segunda-feira, 11 de agosto de 2014

O cão da Wanda - 51


Eram onze e meia da noite quando cheguei à porta do prédio onde vivo. Com as chaves na mão para abrir rapidamente a porta e entrar no prédio, alto!... Algo me impedia de o fazer. Nem tentei abrir a porta. Precisava de perceber o que estava a acontecer. Do lado de dentro estava um cão de pé, imóvel e virado para a saída, portanto, frente a frente comigo, separados apenas pelo vidro da porta. Eu olhava para ele e ele olhava para mim, sem se mover. 

Não sou muito chegada a animais. No meu prédio quase toda a gente tem animais domésticos. Ou é um cão ou é um gato e às vezes até mais do que um, mas eu nunca tive animais, nem mesmo quando era pequena. Na minha família nunca houve animais em casa. 

Não posso dizer que não gosto, porque isso não seria verdade, mas eu cá e eles lá. Com os animais das minhas vizinhas e amigos, brinco, mimo-os, tenho uma boa empatia; com os outros não. Se eu não conhecer o animal, fico intimidada, sim. Não propriamente transida de medo, mas tomo cautela com a situação. 

E então, o que fazer? Olhei melhor o cão, posto que eu estava segura, mas não o reconheci. Seria de alguém do prédio?! Enfim, devia ser, mas de quem?... Definitivamente, eu nunca o tinha visto ou, pelo menos, não me lembrava de o ter visto antes. 

Não era um cão qualquer, porque tinha um ar bem cuidado e, se bem que eu não entenda nada sobre cães, achei que era um cão de raça. Tinha uma coleira e ali estava ele, como que a pedir-me que abrisse a porta. Mas eu não abri. A verdade é que tive receio. Àquela hora da noite estava cansada, querendo ir para casa o mais depressa possível para me deitar e dormir e um cão ali a testar a minha paciência?!... 

E passaram quinze minutos e ele ali sem que eu me atrevesse a abrir a porta. Sabia lá se ele resolvia saltar para cima de mim? Não!... 

Entretanto, como eu não abria a porta, foi até à escada e ficou a olhar para cima, como se estivesse à espera de alguém. Fiquei um pouco mais animada. Fazia sentido que estivesse à espera de alguém para o levar à rua. Olhava para o cimo da escada, depois voltava a olhar para mim, como que dizendo que ninguém o vinha buscar e eu tinha que fazer alguma coisa. 

Com isto, já tinha passado quase meia hora, e eu chateada que nem um peru em véspera de Natal. Aquilo não estava no programa. O que fazer? Várias vezes estive tentada a abrir a porta mas, mesmo fazendo todos os cálculos para me pôr a salvo, caso o cão se desnorteasse... não, não dava. Era melhor ficar quieta. Àquela hora da noite quem é que eu ia chatear para me socorrer? E a vergonha que eu ia passar? Que complicação, meu Deus! 

Passava da meia noite e nada. E como não vinha ninguém da escada a buscar o cão e eu não lhe abria a porta, decidiu ficar por ali mesmo, deitando-se no chão. Ele era grande, mas aninhou-se, posicionando-se na laje do patamar superior, entre as escadas e os elevadores e ali ficou. Estava tudo tramado. Mais tramado do que nunca. Agora é que eu não ia entrar mesmo. Teria que passar por cima dele e isso era absolutamente impensável. 

Olhei à minha volta, mas nem vivalma. Já íamos em quarenta e cinco minutos e eu tinha que tomar uma atitude. Aquela brincadeira já ia longe demais. Era eu do lado de fora e ele lá dentro! Ok, um dos dois iria levar um susto. Talvez os dois! 

Abri o trinco segurando a porta para testar a reacção do animal. Ao ouvir o barulho do trinco eis que se levantou e, devagar, desceu para o patamar inferior, encaminhando-se de novo para a porta. Como se mantivesse calmo, tive que jogar com isso e abri a porta toda, para ter espaço bastante para os dois, não fôssemos esbarrar um no outro. Assim que a porta se abriu ele saiu e eu, com o coração a bater com toda a força, corri para o elevador, que subiu até ao meu andar, saí a correr e entrei em casa, fechando a porta rapidamente. Estava a salvo, queria dormir e esquecer. Mas depois... depois, queria dormir e não conseguia, porque era assaz estranho, aquele cão ali sozinho... muito estranho. 

No outro dia logo me lembrei do episódio da noite anterior, claro. Ao fim da tarde, encontrei a Rute, que mora no mesmo andar que eu e como somos amigas, comecei a contar-lhe a história, até porque ela tem um cão. Qual não foi o meu espanto quando ela me disse que tinha estado no café e tinha ficado a saber que o cão da Wanda tinha "fugido" de casa. 

O cão da Wanda? Fiquei a falar sozinha. É que quando ela falou, logo me lembrei de realmente ver o cão com o marido dela. Sim, era aquele cão. Lembrei-me imediatamente de o ver brincando, saltando e eu com um certo receio dele, apesar de estar com o dono. Mas como é que não me tinha ocorrido que era o cão da Wanda? Como é que me tinha esquecido dele? Ao mesmo tempo, há muito que não o via. A Rute explicou que era natural, porque eles tinham mudado para o último andar, uma cobertura com um terraço muito grande e então deixaram de ter necessidade de o levar à rua, por isso eu não me lembrava mais dele. 

