quinta-feira, 8 de junho de 2023

O cão - 111

 

O cão ladrava, ladrava, ladrava… o que não era usual. Regra geral, os cães iam para ali bem tranquilos. Eu até ficava espantada com o comportamento deles. Muitas vezes, os donos ficavam, outras vezes, não. Iam-se embora para virem mais tarde buscá-los. E dum modo geram, todos se comportavam espantosamente bem. Quietinhos! Alguns até parecia que se deliciavam em estar ali.

A jovem tratadora era uma garota muito dedicada ao seu trabalho e o spa estava sempre muito bem cuidado. Os cães chegavam com os seus donos, levados pela trela, entravam, alguns com o rabo a abanar, e ali ficavam. Às vezes até tinham que aguardar a sua vez, porque ainda estava outro a acabar, mas nem por isso se chateavam. Eram pacientes. E os donos ficavam sentados a apreciar ou iam à sua vida.

Algumas vezes me detive a apreciar, espantada com o facto de eles ficarem quietos, sem se manifestarem, sem medo, sem ladrarem e sem estranharem por serem entregues a outra pessoa, e nunca vi nenhum cão reagir. Eles sempre obedeciam à garota que trata deles e o facto de os donos se irem embora ou ficarem, não os perturba nada, independentemente do que vão fazer.

A loja é toda envidraçada e vê-se tudo o que lá se passa. Às vezes as crianças estão por ali a brincar e ficam encantadas a ver o cão a ser tratado com todo o cuidado. Eles cortam o pelo, tomam banho, vão à secadora, são muito bem escovados e sei lá o que mais. No meio de tudo isto, fico admirada com a submissão deles ao que lhes fazem.

Um dia destes, porém, a situação foi diferente. Quando saí a porta do prédio, ouvi ladrar. Um ladrar forte e insistente. Parecia que o cão dizia: “não quero estar aqui, não quero, não quero, tirem-me daqui” … e fui atraída pela inquietação do animal, que reagia sob forte tensão. Percebi que estava sozinho, sem dono ou dona. A jovem do spa falava com ele enquanto o tosquiava e falava bem alto, ralhando e dando-lhe ordens para que se aquietasse, mas não tinha sucesso e o cão continuava a manifestar-se contrariado.

Não posso dizer que me incomodou muito, mas fiquei curiosa. Se fosse uma criança a chorar ou a gritar, isso sim, ter-me-ia incomodado bastante, mas um animal é diferente, até porque não sou amante de cães, especialmente se não os conheço. Nesse caso até prefiro distância. Incomodou-me mais, a garota estar a aguentar aquilo, porque o cão estava mesmo desassossegado de todo, sem obedecer às ordens dela, que estava com ar chateado.

Então, aproximei-me para apreciar ou perceber melhor, a situação embaraçosa que estava a acontecer por dentro dos vidros da loja e em vez de me ir embora, decidi tomar as rédeas da situação. Dobrando a esquina, dei a volta à loja para ficar de frente para o cão. A menina estava de costas, pelo que não se apercebeu de nada, o que foi bem melhor para mim. E agora estávamos bem de frente um para o outro, separados apenas pelo vidro.

Aí, olhei bem nos olhos dele, deixando-o igualmente fixar-se nos meus olhos. Os animais reagem melhor que os humanos à linguagem telepática, porque é assim que se comunicam entre si. Os humanos, porém, há muito que perderam, ou simplesmente esqueceram essa essa faculdade. Dessa maneira, ficámos os dois, somente os dois, olhos nos olhos. E imediatamente a minha ordem foi enviada. Mentalmente, dizia-lhe: “calou, calou, não ladra mais”. Ele fez um ar de surpresa, como quem diz “quem és tu(?) …, mas sem ladrar. Todavia percebi que estava prestes a continuar a fazê-lo e como isso não podia acontecer de jeito nenhum, ergui a minha mão direita, esticando o dedo indicador que estava apontado para ele, enquanto os nossos olhos continuavam completamente fitos um no outro. O cão, apercebendo-se de que estava a receber uma energia diferente, abria o focinho na tentativa de contrariar aquilo que o estava a travar e a impedir de ladrar, mas logo o fechava. E assim ficou alguns segundos, abrindo e fechando, sustendo o ar, reprimindo o fôlego, enquanto eu continuava olhando fixamente nos olhos dele, mantendo tão firme quanto possível, o dedo apontado, enviando a ordem: “calou, não ladra mais, não, não, não” …

Eu sabia que o cão tinha captado aquela energia que era superior à vontade dele e que o deixou completamente hipnotizado, sem conseguir fazer aquilo que lhe apetecia e que, até antes de eu aparecer, tinha feito: ladrar, ladrar, ladrar. Mas ele também sabia que aquela energia era mais forte do que ele. Não teve medo. Apenas não conseguiu rejeitar. E eu segurava com todas as minhas forças, canalizando e segurando cada vez mais, a cada respiração, a cada segundo, a cada milésima de segundo, aquela energia vinda do campo holístico, que me permitia uma voz de comando superior à dele e que só ele conseguia ouvir. Ao mesmo tempo, ouvia o meu inconsciente dizendo: “tu consegues, tu consegues, não pares, continua e nem por um instante duvides, caso contrário tudo vai falhar”.

Mas isso eu sabia. Tinha a certeza absoluta de que, à menor possibilidade de dúvida, nunca mais iria dar certo, porque esse é o segredo. A vontade é soberana, sim, mas apenas e somente, quando se faz cem por cento presente, sendo que para isso não pode haver a menor dúvida.

O cão deixou de ladrar, manteve-se calado, normalizou a respiração ofegante e entrecortada. E deixou de ladrar assim que fixei os meus olhos nos dele. Parou imediatamente, sem conseguir ladrar nem mais uma única vez. Ainda fiquei um pouco, observando, mas agora com a certeza absoluta de que ele não iria ladrar mais, por aquele motivo.

Afastei-me em direcção ao carro, para ir fazer o que me tinha tirado de casa e o silêncio reinou, com um cão muito bem-comportado, deixando de importunar a pessoa que estava a cuidar dele.

O recado estava dado.


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