sábado, 1 de novembro de 2025

Um dia diferente - 127

 

Vinte e oito de Abril de dois mil e vinte cinco, um dia diferente, um dia memorável. Um dia de sol, com uma temperatura excelente. Os cafés abertos e cheios de gente animada, por sinal. Quem havia de dizer que este dia chegaria!? Um enorme desafio, sem dúvida. Alguns estavam calmos, outros nem tanto. Talvez meio desorientados, sem saber o que fazer. Por isso, o convívio nos cafés, porque não?!

Eu tinha ido para a universidade sénior, onde as coisas decorreram normalmente. No regresso, pouco depois das onze, pelo caminho, aproveitei para ligar a uma vizinha e amiga, colega da universidade, que nesse dia não tinha ido. Liguei, mas ao segundo ou terceiro toque, a chamada desapareceu, simplesmente. Voltei a ligar e aconteceu exatamente o mesmo. Não achei estranho. Pensei que talvez ela estivesse num sítio sem rede. No elevador, por exemplo. Precisava de ir à Farmácia, mas primeiro tinha que ir a casa buscar a receita.

Ao chegar a casa, estacionei o carro e dirigi-me ao meu prédio. Logo aí, cruzei-me com um jovem casal, meus vizinhos que, sem mais nem menos, me informaram que não havia luz. Não havia luz? Ok, ela voltaria, pensei. Mas eles prosseguiram, dizendo “não há luz em toda a Póvoa”. Ok, continuei a pensar, ela virá quando tiver que vir. Qualquer coisa que aconteceu e pronto. Mas os meus vizinhos continuavam “não se sabe quando virá”. E percebi que a falta de luz estava a incomodá-los, o que não combinava nada com eles, que são bem descontraídos, um pouco demais para o meu gosto.

Fui a casa pegar a receita e tive que subir e descer as escadas, pela falta de elevadores, pensando na falta que faz a luz. Já na Farmácia, alguém falou que estavam sem luz. Aí já comecei a entrar na realidade e a perceber que alguma coisa de maior se passava. Contudo, não me detive demasiado com esse assunto. Saí e do lado de fora da Farmácia, estava uma mulher sentada no lancil, que tinha ouvido a conversa no interior da Farmácia e à minha passagem resolveu continuar o assunto que vinha lá de dentro, sobre a falta de luz, começando a falar para mim, para eu ouvir e ficar esclarecida, porque lhe deve ter parecido que eu não estava nem um pouco a perceber o que se estava a passar, no que não estava enganada.

Dizia “não há eletricidade na Póvoa, nem em Lisboa, nem em todo o país. Mas Espanha e França também não têm. E parece que há mais…”

Eu, que não estava nem aí para uma coisas dessas proporções, apesar do que os outros tinham falado e que não levei muito em conta, parei para olhar bem para ela, pensando no que ela acabava de me transmitir. Agora percebia o estado dela, o ar indiferente e a posição meio alheada de tudo. Não há luz, não posso fazer nada. Desinteressada, por assim dizer. Parecia que se tinha posto de parte em relação a tudo, à vida, ao seu mundo. O seu mundo estava como que submerso na escuridão, digamos. Falava comigo como se estivesse a lamentar-se para si mesma e passava a mensagem para mim, para que eu ficasse contagiada do mesmo jeito que ela.

Eu ouvia o que ela dizia, estudando a sua postura de “abandonada” pela sorte, pensando, vou para casa e não há luz… é… é chato, muito chato. Mas o que se há de fazer? Estamos todos na mesmíssima situação! Na minha cabeça imaginava a extensão do problema, uma vez que ela tinha mencionado já três países. Mas seria aquilo verdade?

E a mulher continuava “e não se sabe quando virá… parece que foi pirataria. Provavelmente um ataque terrorista… agora vamos ficar assim uma semana no mínimo…, mas pode levar mais tempo…” … …

Naquele momento, depois de ouvir tudo o que ela despejou, os meus sensores deram imediatamente sinal. Tudo bem, que podia ter sido um apagão com a dimensão que ela estava a dar. Mas, independentemente da origem que teve, não íamos ficar sem luz todo esse tempo. Era inadmissível uma coisa dessas. Tanta coisa dependente disso!? Mas… e se ela estivesse certa?!...

Queria sair dali para me informar, para saber o que se estava a passar de facto, mas, nem ela terminava a conversa, nem eu conseguia conciliar o pensamento porque, ir para casa, claro, tinha que ir mesmo, mas sem luz, não havia televisão e, portanto, não havia como saber notícias fidedignas. Que fazer?

A mulher, que continuava aparentemente a falar comigo, mas que, na verdade, falava com ela própria - porque aquilo era um lamento, um queixume, a maneira como ela estava a interiorizar o acontecimento - focava-se sobretudo no tempo que o apagão, como ela dizia, iria demorar. Uma semana no mínimo. Comecei a pensar nas proporções de um alarme daquela natureza e, de repente, parecia que a vida se tinha virado de cabeça para baixo. Sim, ela estava a conseguir passar para mim toda a angústia em que estava mergulhada.

