Era o mês de Julho de um verão com dificuldades em chegar. Os dias já
estavam quentes, mas não muito e com alguma instabilidade. Naquele sábado,
porém, o dia estava bonito, radiante, porque o sol brilhava e a temperatura
estava amena. Os dias cinzentos tinham sido uma constante do inverno,
prolongando-se pela primavera e teimavam em ficar. Tinha uma consulta marcada
sem hora definida, porque se tratava de uma urgência. Na tarde do dia anterior,
tinha ido até à cozinha, porque me apeteceu comer alguma coisa. Era hora do
lanche, por isso fui à fruteira e tirei uma maçã que, depois de lavar, meti à
boca. Logo na segunda ou terceira dentada, o aparelho de contenção dos dentes
do maxilar inferior veio atrás da maçã.
É verdade que a maçã era um pouco rija, mas já tinha o aparelho há
tantos anos e nunca tinha acontecido nada. Daquela vez aconteceu e aí estava
ele a dar-me problemas. Fui ver no espelho e apenas tinha descolado na
parte central, porque continuava fixo nas pontas, porém, não podia ficar
assim. Os dentes começariam logo a desandar e eu não suportava a ideia de
voltar a andar de "ferraduras". Já não tinha mais idade para isso,
portanto, era absolutamente necessário marcar uma urgência.
Tinha conseguido a consulta mas nada garantia que seria atendida. A
condição era ficar disponível a partir das três horas da tarde, para ser
atendida pelo primeiro dentista que tivesse uma aberta, o que poderia
ir até às sete da tarde, e para piorar a situação, seria uma despesa com que
seguramente não contava, nem tinha ideia do quanto teria que gastar.
No sábado acordei nervosa, mas isso eu já sabia que iria acontecer.
Lembrei-me de imediato do que me estava reservado, do dinheiro que teria
de "inventar", dado que o meu seguro da Médis não cobria dentista e,
enfim, tudo andava para atrás. Desde o início do ano que tinha sido
assim. Por mais esforços que fizesse não estava a conseguir aguentar a
pressão. Sentia-me perturbada e insegura. A cena das "crianças" irem
para os Estados Unidos por dois anos tinha-me deixado de rastos, e por mais que
quisesse fingir que nada se passava, era completamente impossível. Estava
estampado no meu rosto com demasiada evidência e não me apetecia ver ninguém e
muito menos falar.
Faziam sempre as mesmas perguntas que não ajudava em nada e ninguém
percebia isso. Toda a gente achava que era óptimo, excelente, o facto de irem
para Nova York. Claro que sim, mas e eu? Falar pelo skype, com certeza mas
e tudo o resto? E a minha neta Sofia? Iam em Setembro, em Dezembro já estariam
de regresso para o Natal. Depois, em Agosto, viriam passar férias e era num
instante que o tempo passava. Só dois anos... dois anos! Para os outros,
talvez, para mim era uma eternidade.
Olhava o relógio e nunca mais eram horas de ir para o dentista. De qualquer
modo, não adiantava ir antes das três, pois não estaria lá ninguém.
Mas como estava muito ansiosa decidi antecipar-me. Precisava de sair
de casa, não sabendo bem para onde e na realidade precisava bem mais do que
isso. Precisava mesmo era de encontrar alguém com quem pudesse falar, falar...
embora também não soubesse o quê. Mas precisava de algo novo; um agito na
minha vida; algo que me desse ânimo. Precisava sair de dentro de mim
e focar-me em algo fora do meu ser. Estava cansada de carregar com a minha
ansiedade e a dos outros também. Em resumo, estava farta.
Foi então que me olhei no espelho e prestes a sair de casa vi as horas,
percebendo que tinha tempo. Porque não me arranjava convenientemente? Estava
escrito na minha cara que não queria ver nem falar com ninguém, mas era preciso
mudar esse padrão e não custava tanto assim. Só um pouco de paciência comigo
mesma e a transformação valeria a pena.
Vendo o meu rosto assim, com os olhos esfumados e o rímel, só isso era mais
do que suficiente para disfarçar as olheiras a que ultimamente já me tinha
habituado e que tanto detestava. Em seguida, liguei o babyliss e passei por
todo o cabelo. Rapidamente troquei as jeans por umas calças de seda mais leves.
Depois, troquei de saco de mão e voltei a olhar-me no espelho. Que força
estranha me impelia a fazer o que aparentemente não queria ou não me apetecia.
Mas uma vontade maior do que a minha apelava agora a todo o meu ser, numa
súbita necessidade de resgatar a minha própria identidade. Eu queria viver e ser
feliz e algo me travava. A minha vontade habitual estava bloqueada. Algo
faltava e algo falhava em mim.
