terça-feira, 19 de agosto de 2014

O Dieter - 52


Era o mês de Julho de um verão com dificuldades em chegar. Os dias já estavam quentes, mas não muito e com alguma instabilidade. Naquele sábado, porém, o dia estava bonito, radiante, porque o sol brilhava e a temperatura estava amena. Os dias cinzentos tinham sido uma constante do inverno, prolongando-se pela primavera e teimavam em ficar. Tinha uma consulta marcada sem hora definida, porque se tratava de uma urgência. Na tarde do dia anterior, tinha ido até à cozinha, porque me apeteceu comer alguma coisa. Era hora do lanche, por isso fui à fruteira e tirei uma maçã que, depois de lavar, meti à boca. Logo na segunda ou terceira dentada, o aparelho de contenção dos dentes do maxilar inferior veio atrás da maçã.

 

É verdade que a maçã era um pouco rija, mas já tinha o aparelho há tantos anos e nunca tinha acontecido nada. Daquela vez aconteceu e aí estava ele a dar-me problemas. Fui ver no espelho e apenas tinha descolado na parte central, porque continuava fixo nas pontas, porém, não podia ficar assim. Os dentes começariam logo a desandar e eu não suportava a ideia de voltar a andar de "ferraduras". Já não tinha mais idade para isso, portanto, era absolutamente necessário marcar uma urgência.

 

Tinha conseguido a consulta mas nada garantia que seria atendida. A condição era ficar disponível a partir das três horas da tarde, para ser atendida pelo primeiro dentista que tivesse uma aberta, o que poderia ir até às sete da tarde, e para piorar a situação, seria uma despesa com que seguramente não contava, nem tinha ideia do quanto teria que gastar.

 

No sábado acordei nervosa, mas isso eu já sabia que iria acontecer. Lembrei-me de imediato do que me estava reservado, do dinheiro que teria de "inventar", dado que o meu seguro da Médis não cobria dentista e, enfim, tudo andava para atrás. Desde o início do ano que tinha sido assim. Por mais esforços que fizesse não estava a conseguir aguentar a pressão. Sentia-me perturbada e insegura. A cena das "crianças" irem para os Estados Unidos por dois anos tinha-me deixado de rastos, e por mais que quisesse fingir que nada se passava, era completamente impossível. Estava estampado no meu rosto com demasiada evidência e não me apetecia ver ninguém e muito menos falar.

 

Faziam sempre as mesmas perguntas que não ajudava em nada e ninguém percebia isso. Toda a gente achava que era óptimo, excelente, o facto de irem para Nova York. Claro que sim, mas e eu? Falar pelo skype, com certeza mas e tudo o resto? E a minha neta Sofia? Iam em Setembro, em Dezembro já estariam de regresso para o Natal. Depois, em Agosto, viriam passar férias e era num instante que o tempo passava. Só dois anos... dois anos! Para os outros, talvez, para mim era uma eternidade.

 

Olhava o relógio e nunca mais eram horas de ir para o dentista. De qualquer modo, não adiantava ir antes das três, pois não estaria lá ninguém. Mas como estava muito ansiosa decidi antecipar-me. Precisava de sair de casa, não sabendo bem para onde e na realidade precisava bem mais do que isso. Precisava mesmo era de encontrar alguém com quem pudesse falar, falar... embora também não soubesse o quê. Mas precisava de algo novo; um agito na minha vida; algo que me desse ânimo. Precisava sair de dentro de mim e focar-me em algo fora do meu ser. Estava cansada de carregar com a minha ansiedade e a dos outros também. Em resumo, estava farta.

 

Foi então que me olhei no espelho e prestes a sair de casa vi as horas, percebendo que tinha tempo. Porque não me arranjava convenientemente? Estava escrito na minha cara que não queria ver nem falar com ninguém, mas era preciso mudar esse padrão e não custava tanto assim. Só um pouco de paciência comigo mesma e a transformação valeria a pena.

 

Vendo o meu rosto assim, com os olhos esfumados e o rímel, só isso era mais do que suficiente para disfarçar as olheiras a que ultimamente já me tinha habituado e que tanto detestava. Em seguida, liguei o babyliss e passei por todo o cabelo. Rapidamente troquei as jeans por umas calças de seda mais leves. Depois, troquei de saco de mão e voltei a olhar-me no espelho. Que força estranha me impelia a fazer o que aparentemente não queria ou não me apetecia. Mas uma vontade maior do que a minha apelava agora a todo o meu ser, numa súbita necessidade de resgatar a minha própria identidade. Eu queria viver e ser feliz e algo me travava. A minha vontade habitual estava bloqueada. Algo faltava e algo falhava em mim.

