domingo, 31 de agosto de 2014

O guarda-sol - 53


O Verão de 2013 foi um Verão quente, especialmente quente, por isso as praias em todo o país estiveram sempre cheias, mesmo lotadas. Então, eu e a Sofia, uma amiga com idade para ser minha filha, fomos muitas vezes juntas para a praia, um dia no carro dela, outro dia no meu. 

Num sábado em que ela começava a trabalhar só a seguir ao almoço e as temperaturas logo pela manhã estavam muito acima dos trinta graus, combinámos ir à praia, sendo que saíamos às oito e meia para estarmos na praia às nove e às onze regressávamos. Duas horas de praia chegava e dava tempo para ela se arranjar, almoçar e ir trabalhar. 

Nesse dia fomos no meu carro e entrámos em desacordo porque ela queria ir para a Ericeira e eu para a linha. Comecei a tomar o rumo da linha e ela muito chateada, parecia uma miúda pequena, porque queria à força ir para a Ericeira. Fui-lhe dando várias razões, mas ela não aceitava. Um calor abrasador e aquele clima entre as duas, as coisas não estavam a começar da melhor maneira. 

Quando entrámos na marginal o trânsito estava um horror. Ainda não eram nove horas, o calor já estava insuportável e as praias cheias de gente. Na verdade, já me tinha arrependido, mas agora não tinha como sair dali e estávamos muito perto, só que o trânsito não andava e a Sofia de mau humor, que chatice! Parecia que todo o mundo tinha ficado na praia de véspera, porque aquilo não era normal. Carros estacionados por todo o lado, uma confusão dos diabos! Um verdadeiro caos. 

A Sofia queria fazer toplesse, queria espaço para ela sem ser incomodada por ninguém e com aquele amontoado de gente era impossível e queixava-se de que as brigas dela com o ex-namorado eram sempre por causa daquilo. Queria praias que lhe dessem espaço e privacidade, no que não deixava de ter razão, mas àquela altura já não havia volta a dar, porque dali não tínhamos como sair e a verdade é que para o outro lado, em fim-de-semana e com aquele calor, também não seria muito diferente. 

Agora a nossa preocupação era com o estacionamento. Onde iríamos estacionar? Mas eu dizia-lhe que havia de haver um lugarzinho à nossa espera, um lugar que ninguém via, o que em boa verdade aconteceu. Entrei no parque e lá estava aquele lugar ligeiramente fora da marcação, mas que devidamente estacionado nem se dava por isso. Assim foi e só por isso a Sofia já ria. Pegámos na tralha e lá fomos, sem saber para onde ir nem por onde abrir caminho. Nunca se vira uma coisa assim e um calor insuportável, parecia o Brasil, porque naquele ano até a água estava quente, por causa das temperaturas excessivamente altas. 

Onde fixar o guarda-sol? Onde pôr os pés? Por onde caminhar, se não havia espaço?! Insuportável. Já tinha sido uma coisa extraordinária termos conseguido chegar ali e ainda mais termos arranjado lugar, quando todos os carros andavam às voltas parecendo umas baratas tontas. Um calor abrasador e eu só queria largar tudo e entrar pela água dentro e a Sofia outra vez mal disposta. Há dias em que não se pode sair de casa. Aquele era um deles. 

Enfim, com muito custo e já extenuadas entrámos à força na areia, com muito cuidado para não pisar ninguém, curvando-nos para passarmos por baixo dos chapéus, que eram mais que muitos e todos juntos, era realmente dramático. Toda a população de Portugal inteiro estava espalhada pelas praias que não davam vazão. Não se conseguia perceber onde acabava uma família e começava outra. 

Era preciso ver que eram apenas nove horas da manhã e aquilo já estava assim. Muita gente devia ter ido de madrugada, talvez até durante a noite. Há gente que tem dificuldade em dormir por causa do calor, por isso não me admirava nada que tivessem ido dormir para a praia. A areia estava a ferver, a água um caldo, estavam todas as condições reunidas para, a qualquer hora, quererem estar na praia o que, aliás, para muitos, seria mesmo a única solução. 

Mas e agora, nós, onde conseguiríamos um espaço para assentar e pôr as nossas coisas? O guarda-sol nem pensar, mas também quase não era preciso, porque os chapéus estavam todos tão próximos uns dos outros, que se apanhava uma sombra de qualquer lado. A questão era haver espaço. 