Uma semana era muito tempo … tempo demais, o que não podia ser. Um dia já era muito! Parecia que não íamos poder sobreviver. E quando estava a ficar no auge das minhas emoções, antevejo uma onda de retrocesso, que começa a chegar até mim, contrariando toda aquela ansiedade motivada pela notícia desastrosa. Enquanto a mulher continuava a insistir no tempo, “uma semana, ou até duas semanas, não se sabe quanto irá durar” … eis que aquela onda de informação começa a descodificar-se, para me trazer a notícia, a boa notícia de que, no máximo, naquele mesmo dia à noite, a luz chegaria a nossas casas. Caso contrário, na manhã do dia seguinte, tudo estaria resolvido, o que quer que tenha acontecido. E tudo voltaria à normalidade.

Fiquei então bem mais tranquila e apetecia-me dizer-lhe, “não, olhe que não, posso dizer-lhe que hoje mesmo as coisas se resolvem e o mais tardar amanhã de manhã tudo estará normalizado”, mas não fui capaz. Não fui mesmo. Aquilo era uma informação minha, muito minha, que a minha intuição tinha conseguido acessar. A minha conexão com o cosmos é uma coisa muito minha e os outros não têm que aceitar e nem compreender. Se eu lhe tivesse dito alguma coisa, talvez ela pensasse que eu era doida. Por isso abstive-me e muito educadamente me recolhi, afastando-me dela calma e tranquilamente, para ir para o carro.

Cheguei a casa meio perdida com tudo o que estava a acontecer. Comecei a pensar nas consequências, coisas grandes e coisas pequenas, como: ficar fechado num elevador(!?) Enfim… a situação era delicada. Contudo, a minha cabeça continuava a dizer para não me preocupar, porque a luz chegaria às nossas casas naquele mesmo dia à noite. Estaria eu a sonhar? Não estava. Eu sabia e tinha plena consciência da veracidade da minha mensagem, vinda diretamente do cosmos. Todos estamos ligados, essa é a questão que muitos ainda esquecem, ignoram ou descartam. Para mim, isso faz todo o sentido, por isso me situo nessa dimensão. Não é nada demais. Isso, do meu ponto de vista. E se estamos todos ligados, o ponto de encontro será o universo.



sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Mistérios - 126

 

A vida tem tanta coisa para a qual não temos resposta! Nestes casos, o mais sensato é ter uma atitude positiva e encarar os factos tal como são, sem demandas, sem questões, para que tudo se torne o mais normal possível. Foi o que fiz a partir de um certo ponto da minha vida, que já vai longa e, assim, as estranhezas deixaram de ser estranhas para passarem a ser simplesmente o que são.

Passei a vida toda praticamente sozinha, posto que o meu primeiro casamento durou apenas doze anos. E aos trinta e seis anos, eu estava novamente sozinha, como estava antes de me casar. Só que agora tinha um filho.

Por isso, posso dizer com toda a verdade, que fiz a vida sozinha. Aos sessenta anos encontrei uma pessoa excepcional, com quem vivi apenas sete meses, pura e simplesmente porque, repentinamente, ele se foi, para não mais voltar. Se existe algo que não têm volta é a morte.

Passaram-se doze anos desde esse acontecimento trágico que, na altura me deixou de rastos, e eu já estava com a vida organizada, sozinha, mas com um projecto pela frente, para ter uma rotina normal, por assim dizer, com a minha cabeça equilibrada e emocionalmente estável, enraizada na realidade do dia a dia, em que ninguém sabe o que vem a seguir e o mais correto é focar-se no presente, aqui e agora, e quando eu pensava em mim, na minha vida, eu tinha a certeza absoluta de que daí para a frente seria sempre sozinha. Não me imaginava nem queria mais ninguém comigo. Não, não era aceitável, não fazia sentido, não havia porque pensar numa coisa dessas, era isso que eu sentia. Era assim que eu queria estar e ficar.

Tinha amigas da minha idade que ainda sonhavam em encontrar o tal do príncipe encantado, mas eu, como nunca tive essa fantasia, nem a queria para mim, não era agora que ia pensar numa coisa dessa natureza. Sempre fui muito terra-a-terra, nunca vi o casamento ou uma relação a dois, nessa perspectiva, por isso não era aos setenta anos que isso ia acontecer, de certeza absoluta. Isso era mais do que certo. Só que, a dada altura começaram a acontecer umas coisas bem estranhas.

Uma noite, depois de ter estado a arrumar umas roupas no meu quarto, sentei-me na cama a arranjar as almofadas para me deitar. E na altura em que me vou deitar na cama apercebo-me de que há uma energia masculina de pé, do lado direito, junto à mesa de cabeceira e bem em frente à janela. Era a figura de um homem alto, magro, despido, que desapareceu imediatamente, após confirmação da minha visualização. Achei estranho, mas eu vi e sei o que vi. Não inventei, não imaginei, não sonhei… enfim. As tais coisas estranhas que não têm explicação. Mistério!

O mais estranho nisto é que eu sabia que não era a visão de uma alma, ou seja, de alguém que já não estivesse entre nós. Era a energia muito precisa, por sinal, de alguém que, definitivamente, eu não conhecia, não fazia a menor ideia de quem era, mas que estava vivo, bem vivo. Estava ali, despido, indo-se deitar comigo, com todo o à vontade. Estranho!? A que propósito? Não tinha mesmo resposta para uma coisa daquelas. Por isso, decidi descartar e deitar-me para dormir, sem pensar mais no assunto.

