segunda-feira, 26 de maio de 2025

D. Velhota - 122


Um lindo dia de Primavera, que se fazia necessário aproveitar da melhor forma possível. À mesa da esplanada, sentada a saborear as vistas e a companhia das duas vizinhas e amigas, logo a seguir ao almoço, limitava-me ao convívio, já que não bebo café como elas, nem outras coisas. Mas é bom estar em grupo, jogando conversa fora. Faz parte da vida.

Ali e naquele momento, o meu eu mais profundo ou o meu eu interior, disparou em direcção à senhora que acabava de sair, invadindo o meu espírito, com uma série interminável de perguntas, que eu não sabia porquê nem para quê, apenas porque uma curiosidade mais forte, sentia essa inconsciente necessidade.

Olhei a senhora saindo, ao mesmo tempo que as perguntas todas e mais algumas dispararam. Por exemplo, quem será esta pobre criatura, com tanta idade, como é ou terá sido a sua vida, como viverá ela, sozinha ou acompanhada, etc… etc… etc…

Perguntei a mim própria se tinha alguma necessidade daquilo e a resposta foi redondamente não. Mas é uma curiosidade que está para além das minhas fronteiras e ultrapassa o meu entendimento. Quantas vezes passo por um sítio qualquer, olho para um prédio, uma casa e começo a inquirir o meu eu sobre como será o interior daquele pequeno mundo? Sobre como serão as pessoas que lá vivem, felizes ou infelizes, novos ou velhos, sempre sem que eu conscientemente precise daquelas respostas. Mas o inconsciente acaba por se sobrepor. E não é por uma questão de bisbilhotice. É outra coisa muito diferente. É como que uma intuição que começa a trabalhar desordenadamente, acabando por ter que me controlar, porque são pensamentos de que, sinceramente, não preciso.

Naquele momento, aproveitando gostosamente a companhia e o sol que nos aquecia os pés, ao ver a senhora sair, o meu inconsciente projectou-se na figura que acabava de ver, indo ao encontro do meu olhar, para, num instante sem tamanho possível, desenrolar todo um incontrolável questionário que não tinha o menor interesse, mas que foi maior do que eu, até ao momento em que disse a mim mesma para parar com aquela “febre”.

A senhora deu meias dúzia de passadas e estranhamente, estranhamente… ao passar pela nossa mesa, olhou-nos sorrindo, parou e começou a falar. Então, pensei que talvez ela morasse por ali, embora nunca antes a tivesse visto, e talvez fosse conhecida de alguma delas. Porque não? Continuou sorrindo, um sorriso estranho porque estava completamente desdentada, sem um único dente, a boca encovada com o queixe saliente e aí começou uma conversa que nunca mais acabava.

Demos a atenção possível à senhora velhota, que desfilava toda a sua vida com pormenores  minuciosos, falando descontroladamente, sem lhe termos feito uma única pergunta. Nenhuma de nós abriu a boca para se dirigir a ela com o que quer que fosse, apenas a preocupação de não a interrompermos e deixarmos falar, pois parecia uma necessidade premente.

Ali permaneceu durante vinte minutos em que não parou de falar. O mais interessante é que eu pensei que elas a conheciam e cada uma delas pensou o mesmo, que as outras a conheciam. Portanto, nenhuma de nós a conhecia, pelo que ficámos as três um pouco baralhadas, olhando umas para as outras sem resposta plausível.

Ao fim de todo aquele tempo em que ficámos impedidas da conversar entre nós, pela atenção dispensada à senhora, percebemos pelos olhares que estávamos cansadas de a ouvir, pelo que a Rute se levantou, interrompendo por alguns segundos o discurso da senhora velhota, para dizer que estava na hora de ir trabalhar, sendo que nós aproveitámos muito bem a deixa e também nos justificámos dizendo que também tínhamos que ir às nossas vidas.

A senhora velhota terminou a conversa e para grande alívio das três, retomou o seu caminho. A minha cabeça estava cheia e assoberbada de tanta história que não interessava. Todas fomos inesperadamente bombardeadas sem grande justificação e posso dizer que estávamos exaustas de a ouvir.