Com um ar desolado, as duas caminhando pela areia, insistindo e forçando a passagem, já nem queríamos saber se incomodávamos ou não. Só queríamos fazer valer o nosso direito de também estar ali. Na retaguarda, as pessoas que chegavam ficavam paradas, sem se moverem, olhando a massa de gente na praia, sem saberem o que fazer. Mas nós não íamos entregar os pontos assim tão facilmente. 

Já estávamos quase junto à água, paradas, olhando em volta uma brecha que não conseguíamos vislumbrar, quando de repente uma criança pequena se levantou e se dirigiu para a água. A seguir, alguém foi atrás dela. Rapidamente nos apropriámos daquele minúsculo espaço. Desviámos um pouco as toalhas que estavam no chão e como quem não quer nada, mas sentindo-nos umas intrusas, largámos os sacos no chão o mais juntos possível para não se misturarem com os de mais ninguém e aí ficámos, olhando uma para a outra, com umas caras de lástima. 

Com cuidado, tirei o guarda-sol, não precisamente por causa do sol mas para afastarmos um pouco de nós os que estavam em volta. Era realmente desagradável e sufocante. Estávamos completamente em cima uns dos outros. Montei o chapéu e disse à Sofia que ia à água, porque estava com muito calor e cansada. Como ela estava chateada ficou na areia, estendida, de barriga para baixo e com a cabeça entre os braços, para tentar evadir-se e esquecer que estava quase colada aos outros. Toplesse, nem pensar, claro. 

Fui para a água e entrei de supetão. Que bem que aquilo me sabia porque, uma vez dentro de água, o calor já não me incomodava. A água reanimava-me e as minhas energias já estavam renovadas. Tínhamos conseguido chegar à praia, estar na praia e eu estava na água que era tudo o que queria. A Sofia estava a torrar, que era a preferência dela. Mas tinha valido a pena chegar até ali e a água estava óptima! 

Nunca tinha visto tanta gente na praia. Sem dúvida, era um verão fora de série. Havia tanta gente na água, um magote! Parecia uma banheira gigante. Tínhamos que ter cuidado para não dar uma braçada ou uma patada em alguém. Era uma loucura. Mas enfim, era o que tínhamos. De tanto que pedíamos o calor, ele aí estava com toda a força. Tínhamos que o aproveitar e saber tirar o melhor partido da situação. 

Estive uns dez minutos na água, depois resolvi sair e ir para junto da Sofia apanhar sol, enquanto o corpo estava fresco, o que não seria por muito tempo. Ainda dentro de água olhei em frente para a areia à procura de espaço ao pé da Sofia, mas não a vi. Comecei à procura do guarda-sol, mas também não o encontrei. Com calma, saí da água, olhando com mais atenção. Certifiquei-me do sítio onde deveríamos estar, mas não vi o guarda-sol e nem a Sofia. O que se estaria a passar? 

Teria ela ido andar um pouco a pé? Era pouco provável, mas talvez tivesse encontrado alguém conhecido e podia ter ido falar com essa pessoa, mas, nesse caso, o guarda-sol, onde estaria o guarda-sol? Volto para a água, para me afastar da praia e ter um maior campo de visão, mas continua tudo na mesma. Nem sombra da Sofia e quanto ao guarda-sol, havia muitos azuis, mas nenhum deles era o meu. Olhei para o morro, para mais uma vez me certificar da direcção onde supostamente deveríamos estar e achando que não havia como errar, começo novamente a seguir todos os chapéus azuis, mas nenhum era o nosso. 

E a Sofia? Ela, simplesmente, não podia ter-se evaporado? Nem ela nem o chapéu e nem as nossas coisas! E eu na água, de bikini, sem mais nada!... Começo a equacionar todas as suposições prováveis, todas as conjecturas possíveis e até as impossíveis. Cheguei mesmo a pensar que a Sofia se teria ido embora, porque ela não queria estar ali e porque ela estava de posse de tudo, dos sacos, das chaves do carro, etc... mas não, isso não podia ter acontecido. Compreendo que todos temos o direito de às vezes nos passarmos e fazermos coisas inconcebíveis, mas isso ela nunca faria, era impossível. Contudo, o facto é que ela não aparecia, nem ela nem o chapéu. 