De facto, não pensei mais naquilo. Eu não pensei mais naquilo, mas “aquilo” pensou em mim. Uns dois ou três dias depois, de manhã, depois de ter vindo da casa de banho, com o banho tomado e o corpo enxuto, vou para o quarto para me vestir e novamente aquela visão me surpreende. Lembrei-me imediatamente de a ter visto no outro dia à noite, mas agora era manhã e ali estava novamente a mesma figura enigmática, exactamente igual, despido, e agora passava aos pés da cama. Fiquei parada, a olhar e a pensar comigo mesma, mas quem é esta criatura, este homem que passeia pela minha casa, mais precisamente pelo meu quarto, sem roupa, o que me dizia que era alguém com quem eu teria intimidade, alguém que estava na minha vida, instalado no meu caminho e partilhando a vida comigo!? Era deveras curioso, estranho… todas as perguntas apareciam sem que houvesse a mais pequena possibilidade de lhes dar respostas. Mas, mais uma vez eu decidi descartar, porque não sabia o que fazer com aquela informação vinda do além, do campo holístico, que não pára de me surpreender.

Era a segunda vez que eu via aquela imagem. Era a segunda vez que aquela mensagem me era dirigida. E o que é que eu poderia fazer em relação àquilo? Nada. Estava bem definido na minha cabeça e não só, que eu não seria capaz de voltar a ter um relacionamento. Além disso, aquela visão, mostrava-me que era um relacionamento com bases muito sólidas, e não uma coisa passageira. Mas como? Donde viria aquela criatura e como iria parar à minha vida? Era mesmo estranho! A meu ver, não tinha a mais pequena possibilidade de isso acontecer. Até porque, para que tal acontecesse, era preciso que eu quisesse e eu não queria, de jeito nenhum. Enfim, não ia matar a minha cabeça com um mistério daqueles. Talvez fossem mesmo maluquices minhas e eu não estivesse a ver a coisa como devia.

Passaram-se mais uns dias. Não pensei no assunto. Fiz questão de pôr de parte e seguir o meu caminho. Talvez uma semana mais tarde, novamente à noite, na hora de me deitar, fui atraída pela figura que passava da casa de banho para o quarto, indo na minha frente. E foi então que tive a certeza absoluta de que, num espaço de tempo relativamente curto, a minha vida mudaria por completo. Num futuro muito próximo, eu iria conhecer o meu companheiro, o meu futuro marido. E senti-me obrigada a aceitar aquela notícia, porque ela fazia parte do meu destino, do percurso da minha vida. Não havia escolha. Eu estava simplesmente a ser notificada da reviravolta que a minha vida levaria.

Sentei-me na cama olhando para o lugar onde o tinha acabado de ver, a tentar assimilar e digerir aquilo. Como era possível? Eu sabia que não ia aparecer mais, porque estava tudo dito e não havia mais nada a revelar. Antes, eu compreendia o que tinha visto, mas parecia que não queria aceitar. Agora, porém, eu tinha acabado de perceber que era algo que estava acima do meu querer. Era algo que estava registado no Akasha e não tinha como ser eliminado ou ignorado. O universo fizera chegar até mim uma espécie de ordem comandada pelo cosmos. E ponto final.

A partir daí, sim, eu pensava naquilo, como aconteceria, que voltas eu daria para ir naquele sentido. Ou que voltas a vida daria para pôr aquela pessoa no meu caminho. Todavia, não valia a pena ficar mergulhada naquele assunto, porque não era nada que estivesse ao meu alcance. Era coisa do destino. Eu saberia quando chegasse o momento. A própria vida se encarregaria de fazer acontecer as coisas.

Os dias passaram, as semanas foram correndo, uma após outra e um mês e outro e um dia… sem mais nem menos… as coisas aconteceram e no dia vinte e cinco de Outubro de dois mil e vinte e quatro eu estava de aliança no dedo. Nunca pensei, sinceramente. O homem que mudou radicalmente a minha maneira de pensar em relação à vida. De repente, aquela “visão” de uma energia que aparecia no meu quarto, deixou de ser apenas uma energia, para ser um ser completo, de corpo e alma. Aos setenta e dois anos, perfeitamente consciente do que tinha feito, do passo que tinha dado, eu estava novamente casada, pela segunda vez. Mistérios!...



terça-feira, 7 de outubro de 2025

O pacto - 125

 

Meu filho amado acabava de chegar a este mundo. O médico arrancou-o de mim para o entregar a uma enfermeira que, após os devidos cuidados, o colocou no berço. Enquanto isso, eu penava por conta da placenta, que não queria sair de jeito nenhum. E o médio dizia: “não havia como perder esta criança”. É que a placenta se desfazia nas mãos dele e foi preciso muita perícia para não deixar nada, caso contrário, eu poderia ter uma infecção. Mas a experiência dele conseguiu levar tudo a bom termo. Por isso, só agora eu olhava o meu bebé, pela primeira vez, com olhos de ver.