Perguntávamos umas às outras, mas quem é a senhora e surpreendentemente ninguém tinha resposta, o que nos deixou sem palavras. Mas eu sabia que a origem daquele mistério estava na minha cabeça. Quando ela saiu do restaurante as perguntas assolaram a minha mente e dona velhota não fez se não responder, ainda que inconscientemente, ao meu estranho interrogatório, proveniente da comunicação das mentes.

O nosso poder telepático é muito mais forte e conecta-se muito mais do que se pode imaginar. Nem consigo entender como é que há pessoas que sistematicamente negam tudo isto. A realidade é muito mais concreta do que abstrata. O problema é que vivemos meio adormecidos e embrenhados em coisas que nos desviam da vida na sua plenitude.

 


domingo, 25 de maio de 2025

Um pedido de socorro - 121


Há anos atrás, numa outra vida, ainda que bem próxima, quando aos fins de semana o Álvaro e eu íamos para a casa de campo em Alcobaça, aconteceu uma coisa incrível. Para quem é muito relacionado com a natureza e especialmente com os animais do campo, pode até nem ser, mas para mim que, forçosamente sou citadina, onde a maior parte do tempo fui criada, cresci e vivi, este episódio é algo revelador. 

As fábulas contam as histórias “no tempo em que os animais falavam”. Neste episódio fiquei a saber que os animais falam de verdade e da forma mais inteligente possível. E não foi só no passado. É assim.

Chegámos a Covões, Alcobaça, ao final da tarde de uma sexta-feira. Correu tudo normalmente como era costume. Acomodámo-nos, jantámos, vimos um pouco de televisão e depois fomos dormir. O som do campo… ah, que delícia!... Eu chegava lá e esvaziava a minha cabeça. Era um sossego absoluto. Às vezes, ouviam-se as gargalhadas ou as vozes das crianças de uma moradia próxima, que alegremente quebravam o silêncio, mas tirando isso, nada mais se ouvia. A estrada passava longe e não havia ruídos de espécie alguma. A moradia do lado era de um casal de emigrantes que raramente lá iam, pelo que os patos da quinta mais próxima se encarregavam de se banhar e conspurcar por completo a piscina. E tirando a passarada, que era muito bem-vinda, ouviam-se uns cães de uma outra quinta próxima. Nada mais. Era um sossego abençoado por Deus e que tanto bem nos fazia. 

Ali, perdíamo-nos no silêncio e no silêncio encontrávamos tudo o que precisávamos para um verdadeiro descanso. Mas naquela sexta-feira, já estávamos na cama, quando me apercebi de que havia uma ovelha a dar sinal de vida porque, de vez em quando, fazia méheheheeee… e, então, percebi que já a tinha ouvido antes de me deitar. Não havia nada de mais nisso. Estávamos no campo. Mas eu nunca tinha ouvido anteriormente. Talvez fosse algum animal recém-chegado àquelas paragens. 

No outro dia de manhã quando acordei, o Álvaro já andava na vida dele, como era costume. Tratava do jardim, limpava a piscina e até o pequeno almoço preparava, para tomarmos juntos, quando eu acordasse. E lá estava de novo a ovelha… méheheheeeee… que coisa estranha. De repente, achei que a tinha ouvido até durante a noite, no meu sono profundo, se é que era possível. Talvez fosse apenas impressão minha, já que a tinha ouvido mesmo antes de adormecer. Continuava a ser normal uma ovelha a fazer méheheheeee, mas… mas a minha intuição já estava alerta, achando que aquilo podia querer dizer alguma coisa mais. Na verdade, não devia ser nada. Estava tudo bem. 

O sábado passou-se, conosco nas nossas lidas de fim-de-semana, com algumas saídas e descanso à mistura. Como era bom o “dolce far niento” do campo… oh vida boa! Só que, no meio de tudo isto, não deixávamos de ouvir a ovelha. Com efeito, era muito insistente. Ela sobrepunha-se ao nosso silêncio e interrompia todos os nossos momentos, independentemente do que estivéssemos a fazer ou a pensar. 

Chegou novamente a noite, sendo que, na verdade, aquilo já me estava a incomodar, porque eu tinha a sensação de que ela estava a chamar. Quem? Porquê? E não havia ninguém por perto, os donos, por exemplo? Que estranho!? A minha cabeça começava a ser invadida por uma série de perguntas sem fim. Comecei a falar no assunto e o Álvaro pôs-se à escuta para de seguida dar uma espreitadela, enquanto acabava de dar as últimas fumaças no cigarro da noite, dando uma volta no exterior da casa, para ver se captava alguma coisa mais. 