Já meio transtornada e a ficar em pânico, começo a percorrer a praia. Primeiro para um lado, depois para o outro e ando na beira da praia, depois mais acima, feito louca, meio doida varrida, toda a pingar água por todos os lados e a tentar controlar-me porque só já me apetecia gritar. Mas isso não podia acontecer. Tinha que me controlar, fosse de que jeito fosse. 

Finalmente dou-me por vencida. A Sofia não estava na praia e o chapéu evaporara-se. Tudo tinha desaparecido (ou não), o certo é que eu não tinha mais por onde procurar. Assim, restava-me uma única solução: pedir ajuda. Mas também não tinha a menor ideia de como fazê-lo. Iria aonde, ter com quem, dizer o quê? Eu, uma mulher de sessenta anos, perdida na praia, ah, essa não! Que cena! Realmente, se há mesmo dias em que não devíamos sair de casa, aquele era o dia. 

Agora tinha de agir e o mais depressa possível, porque precisava de saber o que se estava a passar e não aguentava mais aquela irrisória situação. Tinha que pedir ajuda. O que fazer? Procurar alguém, alguma pessoa dali mesmo, dizer que estava aflita, que a minha amiga tinha desaparecido da praia e eu não tinha nada, nem roupa, nem chaves, nem telemóvel, nada. Estava a sentir-me como que nua, literalmente nua, indefesa, envergonhada, tola, tudo isso e muito mais. Era absolutamente ridícula toda aquela situação, porque uma cena daquelas não podia acontecer. 

Olhei rapidamente, mas as pessoas estavam todas ocupadas com os outros ou consigo mesmas e depois quem é que ia querer saber de mim? Eu não queria mesmo incomodar ninguém, mas alguém ia ter de me ajudar. Estava exactamente no sítio onde devíamos estar. De pé, olhando em volta, tentava perceber qual a pessoa que estaria mais disponível para me ouvir. Um casal, outro casal, uma avó com dois netos... que bronca(!)… e vejo um indivíduo por volta dos quarenta anos, talvez um pouco menos. Olhei bem e pareceu-me que estava sozinho. Estava à procura de qualquer coisa na mochila... uma sandwish. Rapidamente vou na direcção dele que está a cinco metros de distância e antes que meta o pão à boca, mas já metendo, chego e digo-lhe precisamente que preciso de ajuda. 

Contrafeito, tira o pão da boca e fica sério a olhar para mim, e com ar desconfiado repete as minhas palavras: precisa de ajuda?! Sim, digo eu e pergunto-lhe se está sozinho. Ele, cada vez mais contrafeito, com cara de quem não esconde o seu desagrado e que não está a gostar nada da cena, diz-me que está sozinho, sim, porquê? Claro, só podia. Também... chega uma desconhecida ao pé dele, enfim... e antes de mais nada, digo logo que estava na praia com uma amiga mas que ela desapareceu enquanto fui à água, ela e bem assim, o chapéu. O indivíduo, sem saber o que dizer e o que pensar, olha para mim cada vez mais intrigado, perguntando como é que eu não sabia da minha amiga, então não sabe onde é que ela está e eu digo, não sei e não sei o que fazer. 

Entretanto, uma senhora que estava ali ao pé, debaixo de um chapéu, ouve a conversa e pergunta-me qual é a cor do chapéu, para eu procurar e eu respondo que isso já eu tinha feito, sem sucesso. Os dois perguntam ao mesmo tempo, onde é que eu devia estar e eu respondo aqui, aqui mesmo, ao mesmo tempo que aponto para o chão; e enquanto aponto para o chão, alguém se levanta e chama por mim, Luisa... qual não é o meu espanto, quando vejo a Sofia ali mesmo, claro, levantando-se, agarra-se ao meu pescoço dizendo que já estava muito preocupada porque eu nunca mais aparecia e que já tinha ido à água à minha procura e não me tinha encontrado e estava aflita. 

Meia aparvalhada, percebo que a Sofia estava e sempre esteve exactamente no sítio onde eu a tinha deixado, no sítio por onde eu já tinha passado várias vezes, no sítio onde eu sabia que nós estávamos. E o chapéu? Ah… o chapéu!...O chapéu também. Nada se tinha evaporado, tudo estava como deveria estar. Tudo tranquilo, tudo certo. 

Então? 