Espelho meu, espelho meu... não sabia para que me tinha dado a todo aquele
trabalho. É verdade que estava bem, bastante bem até. As olheiras tinham desaparecido
como que por magia. E não fora só por disfarce mas porque, enquanto me pintava,
me distraía. Há criatividade nisso e eu gosto. Depois, logo os meus
olhos ficaram com outra vida e ao ver-me assim, percebi que era de novo eu que
estava ali. Olhando para mim agora, assim, ninguém poderia dizer que estava
deprimida. Ninguém. Nem eu mesma. A minha confiança e a minha auto-estima
vieram ao de cima rapidamente. Porque não fazia aquilo todos os dias, como
sempre fizera? Porque me tinha desleixado nos últimos meses, entregando-me a
uma neurose aparentemente sem razão!?
A vida tem que ser aceite como é. As coisas vão, as coisas vêm; pessoas
vão, pessoas vêm. As coisas às vezes melhoram, outras vezes pioram. É
assim, sempre foi e sempre será. Porque se complica sempre tudo?
"Aceitação" é o segredo para viver em paz e harmonia. Eu sabia
tudo isso e nem percebia porque estava a repetir tudo aquilo que estava farta
de saber. Mas no fundo continuava a perguntar a mim mesma para que me tinha
dado a tanto trabalho. Estava bem demais, mas para quê? Não ia
encontrar ninguém e muito menos falar com quem quer que fosse.
E quem poderia responder a isso? Porque não encontraria ninguém? As
pessoas andam na rua, umas e outras. Porque não se daria algo de diferente? Já
me tinha acontecido tanta coisa! Aliás, toda a minha vida tinha sido
pautada por insólitos e coisas inéditas, as mais imprevisíveis e eram
essas as que mais apreciava e as que mais me tinham marcado.
Provavelmente nada aconteceria, além de me encontrar com o dentista, sentada na
cadeira, enquanto ele me mandaria abrir a boca várias vezes. Mas o facto de
desejar e de sonhar já era alguma coisa, já era um padrão diferente daquele que
ultimamente ia na minha cabeça. Estava na altura de reparar mais nos outros do
que em mim, o que seria uma boa terapia.
Saí de casa com mais de uma hora de antecedência porque
não aguentava mais. A minha autoestima e confiança tinham retornado, mas a
ansiedade continuava como antes. Estacionei o carro um pouquinho distante para
não ter de pagar parquímetro e para me permitir andar um pouco a pé na beira do
rio. Gosto muito de passear no Parque das Nações. Se pudesse era ali que
morava.
Peguei num livro e no I Pad e aí fui eu, observando as pessoas, detectando
o seu estado de espírito, lendo-lhes a mente, enfim, divagando ao sabor da
percepção. Cada um na sua. Cada um, um mundo diferente. Olhava a ponte, os
carros, vum... vum... vum... os desportistas andando e correndo,
esfalfando-se... como os admirava, porque sempre achei aquilo um sacrifício.
Andar de bicicleta, tudo bem, mas correr assim?
Já tinha andado quinze minutos. Andando e parando entrei numa zona de
sombra por causa das árvores frondosas dos jardins do oriente,
quando resolvi sentar-me um pouco e ficar. Havia uma ou outra pessoa, mas
nada de mais. Olhei para o relógio e faltava, nada mais, nada menos, que
uma hora. Ficaria bem ali, olhando o rio, observando o vôo das aves, curtindo a
quase imperceptível aragem. Meditaria um pouco, também e então chegaria a hora
do dentista.
Onde sentar? Num banco... não, na pedra que corre junto ao rio. Era
importante o lugar que escolheria. Os caminhos não passam todos pelo mesmo
sítio e o sítio onde eu me sentasse, com certeza decidiria os
acontecimentos (ou não). Percebi que as minhas energias estavam no comando e a
minha sensitividade me guiava fortemente porque, de repente, a minha voz
interior dizia não, aí não. Até que apareceu uma zona que me impeliu e me guiou
até lá. Fosse por que fosse, era ali que devia abancar e assim o fiz.
Olhei à direita, uma rapariga sentada uns metros mais adiante. À esquerda,
uma outra e um pouco a seguir um casal. Atrás, quase ninguém passava. Estava-se
bem. Olhei o rio, observei novamente o vôo das aves e fiquei no vazio. Estava
sentada na pedra frente ao rio, com uma perna no chão e a outra em cima. Pus as
coisas que trazia comigo ao lado e apertei o joelho contra o estômago. Depois
troquei. Estiquei o pescoço, ajudando a coluna a alongar-se e a relaxar e
deitei a cabeça para trás, ao mesmo tempo que observava a rama das árvores
frondosas e frescas.