Pensava em tudo o que tinha feito para chegar àquele momento, que não tinha sido pouco. Tudo fora planeado com todo o rigor. Desde muito nova que queria ser mãe. E esse desejo foi crescendo comigo, com uma força muito grande. Tudo fora planeado ao mais pequeno detalhe. Não posso por isso dizer que “aconteceu”. Não, não foi nada disso. Ser mãe, para mim, era determinante. Posso dizê-lo de outra forma e talvez se compreenda melhor: eu sempre soube que um dia seria mãe. Eu sabia que isso estava no meu caminho. Mas também sabia que só aconteceria na altura certa. Podia até ter mais do que um filho, mas um, pelo menos, eu sabia que ia ter.

Todos os rapazes que conhecia não me diziam nada. No primeiro olhar, ficava logo a saber que não era aquele. Às vezes chegava a duvidar da possibilidade de encontrar essa pessoa, porque também não tinha como descrevê-la. Mas eu olhava e era como se estivesse escrito no rosto, na testa, que não era aquele. Não foi fácil. Até que fui para os Açores, ilha de S. Miguel e pouco tempo depois de lá estar, conheci alguém, meu colega de trabalho, a quem, prestando um pouco de atenção, ao contrário de todos os outros, olhando para ele, percebi que era o tal, o pai do meu filho. Não me enganei.

Eu tinha essa enorme vontade, esse desejo muito forte, de ver como seria um filho meu. Um filho saído das minhas entranhas. Uma continuação de mim mesma, por assim dizer. Mas para isso eu teria que encontrar a tal pessoa, que eu também não sabia como seria. Mas uma coisa era certa, quando ele cruzasse o meu caminho eu identificá-lo-ia de imediato.

Foi então que fiquei a saber que tinha chegado a hora. Incrível! As coisas que a gente sabe, sem saber que sabe. A minha vida nunca mais seria a mesma, mas era o que eu tinha decidido, ou melhor, o que me estava destinado.

Eu sabia exatamente quando tinha sido concebido: o dia a hora, o local… tudo na perfeição. Quando fui ao médico foi só para confirmar, porque assim que a menstruação faltou, senti logo a transformação interior no meu corpo. Tudo em mim me dizia que estava grávida. Depois, foi tudo devidamente acautelado. Para isso deixámos os Açores, voltando para o Continente, a fim de poder ter uma gravidez devidamente assistida e ter o meu filho com toda a segurança possível. E assim foi.

Curiosamente, eu conectava-me com ele, com o seu espírito, e pedia-lhe para que viesse a este mundo, de manhã, quando eu estava cheia de força e energia, mas não muito cedo, para poder dormir o suficiente e ter um parto o mais natural possível. Pedia-lhe que não viesse à noite para não estar cansada e alguma coisa dar errado. O certo é que a nossa conexão foi tão perfeita, que ele nasceu às 09,50. E não foi por um acaso. Foi assim, porque foi o nosso acordo. Tudo foi calculado e programado com vista a ser muito bem sucedido.

E aí estava eu, com aquela criaturinha desconhecida, acabado de nascer, de dois quilos, novecentos e cinquenta, com cinquenta e três centímetros de comprimento, pensando para comigo mesmo: finalmente chegou.

Foi então que tive a noção de que a minha vida nunca mais seria a mesma. Isso era certo. Mas eu tinha conseguido ter o meu amado filho. Amado e desejado, sim. E aí estava ele. Aquela criança passaria a ditar tudo, porque estaria sempre em primeiro lugar. Daí para a frente eu nunca mais seria só eu. Estaríamos sempre, sempre, juntos. A minha liberdade esvaía-se literalmente e totalmente, para ser preenchida por outro ser, o meu pequenino. Isso assustava-me um pouco, porque sempre prezei a minha liberdade, na qual só eu mandava e fazia apenas o que eu queria, sem ninguém a dar-me ordens, o que nunca permiti nem tolerei.

Aí estava ele, a comandar e a preencher a minha vida a cem por cento. Não deixava de ser um pouco estranho, um pouco constrangedor. Nunca mais iria ter um tempo só para mim. Tudo seria por conta dele. A minha cabeça debatia-se em silêncio com essa nova situação, que me dava um certo medo. Estaria eu preparada para isso, depois de tudo o que tinha planeado para chegar àquele momento? A dúvida pairava duma maneira avassaladora, porque percebia que não havia volta a dar, nem como recuar. E se eu não for capaz(!?) era o que martelava na minha cabeça.

Foi então que aconteceu uma coisa inusitada e de tal modo extraordinária, que não há palavras que possam descrever fidedignamente tal coisa. Vou apenas fazer uma tentativa. Aquele ser minúsculo, enfiado nas suas roupinhas de recém-nascido, ali na minha cama, enquanto eu estava sentada a seu lado, não sei como, virou o rostinho na minha direção, como que me olhando nos olhos, ainda meio fechados, deixando passar esta mensagem:

“Mãe, eu preciso de ti. Eu preciso de ti para crescer e para ser um homem. Preciso do teu apoio, da tua ajuda em tudo, para chegar onde quero. Só posso contar contigo. Só te tenho a ti. Tu vais-me ajudar?” Eu preciso de ti!”