 

Espelho meu, espelho meu... não sabia para que me tinha dado a todo aquele trabalho. É verdade que estava bem, bastante bem até. As olheiras tinham desaparecido como que por magia. E não fora só por disfarce mas porque, enquanto me pintava, me distraía. Há criatividade nisso e eu gosto. Depois, logo os meus olhos ficaram com outra vida e ao ver-me assim, percebi que era de novo eu que estava ali. Olhando para mim agora, assim, ninguém poderia dizer que estava deprimida. Ninguém. Nem eu mesma. A minha confiança e a minha auto-estima vieram ao de cima rapidamente. Porque não fazia aquilo todos os dias, como sempre fizera? Porque me tinha desleixado nos últimos meses, entregando-me a uma neurose aparentemente sem razão!?

 

A vida tem que ser aceite como é. As coisas vão, as coisas vêm; pessoas vão, pessoas vêm. As coisas às vezes melhoram, outras vezes pioram. É assim, sempre foi e sempre será. Porque se complica sempre tudo? "Aceitação" é o segredo para viver em paz e harmonia. Eu sabia tudo isso e nem percebia porque estava a repetir tudo aquilo que estava farta de saber. Mas no fundo continuava a perguntar a mim mesma para que me tinha dado a tanto trabalho. Estava bem demais, mas para quê? Não ia encontrar ninguém e muito menos falar com quem quer que fosse.

 

E quem poderia responder a isso? Porque não encontraria ninguém? As pessoas andam na rua, umas e outras. Porque não se daria algo de diferente? Já me tinha acontecido tanta coisa! Aliás, toda a minha vida tinha sido pautada por insólitos e coisas inéditas, as mais imprevisíveis e eram essas as que mais apreciava e as que mais me tinham marcado. Provavelmente nada aconteceria, além de me encontrar com o dentista, sentada na cadeira, enquanto ele me mandaria abrir a boca várias vezes. Mas o facto de desejar e de sonhar já era alguma coisa, já era um padrão diferente daquele que ultimamente ia na minha cabeça. Estava na altura de reparar mais nos outros do que em mim, o que seria uma boa terapia.

 

Saí de casa com mais de uma hora de antecedência porque não aguentava mais. A minha autoestima e confiança tinham retornado, mas a ansiedade continuava como antes. Estacionei o carro um pouquinho distante para não ter de pagar parquímetro e para me permitir andar um pouco a pé na beira do rio. Gosto muito de passear no Parque das Nações. Se pudesse era ali que morava.

 

Peguei num livro e no I Pad e aí fui eu, observando as pessoas, detectando o seu estado de espírito, lendo-lhes a mente, enfim, divagando ao sabor da percepção. Cada um na sua. Cada um, um mundo diferente. Olhava a ponte, os carros, vum... vum... vum... os desportistas andando e correndo, esfalfando-se... como os admirava, porque sempre achei aquilo um sacrifício. Andar de bicicleta, tudo bem, mas correr assim?

 

Já tinha andado quinze minutos. Andando e parando entrei numa zona de sombra por causa das árvores frondosas dos jardins do oriente, quando resolvi sentar-me um pouco e ficar. Havia uma ou outra pessoa, mas nada de mais. Olhei para o relógio e faltava, nada mais, nada menos, que uma hora. Ficaria bem ali, olhando o rio, observando o vôo das aves, curtindo a quase imperceptível aragem. Meditaria um pouco, também e então chegaria a hora do dentista.

 

Onde sentar? Num banco... não, na pedra que corre junto ao rio. Era importante o lugar que escolheria. Os caminhos não passam todos pelo mesmo sítio e o sítio onde eu me sentasse, com certeza decidiria os acontecimentos (ou não). Percebi que as minhas energias estavam no comando e a minha sensitividade me guiava fortemente porque, de repente, a minha voz interior dizia não, aí não. Até que apareceu uma zona que me impeliu e me guiou até lá. Fosse por que fosse, era ali que devia abancar e assim o fiz.

 

Olhei à direita, uma rapariga sentada uns metros mais adiante. À esquerda, uma outra e um pouco a seguir um casal. Atrás, quase ninguém passava. Estava-se bem. Olhei o rio, observei novamente o vôo das aves e fiquei no vazio. Estava sentada na pedra frente ao rio, com uma perna no chão e a outra em cima. Pus as coisas que trazia comigo ao lado e apertei o joelho contra o estômago. Depois troquei. Estiquei o pescoço, ajudando a coluna a alongar-se e a relaxar e deitei a cabeça para trás, ao mesmo tempo que observava a rama das árvores frondosas e frescas.

