida disso, que fazia toda a diferença. 

Com isto, saiu um peso enorme de cima de mim. Respirei fundo e agradeci ao Universo, não tanto pelo aparecimento do isqueiro mas, especialmente, pela ajuda que me dera, independentemente do assunto que era. 

Quando tudo parece que escapa às nossas fracas possibilidades, ainda nos resta a conexão Divina, independentemente do que quer que seja. E isso deveria estar sempre presente em nós. 

A isso se chama "fé".


Sem comentários:

Enviar um comentário