Que loucura, pensava eu?  Primeiro achei que estava a sonhar, a inventar ou a fantasiar!?... Mas não, não era nada disso. A cabecinha dele tinha-se virado de frente para mim, ao encontro do meu rosto, o que me tinha deixado completamente sem chão. E logo, logo, aquela mensagem tocou no mais fundo da minha alma, bem dentro do meu coração, fazendo com que eu não tivesse a mais pequena possibilidade de duvidar que era a sua voz interior, do meu amado filho… e sem pensar em mais nada e sem me fazer esperar, ali, na presença dele e do Criador, como testemunha, imediatamente fui ao seu encontro:

“Sim, meu filho… sim, sim, sim. Eu vou fazer tudo o que me for humanamente possível, o possível e o impossível, para que nada te falta e dar-te-ei sempre o meu apoio e o meu amor incondicional, pois estou aqui para ti e só para ti.”

E ele continuava:

“A mãe vai fazer isso, vai estar sempre do meu lado, sempre pronta para mim, para as minhas necessidades? Posso mesmo contar com a mãe?”

E continuei, completamente arrebatada por aquela via espiritual que nos ligava com uma força indescritível:

“Sim. Sim, sem sombra de dúvida. Eu vou conseguir tudo o que precisares e eu estarei sempre contigo. Eu juro, eu prometo, acredita”. Enquanto precisares de mim eu cá estarei para tudo, absolutamente tudo”.

E ele ainda perguntava:

“E se um dia eu me quiser ir embora, à minha vida, eu posso?”

E eu respondia:

“Sem dúvida. Tu vais fazer tudo o que tu quiseres, tudo o que precisares e decidires. És livre para isso. Estarei sempre contigo e sempre respeitarei as tuas decisões. Quando fores grande, podes fazer o que quiseres, mas enquanto precisares de mim eu estarei sempre, sempre, aqui.”

E a sua cabecinha minúscula retornava à posição inicial, como que confirmando que a mensagem estava feita.

Em êxtase profundo e absolutamente assoberbada com uma coisa daquelas, tinha plena noção do que acabara de acontecer. A nossa ligação vinha de uma dimensão muito para além deste nosso mundo, onde tudo é possível e o pacto estava feito. 


quinta-feira, 10 de julho de 2025

A mãe do Carlos - 124


Naquele final de tarde o Carlos tinha chegado com vontade de falar. Ao fim de um bocado percebi que não era só vontade, era um pouco mais do que isso: necessidade de falar. Ele não é muito falador e quando fala, normalmente, é sobre o trabalho e pouco mais. Coisas que não me dizem muito, porque não sei, não conheço, pelo que fico só a ouvir, sem muito para falar.

As pessoas precisam de trocar energia e uma maneira de o fazerem é através do que expressam e comunicam pela linguagem. Há outras maneiras de trocar energia, mas esta é a mais básica, digamos. Todos nós precisamos de falar e ouvir os outros, também. Às vezes fala-se de assuntos mais sérios, outras vezes é só conversa, sem nada de especial. Mas tudo faz falta.

Uns são mais calados do que outros. Há pessoas que falam, falam, estão sempre a falar e às vezes até falam sozinhas. Outras, quase não falam e até têm dificuldade em exprimir-se. Mas o Carlos é das pessoas que realmente não falam muito. Ou guarda tudo para si ou realmente não lhe vem o assunto.

Já eu, preciso de falar e ouvir. O problema é que têm que ser assuntos que me digam alguma coisa, caso contrário não sei fazer conversa e prefiro ficar em silêncio. Mas naquele dia, em vez de ficar agarrado ao telemóvel, vendo as coisas dele, que não sei exactamente o que são, mas é muito conteúdo, porque fica tempo indeterminado agarrado ao telemóvel, sentou-se no sofá em frente ao meu e começou a relatar questões familiares que o marcaram, porque todos temos, com toda a certeza.

Começou a falar, esmiuçando o assunto, o que não é muito seu hábito, coisa que chamou e muito a minha atenção. As questões levantadas por ele prendiam-se com a família, mais exactamente com a mãe, falecida há muitos anos, de quem já tem falado assim muito por alto, sem aprofundar demasiado.

A sua relação com a mãe não foi o que se pode dizer uma relação amorosa. Havia muitos atritos e ele guarda muita mágoa da infância e depois pela vida fora. Ao contrário do pai, do qual fala muito e sempre muito bem, fazendo questão de dar exemplos da vida dele, que o salientam como uma pessoa extraordinária, um verdadeiro exemplo para todos.

E aquela conversa sobre a mãe, poderia ter passado despercebida, independentemente de ter prendido a minha atenção, porque ele precisava dessa atenção e eu jamais negaria tal coisa, tanto mais que percebi perfeitamente que naquele dia estava com uma necessidade especial de falar, mas poderia sim, ter passado despercebida, se nesse mesmo dia não tivesse acontecido algo inusitado, que me deixou com muitas perguntas na cabeça.

Pouco depois de me ter levantado da cama, senti no quarto uma energia que de imediato se materializou de cima a baixo e que muito estranhei. Nunca tinha visto uma materialização assim. Era um corpo de mulher nua, muito bem definido, extremamente bem feita, meio de costas, meio de lado, pelo que a parte da frente não se via. Da cabeça aos pés, viam-se as costas, as nádegas e a anca, tudo do lado esquerdo.