 

Alguém passou atrás de mim. Oh, queria lá saber. Não era ninguém que conhecesse, de certeza. Mas parou um pouco mais à frente, do meu lado esquerdo. Como quem não quer nada, olhei discretamente. Um indivíduo de bicicleta. Não interessava, mas percebi que ele tinha firmado a bicicleta contra o chão e se tinha afastado. Olhei mais uma vez, tão discretamente quanto  possível e vi-o tirar uma foto à bicicleta que estava carregada que nem um burro. Nunca tinha visto uma bicicleta tão carregada. Até saco cama ou algo semelhante ele levava. Devia vir de longe, pensei. Além disso estava equipado com todo o rigor dos pés à cabeça. Numa bicicleta... incrível!

 

Continuei no meu canto, tentando evadir-me. Mas então, senti o olhar dele na rapariga que estava quase ao pé da bicicleta e pensei que ia falar com ela. Depois, olhou em volta, atentamente, e desistiu do que quer que era, ou não. Senti o olhar dele em mim e fiquei um pouco incomodada. Que quereria ele? E de repente percebi que devia querer uma foto com ele ao pé da bicicleta. Veio na minha direcção e senti-me bastante desconfortável, sem saber o que fazer. Achei por bem ignorar. Mas ele baixou-se um pouco e perguntou-me algo que achei que não tinha entendido. Mas quando o repetiu em inglês, percebi que afinal sempre tinha entendido. É que, primeiro, falou em alemão e isso deixou-me na dúvida, e só depois em inglês. Não estava à espera que fosse  um alemão.

 

Dieter, pediu-me para lhe tirar uma foto ao pé da bicicleta e ensinou-me como o fazer, a partir do seu telemóvel. Ok, tirei uma e mais outra. Ele veio ter comigo e devolvi-lhe o telemóvel, que agradeceu. Perguntei-lhe de onde vinha. Seguem-se uma série de perguntas e respostas de parte a parte. Quinze minutos depois já falávamos um com o outro com grande entusiasmo e mais quinze minutos e já sabíamos muita coisa acerca um do outro. Entretanto, estava quase na hora de ir para o dentista e perguntei-lhe se ele queria deixar a bicicleta de lado e dar uma volta no meu carro. Expliquei-lhe que tinha uma consulta que não sabia quanto tempo teria que esperar. Ele disse que não tinha importância, que o hotel dele era ali mesmo e que aproveitaria para descansar. Trocámos os números de telefone para nos contactarmos e cada um foi à sua vida. A minha auto-estima continuava em alto e agora sentia-me rejuvenescida. Afinal valera a pena ter-me produzido. Agora as coisas começavam a fazer sentido. Em todo o caso tinha que ir para o dentista que podia levar horas para me atender e o nosso encontro poderia ficar comprometido em função disso ou até adiado "sine die" posto que, no dia seguinte, ele regressaria à Alemanha.

 

Chegada ao dentista mandaram-me sentar e esperar. Fui à casa de banho e sentei-me. Mal tinha acabado de me sentar veio uma assistente que me mandou entrar. Fiquei boquiaberta e estupefacta. Um dentista ia atender-me de imediato. Nem queria acreditar! O destino parecia estar a meu favor. O puzzle da vida encaixava-se naturalmente. Em meia hora estava a sair do dentista com o problema dos dentes resolvido e ainda por cima tinha pago uma ninharia, comparado com o balúrdio que eu achava que ia pagar. Sentia-me leve, mas com a adrenalina a chamar por mim de todas as formas. Estava livre para uma tarde que seria muito bem saboreada e nada desperdiçada.

 

Liguei para o Dieter que já estava pronto. Veio ao meu encontro no lugar em que tínhamos combinado e em dois minutos aí estava ele, novo em folha, sorridente, simpático, afável e ao mesmo tempo misterioso. Vestia uma t-shirt branca que realçava o azul dos olhos e o cabelo era claro com muitos brancos à mistura, mas podia dizer-se que estava muito bem para os seus cinquenta e dois anos. Fomos pela linha do Estoril e parámos numa esplanada ao ar livre sobre a praia. Estava um tempo muito agradável, um dia óptimo e aí ficámos, esquecidos do tempo, falando das nossas vidas. A vida pessoal, familiar e até o trabalho. De tudo nós conversámos.

