Estávamos no começo da Primavera. A toda
lua cheia aproximava-se a grande velocidade. As minhas dúvidas, os meus
receios, encaminhavam-se devagarinho, resistindo, teimando em desabrochar, como
os jardins severos dessa Primavera de esperanças, tão fora de estação e com que
eu tanto sonhava.
O mundo das minhas fantasias avolumava-se
de tal forma que, por vezes, necessitava de refúgio, obrigando o espírito a
embrenhar-se pelo seio de uma verde e densa floresta, onde árvores frondosas
abanavam seus ramos de uma flexibilidade invejável, entregando-se à aragem
fresca e subtil, à melodia do silêncio, ao ritmo natural, suave e simples, da
vida perfumada pelo doce aroma dos frutos maduros e maliciosamente expostos,
numa evidente tentação, como as amoras silvestres cheias de espinhos, de
perigos irresistíveis, prenúncio de mudança, ante a expectativa de um Verão que
se fazia anunciar quente e que, uma vez saboreado até à última gota,
adormeceria estonteado de felicidade, acabando por se perder como que por
encanto, esfumado no horizonte, soprado por uma brisa leve e inconsequente,
como um eco, através de um túnel feito de um som delicioso, que tanto exaltava
o meu sempre sequioso "império de todos os sentidos".
Eu estava em S. Paulo, em plena
feira hippie, que os meus sobrinhos e o meu filho, nessa altura
ainda crianças, insistiram para que os levasse lá. A ideia não me desagradou.
Passeámos, petiscámos, divertimo-nos e a certa altura vi uma vendedora que
tinha umas blusas expostas numa corda. Eram todas iguais, de cores diferentes,
cores lindas, cores de Verão. Fiquei fascinada e a minha sobrinha, a única
menina das crianças que estavam comigo, comentou que eram a minha cara,
insistindo para que eu comprasse.
Imaginei-me dentro de uma e achei que ela
tinha razão. Eram a minha cara. Não resisti. Mas qual seria a cor? Decidi levar
uma no tom de azul indiano, que os garotos todos adoraram. Era linda, em
algodão, com o decote arredondado e embutido de seda lavrada. Tinha uns cordões
finos, também em seda, na parte exterior da meia manga. Era diferente e
original.
Em casa, vesti e ainda gostei mais dela.
Estava decididamente apaixonada pela blusa azul da feira hippie.
Quando chegasse a Lisboa era Inverno, teria que esperar o Verão para me exibir
com ela e ainda assim, deveria ser para um evento especial.
Eu tinha conhecido há uns meses atrás, o
AS, através de uns amigos comuns e a nossa empatia foi muito forte. Ele era
divorciado como eu e tinha um filho exactamente da mesma idade que o meu. Tinha
negócios diversificados e por isso viajava muito. O nosso relacionamento durou
uns três meses, depois, por conta do trabalho, teve que se afastar e a vida não
foi exactamente pelo caminho que queria, mas prometia que voltava, pelo que eu
tinha que esperar e acreditar nisso, ainda que não tivesse contacto com ele.
Mas acreditei e sonhava com esse dia. Voltando à blusa azul que eu achava
que merecia uma ocasião especial, decidi que seria para esse dia, o dia em que
ele voltasse.
Já em casa, desfazendo a mala do regresso
do Brasil, veio à minha mão a blusa que eu tive o cuidado de lavar, passar e
guardar, tendo decidido que ela seria realmente para esse reencontro, que um
dia haveria de acontecer. Prometi a mim mesma que esperaria o tempo que fosse
preciso e não a usaria por motivo nenhum. Ela ficaria intacta. E gravei na
minha mente essa decisão, fazendo o desafio a mim mesma, porque eu queria.
Passou-se o Inverno e chegou a Primavera,
com os dias a ficarem maiores e o sol a aparecer, trazendo mais calor. Chegou
finalmente o Verão e o tempo a aquecer a cada dia que passava. Todos os dias eu
olhava para dentro do guarda-roupa, percorrendo o vestuário e às vezes, quando
já estava cansada de tudo o que tinha e me apetecia vestir uma coisa diferente,
olhava para a minha linda blusa azul, com uma vontade irresistível de pegar
nela e usá-la, mas a promessa que tinha feito a mim mesma impedia-me de o
fazer.
Passou o Verão e o Outono e chegou
novamente o Inverno. Tudo continuava na mesma. Acabou o ano, entrou outro ano,
veio a Primavera, o Verão, o Outono e de novo o Inverno e a minha bela blusa lá
parada. Eu já nem queria olhar para ela. Já estava cansada de vê-la. Quase me
tinha arrependido da promessa que tinha feito a mim mesma. Mas ela continuaria
lá porque, apesar de tudo, eu continuava a acreditar que ele viria e eu devia
essa lealdade a mim mesma.
O ano estava a acabar e eu pensava, talvez
para o ano que vem e, se ainda não fosse nesse ano, ficaria para o seguinte e
nem me atreveria a pôr em dúvida.
E chegou outro ano e o Inverno por aí adiante.
E veio a Primavera, mais uma Primavera com que eu tanto sonhava, porque o tinha
conhecido precisamente na Primavera... e a Primavera passou e chegou o Verão.
Os dias lindos de morrer e a minha blusa lá, a morfar. Dava pena. De vez em
quando tinha um impulso de pôr a mão nela e arrancá-la da prateleira do
armário, mas a minha promessa era mais forte do que eu e não podia trair a mim
mesma. Era preciso resistir. Eu tinha que ser fiel ao que tinha programado.