Quem seria, o que queria, o que faria ali? A resposta que não havia, porque caía num vazio completo. Não fazia a menor ideia de quem poderia ser. Até pensei que eram coisas da minha cabeça e que estava com “visões”. Ela estava junto à porta, como quem vai a sair do quarto. Contudo, apesar de parecer sem contexto, ficou registado no meu subconsciente.

Mais tarde, já não me lembro em que lugar da casa, voltei a ver o mesmo espectro, exactamente com a mesma forma, e foi então que registei imediatamente como segunda visão, porque já tinha visto anteriormente, embora continuando a não ter resposta. Ao todo foram três vezes que aquela visão me apareceu, pelo que concluí que não era nenhuma impressão minha, só que realmente não fazia ideia de quem era e o que queria, porque aquilo que via não me dizia absolutamente nada.

Já vi espíritos desencarnados que se me apresentaram completamente vestidos e apesar de nunca ter conhecido, a informação veio em simultâneo com a imagem apresentada. Não sei como, mas veio. Uma visão completamente nua nunca tinha visto. Devo dizer que era uma forma muito bonita. Parecia um desenho a carvão, muito bem feito. Não me transmitiu nenhum sentimento negativo, embora eu saiba que se isso acontece é porque há algo por detrás. Mas, com toda a verdade, não me vinha informação alguma.

E o Carlos lá, sentado, falando da mãe, enquanto eu o ouvia e uma ou outra pergunta lhe fazia. Ele falava da mãe e eu ia visualizando no meu íntimo e silenciosamente a personalidade dela, compondo com toda a informação que ele me fornecia, acrescentando pormenores aqui e ali.

Estava curiosa por ele estar com aquela conversa e ao mesmo tempo estava completamente tranquila, num fim de tarde de verão, em que o calor nos obrigava a relaxar um pouco, apreciando a conversa e bem mais do que isso, a companhia um do outro.

E como não era costume ele falar assim detalhadamente de coisas mais íntimas, perguntava a mim própria, porquê fazê-lo naquele dia!? Achei que era um pouco estranho. Porque o estaria a fazer? E a pergunta foi tão forte que, então, se fez luz e a mensagem veio, sem dúvida nenhuma, o que me deu uma certa tranquilidade, porque aquilo que antes não tinha resposta, agora fazia todo o sentido.

A visão que eu tinha tido três vezes naquele dia, era nem mais nem menos a presença da mãe lá por casa, antecipando a conversa do filho. Porque razão ela apareceu completamente nua? Primeiro, porque eu já tinha visto uma ou outra foto dela e achei que era uma senhora muito bonita e muito elegante. Segundo, porque a descrição que o Carlos fazia da mãe invocava predicados de personalidade muitíssimo profundos, de coisas que eram analisadas de modo muito negativo, “descascando”, por assim dizer, todo o espírito dela, ou seja, a sua alma, pelo que a nudez encaixava perfeitamente no conteúdo menos digno, digamos, sem pudor, pelos erros que lhe eram apontados, ao invés de ter sido uma mãe carinhosa como ele tanto desejaria.

 

segunda-feira, 2 de junho de 2025

O retrato - 123

 

Em casa dos meus tios havia um quadro na parede, que era o retrato de um homem, que despertava de mais a minha atenção de criança. Não tinha nada de especial, mas estava colocado no hall, estrategicamente, bem à entrada da porta e era o único retrato naquela casa. Parecia dar as boas vindas a quem chegava. Mas parecia também como que uma autoridade.

Naquele tempo eu era a única, porque fui a primeira da minha geração. A primeira filha, a primeira sobrinha, a primeira neta, por isso, costumo dizer que vim para abrir as portas aos que vieram depois de mim e se para mim tudo foi complicado, já para os outros, foi tudo muito fácil. Não tenho dúvidas de que foi minha missão, de facto, abrir as portas. E pronto, faz parte da vida, faz parte do percurso de cada um de nós. Cada um veio para o que veio. A cada um cabe a sua parte.

Também por isso, fui a primeira a pisar aquela casa, porque todos nós vivíamos em Setúbal, com os meus avós. Mesmo depois do meu avô falecer, continuámos em casa da minha avó. Só um, o quarto, segundo filho dos meus tios, foi criado em Lisboa, em casa dos pais. E talvez por essa razão, ele seja completamente diferente dos outros. Foi criado pela empregada e pela avó paterna, porque os pais trabalhavam e estavam todo o dia fora. Foi lá que cresceu e ficou a vida toda, até hoje.

Ir a Lisboa para casa deles não era nada fácil para mim. Um terceiro andar, bem no centro da cidade. Não é que eu não gostasse da casa, mas não tinha com que me entreter. A casa dos meus avós, em Setúbal, era uma casa antiga, mas era um rés-do-chão, pelo que o acesso à rua era tranquilo. Quando estava chateada, podia ir para a rua brincar. Em Lisboa, isso não podia acontecer de jeito nenhum. Mesmo que fosse, não estaria lá ninguém para brincar comigo. A única coisa a fazer era ficar quieta, vendo a empregada fazer todo o trabalho de casa, o que era bastante monótono, sem o menor interesse.

