Carlos
aproximou-se de mim, beijando-me com a mesma ternura como sempre o faz e a que
já estou mais do que habituada. Só que desta vez era especial.
Cerca de meia
hora antes, acabara de me dizer que não sabia dos documentos da mota. Achava
que os tinha guardado no bolso das calças ou do casaco, mas já tinha procurado
e revirado tudo, sem sucesso. Por isso, deduzia que os tinha perdido, o que o
deixava muito chateado. Perder os documentos, significava ter de ir à loja do
cidadão, perdendo horas de trabalho, o que não lhe dava jeito nenhum.
Disse-lhe que
deviam estar na roupa, para procurar melhor, mas ele insistia que já tinha
visto tudo e não encontrava. Estava convencido de que os tinha deixado cair na
bomba da gasolina e, porque já era noite cerrada, não tinha dado por isso. Voltei
a dizer-lhe que, garantidamente, estavam num bolso qualquer. Qual, eu não
sabia, mas estava decidida a ajudá-lo a procurar.
Era dia de Natal
e eu, em especial, estava embrenhada nos preparativos para irmos almoçar a casa
do Henrique, onde estaria a Sofia, minha neta, a passar o dia com o pai. Talvez
por isso, não lhe tenha dado uma atenção mais merecida e porque também estava
perfeitamente convencida de que os documentos estavam em casa, algures na roupa
dele. Mas podia estar enganada!
Achando que não
podia fazer mais nada, decidiu alhear-se daquele assunto, para não estragar o
dia. Tanto mais, que ele sabia como era importante o facto de irmos a casa do
Henrique. Além de que Carlos, é uma pessoa cem por cento positiva, o que muito
me encanta e aprecio. E assim, os dois continuámos a preparação para o almoço.
Chegou a hora de
nos vestirmos para sair. Escolhi cuidadosamente a roupa, calçado, bijuteria…
dei um jeito no cabelo, uma ligeiríssima maquilhagem, escolhi um casaco
comprido de pelo sintético, porque estava muito frio e fui para a sala acabar
de fazer uns embrulhos.
Daquele dia eu
só queria que desse tudo certo. Não era um almoço qualquer. Era um almoço de
Natal com o Henrique, meu filho. E isso, por razões que agora não vem ao caso,
era de suma importância para mim. Carlos tinha essa noção e isso também o influenciou
a esquecer momentaneamente a chatice dos documentos, que eu continuava a acreditar
que não estavam perdidos. Ma enfim… enquanto não apareciam, estavam perdidos.
Essa era a verdade.
Voltando ao
almoço, se tudo desse certo, isto é, se não houvesse nenhum mal-entendido e
tudo corresse na santa paz, ou no mínimo, em harmonia, o meu dia estaria ganho
e a minha alma estaria feliz, muito feliz. Era como que um resgate de muitas
horas, muitos dias de angústia, raiva e outros tantos sentimentos negativos,
que me tinham deixado completamente de rastos, sem opção de dar a volta ao
assunto. Mas agora, parecia que tudo tinha ido na corrente e já não voltariam
mais, para me atormentarem de todo. Era uma enorme dádiva do universo. Eu tinha
consciência, reconhecia e estava infinitamente grata, assim como pronta para
aceitar essa mudança, mais do que tudo. O vento trouxera, a brisa levara para
bem longe. Era tudo o que eu queria.
Quase prestes a
sair, Carlos chega novamente perto de mim e, coisa que nunca faz, pergunta-me
que casaco deve levar. Hum!... Fiquei a olhar para ele, curiosa pela pergunta,
mas rapidamente, respondi que levasse o casaco de cabedal, que era óptimo e
ficava-lhe muito bem.
Na noite
anterior, tínhamos ido jantar a Setúbal, a casa do João, com mais família, e
ele não me questionou sobre o que vestir. Isso é o normal nele. É um homem com
uma figura bonita, como poucos, e fica bem com tudo o que usa. E por si mesmo,
decidiu levar um sobretudo que raramente veste, muito bonito. Podia ter-lhe
respondido que levasse o mesmo casaco da noite anterior. Mas não sei porquê,
veio-me à ideia o blusão de cabedal e achei que esse estaria bem, no meio de
tantos que tem. Podia ter dito outro qualquer, mas foi aquele que visualizei e
foi aquele que disse. Portanto, quase
sem pensar, respondi-lhe que levasse o tal blusão de cabedal. Sem comentários,
deu meia volta e foi para o quarto.
Estava tudo bem.
Estava tudo mesmo a correr muito bem. Só era pena a história dos documentos.
Parece que tem sempre que haver um senão. Paciência. Há coisas piores.
Cerca de cinco
minutos depois, e voltando ao início da história, estava agora de volta de mim,
enchendo-me de beijos e agarrões e, no meio do seu característico ataque de
ternura que, apesar de já estar habituada, nunca deixa de me surpreender,
acrescentava ainda que eu era uma pessoa muito especial, uma alma preciosa,
iluminada… e sei lá que mais o quê. O seu olhar estava diferente, com um brilho
notável e parecia leve que nem uma pluma. É que a minha sugestão de levar o
blusão de cabedal tinha um fundamento, e embora inconscientemente, tinha
resolvido o único senão para um almoço de Natal perfeito.
Carlos estava
mais do que aliviado. Os documentos da moto, que para ele estavam perdidos, e
que poderiam estar no bolso de qualquer outro casaco, estavam precisamente
nesse mesmo blusão que vestiu seguindo a minha orientação.
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