No domingo, a nossa rotina repete-se. Mas a nossa ovelha também. Volta e meia, lá vinha o méheheheeeeee. Até comentei que ela não se cansava e, provavelmente, já antes da nossa chegada, estaria a fazer méheheheeee. Agora, o Álvaro também já começava a achar aquilo estranho. Mas não era nada conosco!? O problema é que, para mim, aquilo não era um simples méheheheeeee, era muito mais do que isso. O que a minha intuição dizia é que era um verdadeiro pedido de socorro. Mas também poderia ser exagero meu!? 

Ao fim da tarde, começámos a preparar-nos para bater em retirada. Fechou-se a casa e entrámos no carro. Abriu-se o portão e entrámos no caminho de terra batida, que dava acesso à estrada de Covões, para apanhar a estrada principal. E já quase a chegar à estrada, a ovelha chama novamente:  méheheheeeeee. Olhámos na direcção do méh e parámos o carro. Havia aí uma quintinha, onde nunca estava ninguém, porque os donos só lá iam muito de vez em quando. Saímos do carro e acercámo-nos do muro que era relativamente baixo. 

Um espectáculo impressionante. As ovelhas estavam todas juntas. Uma delas permanecia de pé, com a cabeça enfiada da rede da vedação, sem conseguir tirá-la de lá. Enfiou-a, mas não saía. Há quanto tempo estaria naquela situação aflitiva? Nós tínhamos chegado na sexta-feira e ela já estava a chamar, portanto não fazíamos ideia de há quanto tempo estaria ali presa. Mas o mais interessante é que, como estava de pé havia muito tempo e porque já devia estar bastante cansada, além de que não comia nem bebia, porque a cabeça estava do lado de fora da rede, uma outra estava agachada no chão, no dorso da qual ela se apoiava, tentando assim resistir ao cansaço. As restantes estavam em volta. 

O Álvaro trepou o muro, saltou para dentro e tirou a cabeça da ovelha, fazendo tudo voltar à normalidade. Entrámos no carro e prosseguimos a nossa viagem até Lisboa, com uma enorme sensação de alívio. Mas aquela cena para mim foi indescritível. Quem ensinou à ovelha a sentar-se no chão, a fim de que a outra se pudesse apoiar? Quem ensinou aos animais uma palavra que às vezes os homens esquecem e se chama “solidariedade”? 

Bom, a palavra, eu não sei se eles conhecem, mas o sentimento sim. Estava lá, expresso na atitude de todos sem excepção. Aliás, não podia estar mais expresso do que estava. Eu estava absolutamente fascinada e ma-ra-vi-lha-da. 

Então os animais falam ou não? E precisam? Há uma comunicação inteligente que nos escapa e, na verdade, não necessitam nem de falar. Tudo o que sei, que já aprendi ao longo da minha vida sobre telepatia, aplica-se também aos animais, sem dúvida alguma. Eu tinha razão em achar que o méhehehe dela estava codificado, querendo dizer alguma coisa mais. Pelo contrário, era bem anormal. O que se ouvia era méheheheh, mas ela, coitada, gritava “socorro”, tirem-me daqui! 

O tempo em que os animais falavam é hoje e sempre. Eles, entre si, não precisam da linguagem falada. Nós humanos é que precisamos, para nos entendermos e ainda assim, quantas vezes falhamos! Ao longo dos tempos, no nosso processo de evolução, fomos perdendo as faculdades maiores e inventando outras coisas em modo de substituição. Os animais mantêm-se fiéis à sua linha evolutiva. Não é que falar seja deitar a baixo o homem, que isso não teria o menor sentido. Mas, na verdade, ganhamos umas coisas para perdermos outras que são básicas. Quantas vezes uma pessoa fala e nós percebemos que o que está a dizer é pura mentira?! Isso é telepatia, porque o que é válido é o que as mentes estão a conectar. Palavras, levas o vento, ao passo que o que está na mente não pode ser mascarado. 

Os animais têm a sua inteligência que os leva sempre à sobrevivência. Já o homem, nem sempre usa a inteligência para a sobrevivência, mas sim à destruição. Talvez um dia se canse de si mesmo e tenha de encontrar uma maneira diferente, uma maneira muito especial, de pedir socorro!?...