Outubro
de 1976. Eu estava no aeroporto da Portela, com toda a minha bagagem rumo aos
Açores, mais precisamente S. Miguel, Ponta Delgada, sem regresso marcado. No
dia anterior tinha ido ao aeroporto levar a minha irmã que seguiu para S.
Paulo, Brasil, também ela sem data de regresso. Os nossos destinos estavam
definitivamente traçados. Nessa altura eu tinha vinte e três anos e a minha
irmã dezanove. Ela ia ter com o namorado, com quem logo depois se casaria. Por
mim, estava sozinha como convinha, de mudança para os Açores, onde a televisão
(RTP) estava no início das suas emissões regulares, e cujo lugar eu tinha
escolhido para recomeçar a minha vida do zero. Tudo o que eu encontrasse lá
seria inteiramente novo para mim. Amigos, conhecidos, colegas, tudo e todos
seria uma viragem completa de cento e oitenta graus, no rumo que
conscientemente oferecia a mim mesma.
O
vinte e cinco de abril estava ainda muito recente e eu sentia-me cansada,
precisando de respirar. Eu não conhecia os Açores. Mas já que tudo estava no
seu início, sim, eu gostaria de fazer parte dessa equipa que trabalhou para levantar
esse marco na história da televisão em Portugal. Os Açores! Quem diria. Era
mesmo um salto no completo desconhecido. E quando todos me perguntavam porquê,
porque razão me tinha dado na telha de me mudar para os Açores, quando estava
tão bem onde estava, secretária do Conselho de Administração da RTP, um futuro
de certo modo risonho, etc…, eu não tinha resposta para dar. Eu tinha sim
resposta para mim. Para os outros não, porque não entenderiam a única resposta
sincera e genuína: porque o meu destino está lá; porque eu sinto um chamado
para ir para lá… só isso. Essa era a única verdade. Mais nada interessava.
Mas
as perguntas surgiam de todo o lado. Era na RTP, o militar então administrador,
incomodado porque queria saber se alguém me tinha tratado mal e que por mais
que eu lhe dissesse que não era nada disso, não parava de me interrogar para
tentar saber o que estaria errado comigo. Era a família, que gostariam de uma
resposta que os fizesse entender o porquê da minha súbita decisão de debandar
para tão longe, no meio do oceano, enfim… ninguém me dava tréguas.
É
claro que eu percebia que aos outros fizesse confusão. Mas a vida é assim
mesmo. E eu achava que não tinha que justificar a ninguém. Não estava a fazer
nada de errado, nada que fosse prejudicial para ninguém, só queria dar voz ao
grito ou à chamada que vinha de dentro de mim. A minha decisão estava tomada e
nada mudaria os meus planos.
Na
televisão era uma canseira. Nunca tinha hora de saída, nunca podia prever o que
seria o meu dia, com quem iria trabalhar, uma vez que estavam sempre a
incumbir-me de missões difíceis, sigilosas e comprometedoras. Por isso mesmo já
tinham transferido uma das colegas da administração. Para tudo me indicavam
como pessoa de total confiança e então caíam sobre mim todas as tarefas
pesadas, chatas e complicadas. Até com o advogado de acusação do Dr. Ramiro
Valadão por parte da RTP eu tive que trabalhar, na organização de todos os
processos, que eram documentos e papelada que nunca mais acabava. Hoje, quando
penso nisso, acho tudo uma grande loucura, porque o vinte e cinco de abril não
foi aquilo que a maioria das pessoas acredita que foi. Lembro-me, como se fosse
hoje, do advogado comentar comigo acerca de uns papéis que eram despesas de
almoços e flores, com alguém com quem o Dr. Ramiro Valadão esteve, insistindo
que aquilo era uma “vergonha”, a RTP a pagar. Uhau! Depois disso, aos dias de
hoje, quantos almoços e ramos de flores, para não falar em coisas muito piores,
mas muito piores, não foram e não são pagos aos governantes e aos presidentes e
diretores de todas as empresas?! E o outro é que era o ladrão?!
