sábado, 26 de fevereiro de 2011

Avó e neto - 25


Eu senti muito a falta da minha mãe, desde que ela faleceu, quando eu tinha apenas dez anos. Só quem passa por isso é que pode avaliar e lidei muito mal com essa situação. Fiquei perdida, despedaçada de todas as maneiras e feitos. Pela vida fora fui tentando apanhar os cacos que ficaram de mim e aprendendo a juntar cada pedaço para me refazer. Foi muito difícil. Em tudo eu sentia a falta, o apoio, o carinho dessa mãe que com trinta e dois anos tinha partido. Mas sobrevivi. 

Quando o meu filho nasceu, mais uma vez e como, senti a falta, a necessidade duma mãe que me orientasse e me transmitisse confiança com a sua experiência e que estivesse por perto de mim, como naturalmente estaria se estivesse viva, para me ajudar a cuidar do meu filho, o que teria sido uma grande alegria para ela. Mas enfim, a vida é como é e é preciso aceitar. Mas sempre que eu estava em apuros e em situações complicadas pensava nela e isso reconfortava-me, acreditando que ela faria o impossível para protegê-lo e de alguma maneira me ajudar na missão mais importante da minha vida. 

Desde que o Henrique nasceu, uma das coisas que sempre achei fundamental na educação dele, foi a "disciplina". Assim, ele foi crescendo com horas para tudo. É claro que a disciplina que eu introduzia nos hábitos dele começava por mim, caso contrário nem saberia como aplicá-la. Portanto, a hora de dormir tinha a sua hora que ele, aliás, muito bem sabia e quando estava na hora, ele mesmo dava o sinal. 

Contudo, um dia aconteceu que chegou a hora de ir para a cama mas não foi, entretido que estava com uma construção de lego pelo que, a certa altura, tive que intervir. Ele dizia que já ia, já ia, mas o já, não se concretizava e aos poucos comecei a enervar-me, a ralhar com ele, que acabou por ir para a cama contrariado e a chorar. Deve ter sido a única vez em que tal aconteceu ou talvez tenham havido outras que não tiveram tanta importância. Esta ficou marcada porque foi um acontecimento muito, muito especial. Daquelas coisas que, em verdade, nem se deviam contar, porque não podemos esperar que os outros entendam e muito menos que acreditem. E mesmo que acreditem, é impossível relatar de modo a passar exactamente o que aconteceu. Não há palavras que possam descrever aquilo que não se vê e não se ouve. A alma de cada um é única e, como um cartão de crédito, pessoal e intransmissível. 

Dadas as circunstâncias, consenti que ele ficasse um pouco mais tempo acordado já na cama, para que se acalmasse e fui para a sala, embora irritada por me ter aborrecido com ele e o ter feito chorar. Precisava de ter mais paciência e às vezes não tinha. Também me queria deitar porque estava cansada e só depois dele é que eu conseguia dormir. De modo que o melhor era dar-lhe mais um tempinho para sossegar.

Passados alguns minutos achei que devia ver se já estava a dormir. Levantei-me e estranhamente comecei a ouvir a voz dele. Dava para perceber que toda a agitação tinha desaparecido. Estava muito calmo, como se nada tivesse acontecido e falava quase em monossílabos, frases curtinhas, como se estivesse a falar com alguém, a responder a alguém. Há crianças que falam sozinhas e algumas têm uma espécie de amigo imaginário, mas o Henrique nunca foi disso. Mas que estava a falar, estava, e que estava sozinho, era certo, com a luz ainda acesa e o lego que continuava entre mãos. A minha irritação persistia, ainda que eu não tivesse muita consciência disso e senti uma fúria por ele continuar acordado. 

Quando cheguei à porta senti um impulso que me repelia e não me deixava transpor a entrada. Uma estranha força entrepunha-se e barrava-me a entrada. Ao mesmo tempo, a luz que inundava o quarto não era a luz do candeeiro que eu bem conhecia e o Henrique estava sentado na cama, muito calminho, muito tranquilo e continuava a falar como se alguém estivesse ao lado dele. Percebi imediatamente que algo "estranho" se estava a passar.  

Senti a calma que reinava ali e percebi que era incompatível com o meu estado de espírito, cuja vibração que me impediu  de entrar. Inclinada sobre ele, a figura etérea da minha mãe, emanava uma aura absolutamente deslumbrante, que envolvia o Henrique, o quarto e decididamente não tinha nada a ver com a luz do candeeiro. O rosto dela estava impresso no éter, assim como o vulto, que se esbatia em finíssimas camadas de luz. Todos os contornos estavam lá, definidos na indefinição que se perdia num fundo de luz infinita. Era o retrato da pureza. E a sua mão branca, fina e delicada, passava quase rente ao cabelo curtinho e louro do Henrique, contornando a cabeça desde a testa até à nuca, sem lhe tocar, num gesto de uma ternura indescritível, de paz e tranquilidade, aconchego de avó que não podendo estar em presença física, desceu à terra, em espírito, para apaziguar um neto muito, muito querido, que amava e protegia acima de todas as coisas. 

A sua expressão de enlevo mostrava uma felicidade que não era deste mundo e o Henrique, inocente e inconscientemente, absorvia e desfrutava daquela bênção sagrada. Era um quadro de um fascínio delirante, onde o amor estava patente, desenhado e materializado. Uma coisa deslumbrante! Uma coisa do céu, do céu azul, onde vive a luz da eternidade. Era um encontro maravilhoso de uma avó que já cá não estando, continuava perto, deixando a marca e a mensagem do amor incondicional. Com efeito, era bom que todos soubéssemos que, em qualquer plano ou dimensão, a vida supera a morte. 

Aquele não era o meu lugar naquele momento e eu não queria "conspurcar" a beleza daquela energia que nos presenteava. Mas o meu coração chorou lágrimas de alegria.  

Voltei para onde estava e aguardei. Agradeci a Deus aquela coisa maravilhosa e fiquei sentada no meu sofá da sala, deixando o pensando fluir, fluir, pleno daquele bem estar. Mais tarde voltei ao quarto, devagarinho, pé ante pé. A luz continuava acesa e o ambiente tinha voltado ao normal. Ela viera em nosso auxílio. Cumprida a sua tarefa de tranquilizar o neto e fazê-lo adormecer - fazer aquilo que eu não conseguira fazer - partira, pois há muito que não pertencia a este mundo. Apaguei a luz e o Henrique respirava calmamente, num sono tranquilo e inocente, como o de uma criança feliz e abençoada. 

A partir daí, eu sabia que ela estaria sempre por perto, não só do Henrique como dos outros netos, o que me deixou muito, mas muito mais feliz e imensamente grata à vida por se estar sempre a revelar e sempre a manifestar da maneira mais surpreendentemente possível.


2 comentários:

  1. Ola sogrinha,

    Ja li a historia. E muito bom pensar que a avo do Henrique esta presente na vida dele de alguma forma...

    Muitos beijinhos!

    Tania

    ResponderEliminar
  2. Lindo, e a Luisinha escreve muito bem!
    Na verdade, aqueles que partiram e nos eram, e são, muito queridos são uma luz e uma ajuda para ultrapassarmos momentos difíceis. Podendo não ter existência física, existem pelo menos na nossa consciência e através dela tomam as mais variadas formas. A Luisinha estava arrependida do modo como tinha lidado com a situação e a figura etérea da sua mãe veio substituí-la no gesto de carinho com o Henrique. Deve ter sido uma experiência maravilhosa… Mutos beijinhos,
    Teresa Beatriz

    ResponderEliminar