Alguém passou atrás de mim. Oh, queria lá saber. Não era ninguém que
conhecesse, de certeza. Mas parou um pouco mais à frente, do meu lado esquerdo.
Como quem não quer nada, olhei discretamente. Um indivíduo de
bicicleta. Não interessava, mas percebi que ele tinha firmado a bicicleta
contra o chão e se tinha afastado. Olhei mais uma vez, tão discretamente
quanto possível e vi-o tirar uma foto à bicicleta que estava
carregada que nem um burro. Nunca tinha visto uma bicicleta tão carregada. Até
saco cama ou algo semelhante ele levava. Devia vir de longe, pensei. Além disso
estava equipado com todo o rigor dos pés à cabeça. Numa bicicleta... incrível!
Continuei no meu canto, tentando evadir-me. Mas então, senti o olhar dele
na rapariga que estava quase ao pé da bicicleta e pensei que ia falar com
ela. Depois, olhou em volta, atentamente, e desistiu do que quer que era,
ou não. Senti o olhar dele em mim e fiquei um pouco incomodada. Que quereria
ele? E de repente percebi que devia querer uma foto com ele ao pé da bicicleta.
Veio na minha direcção e senti-me bastante desconfortável, sem saber o que
fazer. Achei por bem ignorar. Mas ele baixou-se um pouco e perguntou-me algo
que achei que não tinha entendido. Mas quando o repetiu em inglês, percebi
que afinal sempre tinha entendido. É que, primeiro, falou em alemão e
isso deixou-me na dúvida, e só depois em inglês. Não estava à espera
que fosse um alemão.
Dieter, pediu-me para lhe tirar uma foto ao pé da bicicleta e ensinou-me
como o fazer, a partir do seu telemóvel. Ok, tirei uma e mais outra. Ele veio
ter comigo e devolvi-lhe o telemóvel, que agradeceu. Perguntei-lhe de onde
vinha. Seguem-se uma série de perguntas e respostas de parte a parte. Quinze
minutos depois já falávamos um com o outro com grande entusiasmo e mais quinze
minutos e já sabíamos muita coisa acerca um do outro. Entretanto, estava quase
na hora de ir para o dentista e perguntei-lhe se ele queria deixar a bicicleta
de lado e dar uma volta no meu carro. Expliquei-lhe que tinha uma consulta
que não sabia quanto tempo teria que esperar. Ele disse que não tinha
importância, que o hotel dele era ali mesmo e que aproveitaria para
descansar. Trocámos os números de telefone para nos contactarmos e cada um foi
à sua vida. A minha auto-estima continuava em alto e agora sentia-me
rejuvenescida. Afinal valera a pena ter-me produzido. Agora as coisas começavam
a fazer sentido. Em todo o caso tinha que ir para o dentista que podia levar
horas para me atender e o nosso encontro poderia ficar comprometido em função
disso ou até adiado "sine die" posto que, no dia seguinte, ele
regressaria à Alemanha.
Chegada ao dentista mandaram-me sentar e esperar. Fui à casa de banho e
sentei-me. Mal tinha acabado de me sentar veio uma assistente que me
mandou entrar. Fiquei boquiaberta e estupefacta. Um dentista ia atender-me de
imediato. Nem queria acreditar! O destino parecia estar a meu favor. O puzzle
da vida encaixava-se naturalmente. Em meia hora estava a sair do dentista com o
problema dos dentes resolvido e ainda por cima tinha pago uma ninharia,
comparado com o balúrdio que eu achava que ia pagar. Sentia-me leve, mas
com a adrenalina a chamar por mim de todas as formas. Estava livre para uma
tarde que seria muito bem saboreada e nada desperdiçada.
Liguei para o Dieter que já estava pronto. Veio ao meu encontro no
lugar em que tínhamos combinado e em dois minutos aí estava ele, novo em folha,
sorridente, simpático, afável e ao mesmo tempo misterioso. Vestia uma
t-shirt branca que realçava o azul dos olhos e o cabelo era claro com muitos
brancos à mistura, mas podia dizer-se que estava muito bem para os seus
cinquenta e dois anos. Fomos pela linha do Estoril e parámos numa esplanada ao
ar livre sobre a praia. Estava um tempo muito agradável, um dia óptimo e
aí ficámos, esquecidos do tempo, falando das nossas vidas. A vida pessoal,
familiar e até o trabalho. De tudo nós conversámos.