Então eu tinha praticamente deixado "fugir" o cão da Wanda!?... Estava passada e zangada comigo. Furiosa, com uma sensação de culpa imperdoável. Ainda por cima eu gostava muito da Wanda, apesar de não ter muita intimidade com ela. Ela era indiana e só por isso eu já sentia um carinho especial por ela. 

Ah, ela devia estar desolada! Que má que eu sou!? Ela e as crianças, porque todas as crianças adoram os seus animais. Por outro lado, como é que ela tinha deixado o cão ir lá para baixo, sozinho, àquela hora? Era um enigma. A coisa não estava bem explicada, o que não impedia de me fazer sentir mal, muito mal. Eu precisava de ir ter com ela e contar-lhe o que tinha acontecido. Mas ia ser difícil, isso ia. Tinha que arranjar coragem. Big problem... 

No dia seguinte, ou seja, no terceiro dia, falei com uma outra amiga que mora também no prédio e claro, já tinha mais novidades. O cão tinha saído de casa sozinho. Apanhou a Wanda distraida, abriu a porta e saiu. Mas isso não era possível!? Como é que o cão abria o trinco da porta que não é propriamente fácil? Estava tudo muito estranho, mas quem se sentia mal, muito mal, era eu. Agora, onde andaria o cão? Eles deviam estar todos tristes e a culpa era minha. 

Bom, não seria só minha, mas em boa parte, aliás, em grande parte era minha, só minha. Embora a minha amiga achasse que eu não tinha culpa nenhuma, que a culpa era de quem o tinha deixado sair de casa, eu não me convencia disso. Eu sabia que tinha a minha quota parte naquilo. Era preciso falar com a Wanda. Tinha que ser. Só precisava de um tempo para me mentalizar e saber como o fazer, sem causar mágoa... enfim. 

E no meio desta confusão toda, sem saber como gerir o peso que sentia, eis que me veio uma luz. Como é que eu não tinha pensado nisso ainda? Pedir, desejar, querer muito que o cão voltasse. Como? Não sabia. Não fazia a menor ideia, a não ser pedir ao universo que trouxesse o cão de volta, que a esta altura estaria para aí perdido, morto de fome ou alguém já o teria apanhado. Isso mesmo e eu não ia desistir da minha única arma: a vontade. A soberana vontade de quem quer o que quer e eu já tinha tido muitas vezes essa prova. Eu sabia que, quando queremos muito uma coisa, conseguimos – nem tudo -, mas querer é poder. 

Já tinham passado três dias e eu só estava à espera de me preparar para arranjar forças e ir falar com a Wanda. Isso estava decidido. Mas ao mesmo tempo, a minha vontade começou a trabalhar no sentido de dirigir todas as minhas energias para trazerem o cão de volta. E mentalizava, mentalizava sem descanso. 

Em pensamento, situava-me no centro do universo e comunicava-me telepaticamente com toda a força da mente, com todos os meus canais de luz abertos e todas as energias a fluirem, sempre pedindo, desejando, visualizando o cão de regresso, como se nada tivesse acontecido; suprimindo o espaço de tempo em que ele tinha estado fora de casa, reunindo o tempo num só, sem aquele fragmento em que ele se escapara. Enfim, fazia o que me era possível no plano espiritual, onde tudo, tudo é possível, dependendo da dimensão do nosso querer, se é que isto é possível.  

Ao quinto dia, quando vinha a chegar a casa, ao abrir a porta de entrada do prédio, voltei-me para ter a certeza de que se fechava e vejo o marido da Wanda saindo de um táxi com o cão, como se nada tivesse acontecido. De repente, senti-me tão leve, tão leve... as minhas preces tinham sido atendidas e eu não precisava mais de ir falar com a Wanda. Só precisava de agradecer ao universo, que mais uma vez me tinha atendido.

Então, o que aconteceu de verdade? O cão saiu de casa, do oitavo andar, porque com certeza alguém fechou mal a porta. Não acontece todos os dias mas por algum motivo aconteceu. Ou até as crianças o podiam ter feito. Apanhando a porta mal fechada, abriu-a e veio pela escada abaixo até à porta de entrada. Não saiu, claro, porque a porta estava fechada e ele não podia abrir. Um cão não abre trincos. Aí, apareci eu que abri a porta e ele saiu. 

Como era um cão de raça foi apanhado por uma pessoa que tomou conta dele e logo o levou ao veterinário para ver se estava tudo bem. Por acaso, o veterinário era o veterinário dele, que logo consultou a ficha, informando quem era o dono do cão, para ser imediatamente contactado. Isto foi o que aconteceu de facto. 

Independentemente disto eu acredito que a força do meu pensamento teve parte neste final feliz. Ele podia ter sido apanhado e levado para longe e ter tido um destino completamente diferente. Assim, se eu me considerava culpada por ele ter fugido, também agora eu achava que a minha vontade tinha tido um papel preponderante e que forças ocultas tinham trabalhado em prol daquilo a que chamo "fé".


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