Os dias iam decorrendo com a normalidade
do costume, inseridos num Verão espectacular de dias lindos, cheios de sol e
calor.
Estávamos em pleno mês de Agosto. Saí do
trabalho, fui buscar o Henrique, como de costume, e fomos para casa. No caminho
comecei a notar a tarde linda que estava. Como era Agosto, o trânsito fluía sem
complicação, pois nesta altura do ano muita gente está fora de Lisboa, em
férias e eu estava particularmente calma. A condução tranquila, até dava para
olhar para os lados e prestar atenção no horizonte, de cores lindas, azul, rosa
e avermelhado, adivinhando mais calor. O ar estava agradável e a luz da tarde,
radiosa, com umas tonalidades bem acentuadas. Às vezes o céu fica com umas
cores que parece que levou umas quantas pinceladas de artista. Assim era. Tão
bom, tão apaziguador. Comentei com o Henrique, que tinha nessa altura nove, dez
anos de idade, olha como está bonita a tarde!...
À medida que nos aproximávamos de casa,
aquela sensação de bem estar e de beleza no ar ampliava-se. Eu sentia o chacra
do coração a abrir. Estava bem, estranhamente bem. Olhava-me no espelho
retrovisor e sentia-me feliz, mais bonita do que era costume, mais sensual,
mais atractiva. Estava bem com todas as sensações que estavam a chegar até mim.
Algo estava para acontecer, mas eu não fazia a menor ideia do que poderia
ser.
Chegámos, estacionei o carro e entrámos em
casa. Na minha casa, até hoje, há um espelho grande de parede e eu senti-me
atraída por ele assim que entrei, o que não era normal. Fiquei um pouco em
frente ao espelho a ver-me. Sem querer, mexi nos cabelos, mas perecia que não
era eu. Era como se fosse outra pessoa que me estivesse a tocar. Continuei a
olhar-me no espelho e parecia que alguém me estava a observar, alguém
invisível. Estava tudo muito estranho, mas não me senti incomodada, porque eram
sensações muito boas.
Vi o meu cabelo e pensei que estava sem
brilho e descuidado, precisava dar um jeito, porque no dia seguinte queria
estar impecável, com tudo em cima. Andava esquecida de mim, mas tinha que mudar
e uma sensação de alegria, de euforia, corria em mim, projectando a minha
própria imagem no dia seguinte, com um astral muito acima do habitual. Era
absolutamente inexplicável, mas delicioso.
E o dia seguinte chegou. Acordei,
levantei-me, tomei duche e novamente fui atraída para o espelho, que me
lembrava as coisas do dia anterior. Eu queria sentir-me sempre assim, com
aquela leveza toda. Sequei o cabelo e chamei o Henrique para se despachar. Fui
ao roupeiro tirar roupa para vestir e hesitei. Queria uma coisa especial, de
acordo com o meu estado de espírito. Era como se eu tivesse um encontro com
alguém especial. Não tinha, mas era assim que me sentia. Estava bem, portanto,
queria continuar a sentir-me assim com aquele estado de alma. Era uma coisa que
vinha do fundo de mim, sem explicação plausível. Tirei as jeans mais recentes e
parei. Vou pôr o quê? Mais uma vez olhei para a blusa, mas desta vez
arranquei-a do armário. Pensei, paciência, vou trair a promessa que fiz a mim
mesma, mas chegou o dia de usá-la. Não quero saber e não vou esperar nem mais
um dia, é hoje ou nunca.
Dialoguei com a minha consciência, que me
dizia que estava a quebrar a fidelidade que devia a mim mesma e isso deixava-me
um pouco perturbada, mas a vontade irresistível naquele dia, de estrear a
blusa, conseguia ser mais forte do que tudo. Estava na hora. Tudo o resto
deixava de ser importante ou tão importante assim. Naquele momento a prioridade
era seguir a minha energia, o resto era secundário. Vesti a blusa, vi-me no
espelho, por fora estava tudo bem, por dentro estava dividida. Quebrava a minha
promessa, mas satisfazia a minha vontade daquele momento.
Durante todo o dia me questionei. Tinha
resistido com tanta firmeza a todas as tentações e naquele dia, subitamente,
mais do que uma intuição, tinha sido tomada por uma força maior do que eu.
Tinha quebrado a promessa que fizera a mim mesma ou com a vida, que é o mesmo.
Estava feito. A blusa tinha saído do armário. Acabava ali o impasse e as
certezas que eu tinha ou que julgava ter... ou não?!...
Quase ao fim da tarde o telefone tocou.
Atendi, mas apercebi-me de que estava nervosa sem compreender porquê. A
telefonista disse que tinha um senhor em linha à procura de uma Luísa que
achava que era eu. O nervosismo aumentou e não entendia a causa. Ouvi uma voz
de homem, olá, está lembrada de mim? ... É claro que reconheci
imediatamente a voz dele.
E de repente percebi tudo, fez-se luz, o
mistério estava esclarecido. Enquanto o ouvia, percebia exactamente tudo o que
se tinha passado. Estava tudo explicado. Estranhamente, a minha programação
tinha resultado.
Espantosamente, a minha promessa tinha
sido cumprida na perfeição e a fidelidade a mim mesma tinha sido admiravelmente
preservada.