Naquela altura também ainda não havia televisão, pelo que a minha riquíssima infância de África, ficara completamente para trás, deixando-me morrer de tédio em Lisboa, onde nem brinquedos eu tinha para brincar. Aquela casa não era uma casa para acolher crianças. Era uma casa de adultos para adultos. As crianças, praticamente, não tinham lugar. Era muito difícil.

Então, eu passava o tempo observando os bibelots, tudo o que estava nas paredes, os móveis e na falta do que me entreter, enrolava-me no chão, acabando por adormecer, porque realmente não sabia o que fazer. O meu refúgio era dormir. Era a minha única defesa.  E o pior é que ninguém me compreendia nunca. Achavam que era eu que era desadequada, sem princípios, etc. Outros tempos.

A casa era muito cheia de tudo, até hoje, porque foi sempre piorando. Ao longo dos anos, e já lá vai mais de meio século, sempre conheci os mesmos móveis, as mesmas coisas nas paredes, e tudo só foi aumentando. Nada ali se põe para fora. A vida foi acontecendo naturalmente. Uns morreram, outros nasceram. Os meus tios tiveram três filhos, dois rapazes e uma rapariga, a mais velha dos três irmãos, mas só um nasceu, cresceu e por lá ficou sempre. Os outros, tal como eu e a minha irmã, era só de passagem.

O J. A., o meu primo que ficou sempre com os pais, teve uma vida completamente diferente dos outros. Os meus tios estavam a semana inteira em Lisboa e só ao fim-de-semana iam a Setúbal. E a assistência que davam às crianças era pouquíssima ou nenhuma. Ao domingo íamos todos à missa. Se fosse Verão, íamos para a praia, mas eles não se preocupavam em nada connosco. O fim-de-semana em Setúbal era apenas e somente para descansarem. Quem quisesse que trabalhasse. E eu, a mais velha, é que era responsável por todos os outros. O que quer que fizessem era minha responsabilidade, apenas porque era a mais velha. Os meus tios deitavam-se na areia a apanhar sol e desligavam-se de tudo. Até em casa, qualquer coisa que corresse mal era culpa minha. Eu não achava aquilo certo, mas era o que era.

A minha infância foi extremamente rica, porque boa demais para ser verdade, e talvez por isso, tenha acabado tão cedo, mudando a minha vida do dia para a noite. Aquelas idas a Lisboa eram sempre uma grande chatice. Mas os meus pais ainda estavam em África e eu não tinha outro remédio.

Hoje, acho perfeitamente natural que eu me deixasse adormecer com tanta facilidade, por conta da monotonia a que estava sujeita. Aquela casa era um castigo para mim. Nessa perspectiva, entendo também o facto de o tal retrato exercer sobre mim tanta atracção e algum mistério. Mas não era só isso. Eu sabia que aquele personagem não estava entre nós. Já tinha morrido havia muito tempo. Então porque havia de estar ali, como que a dizer, eu sou o dono desta casa? Eu sou a “pessoa” mais importante deste lar. Aqui mando eu. Aqui eu imponho-me a tudo e todos!?

Era exactamente isto que ele me dizia. Era isto que chegava até mim, sempre que me detinha, especada em frente do quadro. Até que um dia, ao ver-me ali tão concentrada e talvez já o tivesse visto outras vezes, a minha tia me disse em voz muito baixa, que ele andava por ali, isto é, que o via circular pela casa. De certo modo, apesar de ser estranho, não deixava de vir ao encontro das minhas conjecturas. Estava no seguimento dos meus pensamentos. Todavia e, apesar de eu ser tão pequena, não deixava de ser estranho ela me falar assim, dizendo aquelas coisas que parecia que não tinham cabimento.

Ao longo do tempo, a casa foi-se transformando num verdadeiro armazém, porque as coisas continuaram entrando sem que nada saísse. Quando os meus tios morreram achei que o meu primo daria um rumo satisfatório àquilo. Mas aconteceu precisamente o contrário. Todos nós fizemos um esforço para tornar a casa habitável, com uma certa qualidade de vida, coisa que ele não deixou, porque é um acumulador compulsivo e não consegue pôr nada fora, nem mesmo o lixo. Por incrível que pareça, esta é a mais pura verdade.

Mais de cinquenta anos se passaram e tudo aconteceu. O meu querido primo continua lá, porque nunca viveu noutro sítio. A juntar a tudo o mais que veio, porque as paredes que antigamente tinham apenas alguns quadros, hoje em dia têm milhentos deles, que sobem pela parede até ao tecto, de uma maneira desordenada e sem explicação. Quando raramente lá entro, porque todos nós nos sentimos mal no meio de toda aquela desordem, o retrato continua lá todos estes anos, intocável, o que é incrível.

Porém, se antes, naquela altura em que eu era apenas uma criancinha de cinco anos, não fazia qualquer sentido, embora a minha tia dissesse que ele andava por ali, hoje, ele faz todo o sentido, sim. Há coisas estranhas. Temos que esperar o tempo necessário para compreendê-las. Foi o caso. É que hoje eu sei que, aquele retrato que é do avô paterno dos meus primos, e que foi ali posto “por acaso”... não, não foi por acaso. O acaso é um grande enigma. Já não posso dizer que foi o acaso que me trouxe a resposta. Claro que não. A única coisa que posso dizer é que aquele retrato é, nem mais menos, o avô paterno dos meus primos, sim, que voltou a esta vida no seu próprio neto, o meu primo J. A., o único que sempre viveu naquela casa. 