Então, que o chapéu estava lá, é verdade, só que não era azul, era vermelho. Vermelho!? E eu sempre à procura de um azul! Ah, disse eu e levei um susto, porque percebi que tudo se tinha dado por conta de um erro meu. O chapéu era vermelho e era meu. Eu mesma o tinha comprado. Como podia acontecer-me uma confusão daquelas? 

Mas este erro não era um erro qualquer. Era um erro assaz importante e com o qual aprendi. 

A nossa mente é diabólica. Eu tinha feito uma programação inconsciente e só naquele momento acabava de ter essa consciência. Quando comprei o chapéu eu queria um azul. Azul é a minha côr de eleição. Acontece que não havia azul. Procurei em vários sítios e não tendo conseguido um azul, fui obrigada a escolher outra cor, tendo optado pelo vermelho. 

Mas o facto de ter comprado um guarda-sol vermelho não mudou nada. Ficou subjacente na minha mente o chapéu azul que eu queria, apesar de o não ter conseguido. Inconscientemente, tinha feito uma programação mental, sem ter levado em conta o quão importante era a cor. 

Bem, depois disto pedi desculpa dando uma explicação sumária, porque me senti tão mal que achei que era o mínimo a fazer para limpar a minha imagem, para que não ficassem a pensar que eu era doida. E tudo terminou bem. A Sofia puxou-me e fomos para a água arrefecer os ânimos, rindo muito daquela maluquice toda e ficou bem disposta com tanto que riu, tanto que, ao entrar na água até dizia “somos todos uma família”. Queria isso dizer que, finalmente, tinha aceitado estar ali como todos os outros. 

Na água, muito nos rimos e divertimos. Dávamos vazão a todas as peripécias e todas as chatices que tínhamos vivido naquela manhã. Agradecíamos à vida o facto de estarmos aliviadas e de tudo ter terminado bem. A água estava uma delícia e brincámos com outras pessoas e crianças que estavam ali também. Quando voltámos à areia já não tínhamos lugar para nos estendermos, mas ficámos sentadas. E nesse instante em que nos sentámos, um garotinho que vinha da água, ali mesmo em cima de nós, deu um berro "Vóoooooooo..."! No meio daquela confusão, ele não tinha reconhecido nem o chapéu de sol, nem a irmã, nem a avó, que mesmo ao lado dele o agarrou pelo braço e o puxou, dizendo-lhe também a gritar "estou aquiiiii... já te disse para quando fores à água vires sempre na mesma direcção"… 

Eu e a Sofia olhámos uma para a outra e desatámos a rir. Parecíamos umas tontas. Mas a história do chapéu não ficou por ali. Devia, mas não foi. Aquela situação não foi o suficiente para reprogramar o meu cérebro. Uns dias depois fomos para a Ericeira, para a Sofia fazer o seu merecido topless e ficámos do lado das rochas, para onde quase ninguém vai. Haviam três chapéus, com o nosso eram quatro. Fui à água e a Sofia ficou a torrar. Quando saí da água, olhei os chapéus à procura do nosso e onde é que ele estava? 

Mais uma vez eu procurava um chapéu azul e não o vendo, comecei a sentir aquele mal estar do outro dia, mas rapidamente me lembrei da cena. Então olhei as pessoas que estavam debaixo dos chapéus e lá estava a Sofia toda estiraçada na areia, debaixo do chapéu vermelho. Ah, o chapéu era vermelho! Nem queria acreditar que estava novamente no mesmo registo. 

Esta história só acabou porque, contando ao meu filho, ele ficou um pouco apreensivo com a situação e logo tratou de me comprar um chapéu azul. Finalmente eu tinha um chapéu azul. 

Umas semanas mais tarde fui à praia, toda contente com o meu chapéu azul. Eu tinha um chapéu azul, lindo. Quando me vinha embora, estava a levantar-se muito vento e ao tentar fechar o chapéu, o vento virou-o e partiram-se umas varetas. Ficou tão danificado, que dali já não saíu. Infelizmente, achei que não valia a pena levá-lo. 

Porém, na bagageira do meu carro, está novamente um chapéu azul.  Eu vou à praia mas o guarda-sol, até ver, fica na bagageira do carro. Dali não sai. Este, veio para ficar. 

Porque eu quero.


3 comentários:

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  2. Luísa, pelos vistos vc não consegue controlar a sua mente em tudo. Mas continua a escrever muito bem. Joaquim

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