 

Dieter, tinha vindo da Alemanha a pedalar até Portugal, carregando com ele apenas o estritamente necessário. Tinha sido uma aventura inesquecível, segundo ele mesmo e Portugal tinha sido uma descoberta muito agradável, com tudo o tinha para oferecer. Estava encantado com o nosso país. Dieter não se comunicava com a família desde que tinha saído de casa. Para o efeito, tinha aberto um blogue no qual postava tudo. Os sítios por onde passava, onde ficava, o que comia. Tirava fotos dos lugares, dos restaurantes, enfim, tudo estava no blogue que a família seguia com a curiosidade que o assunto merecia. Ficámos juntos até à noite e cerca das dez horas deixei-o no hotel e fui para casa, com as lembranças daquela inesperada tarde, que tanto fugia à minha rotina e que muito bem me fizera. O destino tinha preparado um encontro leve, que nos tinha dado muito prazer a ambos e eu estava grata à vida por isso.

 

O tempo passou e eu fui esquecendo o Dieter. Outras coisas vieram. Tínhamos trocado endereço de mails, mas eu deixaria que fosse ele a comunicar comigo, a dar sinal da sua chegada. E o tempo continuava a passar e eu já me tinha esquecido daquele agradável episódio. Já nem me lembrava mais dele.

 

Um dia à noite em que estava sentada a ver televisão, de repente, a minha atenção foi desviada por um breve flash que passou na minha mente, no qual, apenas aparecia a imagem do Dieter. Não sabia porquê. Estava atenta ao que estava a ver na tv e não estava a pensar em mais nada. Foi como se alguém tivesse falado nele, porque a minha atenção foi abruptamente cortada para entrar a imagem dele, que se foi no mesmo instante. Achei muito estranho e ao mesmo tempo pensei que ele nunca mais tinha dado notícias. No mesmo instante, o telemóvel dava sinal de chegada de mail. Um mail, pensei, é o Dieter! Só podia ser. Por isso aquele inesperado flash. Peguei no I Pad que estava mais perto de mim e abri a caixa de correio electrónico. Lá estava o mail acabadinho de chegar:


“Dear Lilly, on Monday, 30.Jun the airplane brought me back to Germany. I had some very good days in Lissabon and I specially enjoyed the few hours on Friday with you. It was a pitty, we didn't had more time for each other...”

 

A Internet é uma coisa fabulosa. O mail do Dieter atravessou vários países e percorreu parte da Europa vindo das mãos dele directamente para as minhas. Se pensarmos bem nisso, realmente, é um feito e tanto. Não é pouca coisa, não, de modo algum. Eu já não saberia viver sem Internet e muitos de nós ficariam completamente perdidos e até isolados. Mas a mente é um computador vivo. A mente humana ganha pontos. A verdade, é que, o momento em que ele carregou na tecla "enviar", foi o momento em que eu o vi. Aquele disparo da cabeça do dedo indicador - porque nesse preciso momento ele pensou em mim com toda a carga energética - accionou a recepção no meu cérebro, fazendo a imagem dele aparecer na minha mente. Apenas isso, esse poder de comunicação a que se chama "telepatia" e cujo percurso foi mais rápido do que a Internet. É praticamente instantâneo.

 

Para a telepatia só é necessário um "emissor" e um "receptor", nada mais. Não são necessários fios, maquinaria, nada.

 

O que está escrito no mail é secundário e eu ou qualquer um podia adivinhar. São apenas palavras de cortesia que traduzem um sentimento comum aos dois.  Achei até que não iria chegar mail nenhum, o que não teria a menor importância. Foi um encontro agradável, mas casual, sem antecedentes nem precedentes.

 

Se há uma coisa que tem que ser percebida pelos humanos é que a força do pensamento é mais forte do que o ser humano em si.  É algo que nos supera, apenas porque nos passa ao lado.  Quando tomarmos consciência dessa realidade, imediatamente teremos mais campo de acção e os nossos "super poderes" serão definitivamente desbloqueados. 

 

O ser humano tem tudo para ser muito mais do que é. Mas é limitado porque quer. Porque não acredita em si mesmo. Porque se fecha ao seu próprio potencial para recorrer a qualquer coisa que venha do exterior. Não importa o que é. É preciso é que venha de fora de si, porque não confia em si mesmo.

 

Fala-se tanto da passagem da terra para outra dimensão - a nova terra -, essa nova terra só terá lugar se nós mudarmos. Se continuarmos como somos, sem abrir as vias da informação que sempre existiram em nós, mas que estão adormecidas, bloqueadas, nunca assistiremos a essa nova era, nova terra, a tão desejada. O bloqueio permanecerá.

 

Até quando?  

 

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