Era o final de uma tarde de Verão. Fui dar um passei com o Riaz
nos arredores da minha casa, numa zona que, nessa altura, ainda não era
urbanizada. Era campo e mato. Ao cabo de apenas alguns metros em que
passeávamos descontraidamente para apanhar um pouco de sol e de
ar, avistámos ao longe, entre quatrocentos a quinhentos metros, saído da
mata dos eucaliptos, aquilo que me pareceu ser um pastor alemão, porque não
conheço especialmente bem as raças dos cães.
Quando olho e vejo aquele cão todo branco, imponente, saindo por entre as
árvores, aparentemente na nossa direcção, fiquei imediatamente à procura do
rasto de um possível dono, o que me daria bastante mais tranquilidade. E
bem observado, um cão daqueles, com tão bom aspecto, bem tratado, bem
alimentado, tinha que ter dono, mas onde andaria ele? Como é que salta da mata
um cão daqueles sozinho?
Eu tenho um certo receio que consigo controlar e não demonstrar, e a coisa
vai. Mas o Riaz... eu sabia que para ele era o diabo. Os muçulmanos têm uma
estranha superstição com certos animais que não podem tocar porque,
dizem eles, tira a potência sexual aos homens. E a verdade é que por
causa dessa superstição ele e os amigos sempre se desviavam de cães e outros
animais como cabras, por exemplo, e outros.
De modo que, quando vi o cão lançado a toda a velocidade, galopando como se
fosse um cavalo sem parar, sempre em direcção a nós, fiquei perplexa, não tanto
por mim, mas por ele que, tal como eu já esperava, logo deu sinal. Ficou numa
grande aflição, lembrando que não podia encarar o cão. Depois ele vinha perto
de nós e ele nem queria pensar em tocar ou ser tocado por ele. Era a sua
ruína(?!).
Fiquei encurralada. Não adiantava fazê-lo raciocinar. Já tínhamos falado
nisso várias vezes e aquilo estava enraizado demais para ser alterado assim.
Tinha que ser muito mais fundo e aquele não era o momento, de certeza absoluta
e nem havia tempo de pensar nisso. Portanto, a única coisa a fazer era tentar
controlá-lo para eu também não ir atrás da onda dele, não no aspecto da
superstição, mas na questão de ficarmos os dois tolhidos de medo e
descontrolarmos o animal com o nosso próprio medo.
O facto é que tinha que pensar rapidamente, porquanto tudo isto se estava a
passar em segundos e o Riaz já estava todo baralhado e aflito, a esconder-se
por trás de mim e a agarrar-me como se fosse uma criança. Era um absurdo um
homem daquele tamanho agarrado a mim por todos os lados por causa de um cão. Ao
mesmo tempo eu olhava em volta com medo do ridículo. Não havia ninguém o que,
por um lado era mau, podia chamar a atenção do cão e desistir de nós, mas por
outro lado, não havia testemunhas oculares para nos sentirmos
envergonhados pelo caricato da situação.
E o cão não parava de correr para nós e nem sombra de dono. A situação
começou a ficar caótica e era absolutamente necessário interferir, fazer alguma
coisa, pôr um ponto final naquilo, tomar o comando da situação, no que tinha
que contar exclusivamente comigo. Não havia alternativa.
E quando não nos resta mais nada, ainda há um último recurso, provavelmente
o mais poderoso de todos: a telepatia.
Afastei o Riaz e virei-me na direcção do cão. Dei dois passos em frente
e rapidamente ordenei-lhe que parasse imediatamente: "Pára". E
não é que ele parou!? Com o mesmo vigor com que vinha, apontei a minha arma
secreta, a telepatia, e formulei a ordem de "stop". A mais ou menos
100 metros de nós o animal meteu travões a fundo que até derrapou na
terra, abanou o rabo e depois manteve-se quieto, parado,
completamente imóvel, que parecia uma estátua. Foi impressionante!
O Riaz respirou fundo e ficou a olhar para mim, como que apercebendo-se de
uma pressuposta comunicação entre mim e o cão, mas sem compreender
racionalmente o que tinha acontecido. Ele sentiu que o cão parou quando eu me
virei para ele e fiquei em silêncio, de olhar fixo nele, depois de o ter
afastado de mim. Ele percebeu que houve uma estranha interferência entre mim e
o cão, que lhe escapou por completo. Contudo, o que quer que fosse, não era
relevante, porque tudo o que ele queria era ver o animal afastado dele, o
resto não lhe interessava. E de uma forma "mágica" - porque ele
não tinha entendido - eu tinha conseguido isso.
Como já disse, tudo isto se passou em segundos. E logo depois de o cão ter
parado e ficado imóvel, apareceu também por entre a mata dos eucaliptos um
homem de aspecto possante, tal qual o cão, que caminhava a passos largos com um
chicote na mão, pelo que pensei e estava certa, finalmente o dono do cão
que aparece.
Mas o homem não gostou muito de ver o cão parado, sem se mexer. Todavia, à
distância a que nós estávamos dele, era impossível termos-lhe tocado. Percebi
que o homem ficou intrigado com a reacção do seu cão, do qual ele devia ter
muito orgulho pela raça em si e pelo porte que, naturalmente, intimidaria
qualquer um, ainda que, acredito, fosse inofensivo ou agressivo sem motivo. Mas
percebi que, na qualidade de dono, estranhou a atitude do seu cão, que chamou
de imediato, fazendo voltar a si.
O Riaz estava branco do susto e do desfecho inesperado, que lhe foi muito
favorável, querendo ir embora dali depressa.
Eu acredito que a telepatia funciona e sirvo-me dela sempre que se faz
necessário. Para mim é uma coisa extraordinária que a nossa condição humana nos
oferece e que aceito como uma bênção enorme. E só serei privilegiada se os
outros a não usarem também porque, conforme já disse outras
vezes, ela é acessível a todos.
Os nossos limites como humanos ainda não estão definidos nem nunca estarão.
Não somos um produto acabado, de forma alguma. Estamos sempre a caminho do
progresso e da evolução/transformação. Temos fronteiras bem marcadas que
sabemos bem demais que não podemos ultrapassar, pois elas contribuem para a
destruição: as drogas que viciam e nos roubam a liberdade. Mas as fronteiras
que temos que ultrapassar para crescermos em todos os sentidos e em todas as
direcções, essas não podemos permitir que continuem a limitar as nossas vidas
porque são a nossa derradeira oportunidade de salvarmos a humanidade, de
nos salvarmos a nós próprios. Essas esperam por nós a toda a hora, a qualquer
momento, em qualquer circunstância, porque essas são infinitas.
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