Os
militares estiveram no controle da RTP e imediatamente puseram de lado os
carros de luxo. Compraram R5’s e nem logotipo quiseram. Alguns nem motoristas
quiseram e quando levavam motorista iam sentados ao lado deles para não serem
identificados e não dar muito nas vistas. Veja-se agora, os carros parados no
estacionamento, os carros dos administradores. A maior loucura. E não se pagam
almoços de luxo? E outras despesas que nem me vou dar ao trabalho de enumerar,
porque só não vê quem não quer.
Quando
cheguei aos Açores, aquilo era um paraíso. O meu paraíso, que eu sozinha tinha
conquistado para mim. Mas como não há mal que sempre dure, nem bem que nunca
acabe, aos poucos os problemas começaram a surgir. E quando lá cheguei, também
os militares estavam no comando. Um deles achou que podia arruinar aquilo tudo.
Não raras vezes ia para a única boîte lá do sítio e no dia seguinte aparecia um
empregado da dita boîte com as faturas do sr. Tenente C.P. para a RTP pagar.
Todos os meus colegas pagavam sem nada dizer. Uns verdadeiros idiotas. Um dia
teve o azar de ser eu a atendê-lo e quando apresentou os papéis e vi as bebidas
e mais bebidas, etc… disse-lhe que não pagava. Ele olhou para mim e de olhos
arregalados começou a falar alto, dizendo que eram despesas do sr. Delegado, que
mandava cobrar à RTP. Então, se eram despesas dele, ele tinha que as pagar do
bolso dele!? Ah, mas sempre pagaram e nunca ninguém recusou(?). Pois, o
problema é esse mesmo, é que nunca deveriam ter pago. E recusei-me a pagar,
para grande espanto de todos os colegas presentes.
Claro
que logo de seguida fui chamada ao sr. Delegado, baixinho e gordinho, que
gritava e esbracejava por todos os lados. Atrás de mim a Delegação em peso,
admirados com o meu comportamento. Como é que eu tinha a coragem de enfrentar o
homem? Era ele que mandava(!). E gritava alto e bom som, que ali quem mandava era
ele, frisando bem que eu não era ninguém. O homem estava quase a ter um treco,
mas tive que lhe responder à letra, dizendo-lhe com todas as letras que por
acaso estava enganado e realmente não podia fazer o que simplesmente lhe
apetecesse, por exemplo, querer que a empresa pagasse as despesas da sua vida
noturna, por onde quer que ela passasse e dar cabo daquilo tudo antes de se ir
embora. No que dependesse de mim isso não aconteceria, até porque ele não me
metia medo, além de que ele, o Delegado, não era funcionário, estava ali apenas
de passagem, como todos os outros. Já eu não, eu trabalhava ali, era efetiva, tinha
um número e nada nem ninguém me tiraria dali.
A
loucura completa. O homem gaguejava sem conseguir articular uma palavra. Os
colegas indignadíssimos com a minha “ousadia” e com medo do que me pudesse
acontecer. Mas eu não tinha medo. Eu sabia que estava certa. E quem teria a
coragem de dizer o contrário? Então e o vinte e cinco de Abril, onde ficou ele,
coitado! Eu podia não ter dito nada. Podia não me incomodar com nada daquilo,
como os outros. Mas então que raio de ser humano era eu? Podiam até despedir-me,
mas isso seria por ser e sempre ter sido a pessoa de confiança que viram em mim
e nunca pelo contrário.
O
capitão que se mostrara incomodado com a minha transferência tinha-me advertido
de que, caso as coisas não corressem como eu gostaria, o meu lugar e a minha
passagem de regresso estavam garantidos. Mas isso eu não faria de jeito nenhum.
Eu tinha decidido ir, sinal de que tinha que aguentar com o que estivesse na
minha frente. E teve de tudo. Bom, muito bom e mau, mesmo muito mau. Mas a vida
é assim. Eu só regressaria na altura certa, mas nunca por desistir.
O
facto é que a minha chegada a S. Miguel mudou radicalmente o ritmo e a vivência
da ilha. O ano do verão quente, como lhe chamavam. O ano em que as festas e os
convívios deram uma dinâmica completamente diferente à quietude daquela ilha.
Por tudo eu organizava festas onde nos divertíamos em grande. Com as sardinhas
e o pão de mistura como os reis da festa, o resto fazíamos nós, com piadas e
brincadeiras, as mais variadas, até altas horas da madrugada. O verão quente
ajudava e muito e a vida era para ser vivida.