Dieter, tinha vindo da Alemanha a pedalar até Portugal, carregando com ele
apenas o estritamente necessário. Tinha sido uma aventura inesquecível, segundo
ele mesmo e Portugal tinha sido uma descoberta muito agradável, com tudo o
tinha para oferecer. Estava encantado com o nosso país. Dieter não se
comunicava com a família desde que tinha saído de casa. Para o efeito, tinha
aberto um blogue no qual postava tudo. Os sítios por onde passava, onde ficava,
o que comia. Tirava fotos dos lugares, dos restaurantes, enfim, tudo estava no
blogue que a família seguia com a curiosidade que o assunto merecia. Ficámos
juntos até à noite e cerca das dez horas deixei-o no hotel e fui para casa, com
as lembranças daquela inesperada tarde, que tanto fugia à minha rotina
e que muito bem me fizera. O destino tinha preparado um encontro leve, que
nos tinha dado muito prazer a ambos e eu estava grata à vida por isso.
O tempo passou e eu fui esquecendo o Dieter. Outras coisas vieram. Tínhamos trocado endereço de mails, mas eu deixaria que fosse ele a comunicar comigo, a dar sinal da sua chegada. E o tempo continuava a passar e eu já me tinha esquecido daquele agradável episódio. Já nem me lembrava mais dele.
Um dia à noite em que estava sentada a ver televisão, de repente,
a minha atenção foi desviada por um breve flash que passou na minha mente, no
qual, apenas aparecia a imagem do Dieter. Não sabia porquê. Estava atenta
ao que estava a ver na tv e não estava a pensar em mais nada. Foi como se
alguém tivesse falado nele, porque a minha atenção foi
abruptamente cortada para entrar a imagem dele, que se foi no mesmo instante.
Achei muito estranho e ao mesmo tempo pensei que ele nunca mais tinha dado
notícias. No mesmo instante, o telemóvel dava sinal de chegada de mail. Um
mail, pensei, é o Dieter! Só podia ser. Por isso aquele inesperado flash.
Peguei no I Pad que estava mais perto de mim e abri a caixa de correio
electrónico. Lá estava o
mail acabadinho de chegar:
“Dear Lilly, on Monday, 30.Jun the airplane brought me back to Germany. I had some very good days in Lissabon and I specially enjoyed the few hours on Friday with you. It was a pitty, we didn't had more time for each other...”
A Internet é uma coisa fabulosa. O mail do Dieter atravessou vários países
e percorreu parte da Europa vindo das mãos dele directamente para as
minhas. Se pensarmos bem nisso, realmente, é um feito e tanto. Não é pouca
coisa, não, de modo algum. Eu já não saberia viver sem Internet e muitos de nós
ficariam completamente perdidos e até isolados. Mas a mente é um
computador vivo. A mente humana ganha pontos. A verdade, é que, o momento em
que ele carregou na tecla "enviar", foi o momento em que eu o
vi. Aquele disparo da cabeça do dedo indicador - porque nesse preciso momento
ele pensou em mim com toda a carga energética - accionou a recepção no meu
cérebro, fazendo a imagem dele aparecer na minha mente. Apenas isso, esse poder
de comunicação a que se chama "telepatia" e cujo percurso foi mais
rápido do que a Internet. É praticamente instantâneo.
Para a telepatia só é necessário um "emissor" e um
"receptor", nada mais. Não são necessários fios, maquinaria, nada.
O que está escrito no mail é secundário e eu ou qualquer um podia
adivinhar. São apenas palavras de cortesia que traduzem um sentimento comum aos
dois. Achei até que não iria chegar mail nenhum, o que não teria a menor
importância. Foi um encontro agradável, mas casual, sem antecedentes nem
precedentes.
Se há uma coisa que tem que ser percebida pelos humanos é que a força do
pensamento é mais forte do que o ser humano em si. É algo que nos supera,
apenas porque nos passa ao lado. Quando tomarmos consciência dessa
realidade, imediatamente teremos mais campo de acção e os
nossos "super poderes" serão definitivamente
desbloqueados.
O ser humano tem tudo para ser muito mais do que é. Mas é limitado porque
quer. Porque não acredita em si mesmo. Porque se fecha ao seu próprio potencial
para recorrer a qualquer coisa que venha do exterior. Não importa o que é. É
preciso é que venha de fora de si, porque não confia em si mesmo.
Fala-se tanto da passagem da terra para outra dimensão - a nova terra -,
essa nova terra só terá lugar se nós mudarmos. Se continuarmos como somos, sem
abrir as vias da informação que sempre existiram em nós, mas que estão
adormecidas, bloqueadas, nunca assistiremos a essa nova era, nova terra, a tão
desejada. O bloqueio permanecerá.
Até quando?
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