Não
me enganei quando disse para mim mesma que o meu destino estava lá e que ia
porque sentia o chamado. Não estava enganada de maneira nenhuma. Não sei de
onde vinha aquela voz, como até hoje não sei de onde ela vem, sempre que a
ouço, porque toda a vida fui guiada por essa voz que guia os meus passos e me
abre os caminhos. Não sei. Sei que fui porque era lá que estava o meu futuro.
Era lá que estava aquele com quem havia de ter um filho, uma família, ainda que isso
muito pouco tenha durado. Mas isso não conta. O que conta é o facto em si. E
desde a primeira vez que vi aquele que depois foi meu marido, desde que olhei
para ele, percebi logo que era ele, o tal que estava destinado a ser o pai do
meu filho que eu tanto aguardava e tanto desejava. Era como se estivesse
escrito no rosto dele. A mensagem invisível estava marcada com uma força que precisava de palavras. Ela chegava até mim através do ar que respirava.
Não
foi fácil. Até porque não era, nunca foi e provavelmente nunca será a pessoa
mais fácil, nem a mais compreensiva, nem a mais amorosa deste mundo. Não era de
todo a pessoa mais fácil de conviver, de dialogar, de compreender. Era tudo
menos isso. Dava-me imenso trabalho e mais ainda me daria. Contudo, era muito
provavelmente, para não dizer de certeza, a pessoa mais inteligente que eu
conhecia. E isso era importante, porque não gosto de gente estúpida. Sem
instrução até poderia ser, mas estúpida não. Era inteligente e bonito e eu
queria isso para o meu filho. Era uma pessoa também de múltiplas facetas
criativas, o que muito me encantava. Romantismo era coisa que nem sabia o que
era. Nunca na vida me disse que gostava de mim. A maneira que tinha de o
demonstrar era pôr defeitos em todas as mulheres, porque para ele eram todas
iguais. Todas falavam muito. Todas eram muito chatas. Todas tinham todos os
defeitos. Não era ele. Eram elas. E dizendo isto, eu apenas percebia que ficava
de fora. As outras eram tudo isso que ele não gostava. Eu não. Mas isso nunca
na vida foi revelado ou afirmado. Apenas surgia por omissão, fazendo-se notar no
intuir da questão.
Enganei-me
a seu respeito? Claro que não. Eu sabia que ele era assim. O que eu não sabia é
que não ia ser capaz de aguentar. Achava que o amor que sentia por ele
conseguiria ultrapassar tudo. Sabia que ia ser muito difícil. Ainda assim,
achava que conseguia. Portanto, se me enganei, não foi a respeito dele, mas sim
a meu respeito. Percebi que afinal não era uma supermulher, apenas humana e
nada mais. Fui ingénua? Acho que não. É legítimo atribuirmo-nos determinados
poderes que afinal não temos. Mas parece-me legítimo. É um direito que temos.
Porque não? Se não tivermos a coragem de abraçarmos algo que está para além das
nossas forças, também nunca vamos permitir conhecer a nós mesmos. Depois a vida
é assim mesmo.
Alguma
vez me arrependi? Não. O facto de me ter divorciado ao cabo de dez anos não
significa que me tenha arrependido. Divorciei-me porque foi necessário. Ou
melhor, foi imperioso. Isto é uma coisa que a família e muita gente não
compreende. Não havia condições para coabitarmos, os três. Nenhum de nós
beneficiava de nada, absolutamente. Pelo contrário, era muito complicado. Tudo
em nós era dissociado, a começar pela nossa vida profissional. Mas depois,
diferenciávamo-nos emocionalmente, psicologicamente, para já não falar da nossa
vida pessoal que nem existia. Era nula. E o nosso filho, como ficava no meio
disto tudo? Foi muito duro ter chegado à triste conclusão, bem difícil de
reconhecer e aceitar por mim mesma, de que não havia solução para nós e que a
única coisa, para prosseguirmos as nossas vidas sem tragédias inevitáveis, era
o divórcio, que ele para não variar, não queria aceitar.
Eu
podia ter escolhido outro, claro que sim. O problema é que para mim não era uma
questão de escolha. Não me cabia escolher. Então era o quê? Ah, sim… com toda a liberdade possível, liberdade para aceitar o destino.
Sem comentários:
Enviar um comentário