Da mesma maneira que o meu primo mais novo é a reencarnação do nosso avô materno, o mais velho é a reencarnação do avô paterno deles, não meu, porque é por parte do pai. E tudo se encaixa. Por isso o "acaso" lá o colocou. 

Na verdade, mesmo antes de vir a esta vida, já lá estava em espírito. A minha tia de facto já tinha essa percepção, ao dizer que o via por ali. Só não sabia que ele voltaria de verdade como um filho seu. Mas, certamente, foi ela que, inconscientemente e por um "acaso" ou não, quis lá o tão especial retrato.

 

segunda-feira, 26 de maio de 2025

D. Velhota - 122


Um lindo dia de Primavera, que se fazia necessário aproveitar da melhor forma possível. À mesa da esplanada, sentada a saborear as vistas e a companhia das duas vizinhas e amigas, logo a seguir ao almoço, limitava-me ao convívio, já que não bebo café como elas, nem outras coisas. Mas é bom estar em grupo, jogando conversa fora. Faz parte da vida.

Ali e naquele momento, o meu eu mais profundo ou o meu eu interior, disparou em direcção à senhora que acabava de sair, invadindo o meu espírito, com uma série interminável de perguntas, que eu não sabia porquê nem para quê, apenas porque uma curiosidade mais forte, sentia essa inconsciente necessidade.

Olhei a senhora saindo, ao mesmo tempo que as perguntas todas e mais algumas dispararam. Por exemplo, quem será esta pobre criatura, com tanta idade, como é ou terá sido a sua vida, como viverá ela, sozinha ou acompanhada, etc… etc… etc…

Perguntei a mim própria se tinha alguma necessidade daquilo e a resposta foi redondamente não. Mas é uma curiosidade que está para além das minhas fronteiras e ultrapassa o meu entendimento. Quantas vezes passo por um sítio qualquer, olho para um prédio, uma casa e começo a inquirir o meu eu sobre como será o interior daquele pequeno mundo? Sobre como serão as pessoas que lá vivem, felizes ou infelizes, novos ou velhos, sempre sem que eu conscientemente precise daquelas respostas. Mas o inconsciente acaba por se sobrepor. E não é por uma questão de bisbilhotice. É outra coisa muito diferente. É como que uma intuição que começa a trabalhar desordenadamente, acabando por ter que me controlar, porque são pensamentos de que, sinceramente, não preciso.

Naquele momento, aproveitando gostosamente a companhia e o sol que nos aquecia os pés, ao ver a senhora sair, o meu inconsciente projectou-se na figura que acabava de ver, indo ao encontro do meu olhar, para, num instante sem tamanho possível, desenrolar todo um incontrolável questionário que não tinha o menor interesse, mas que foi maior do que eu, até ao momento em que disse a mim mesma para parar com aquela “febre”.

A senhora deu meias dúzia de passadas e estranhamente, estranhamente… ao passar pela nossa mesa, olhou-nos sorrindo, parou e começou a falar. Então, pensei que talvez ela morasse por ali, embora nunca antes a tivesse visto, e talvez fosse conhecida de alguma delas. Porque não? Continuou sorrindo, um sorriso estranho porque estava completamente desdentada, sem um único dente, a boca encovada com o queixe saliente e aí começou uma conversa que nunca mais acabava.

Demos a atenção possível à senhora velhota, que desfilava toda a sua vida com pormenores minuciosos, falando descontroladamente, sem lhe termos feito uma única pergunta. Nenhuma de nós abriu a boca para se dirigir a ela com o que quer que fosse, apenas a preocupação de não a interrompermos e deixarmos falar, pois parecia uma necessidade premente.

Ali permaneceu durante vinte minutos em que não parou de falar. O mais interessante é que eu pensei que elas a conheciam e cada uma delas pensou o mesmo, que as outras a conheciam. Portanto, nenhuma de nós a conhecia, pelo que ficámos as três um pouco baralhadas, olhando umas para as outras sem resposta plausível.

Ao fim de todo aquele tempo em que ficámos impedidas da conversar entre nós, pela atenção dispensada à senhora, percebemos pelos olhares, que estávamos cansadas de a ouvir, pelo que a Rute se levantou, interrompendo por alguns segundos o discurso da senhora velhota, para dizer que estava na hora de ir trabalhar, sendo que nós aproveitámos muito bem a deixa e também nos justificámos dizendo que também tínhamos que ir às nossas vidas.

A senhora velhota terminou a conversa e para grande alívio das três, retomou o seu caminho. A minha cabeça estava cheia e assoberbada de tanta história que não interessava. Todas fomos inesperadamente bombardeadas sem grande justificação e posso dizer que estávamos exaustas de a ouvir.

Perguntávamos umas às outras, mas quem é a senhora e surpreendentemente ninguém tinha resposta, o que nos deixou sem palavras. Mas eu sabia que a origem daquele mistério estava na minha cabeça. Quando ela saiu do restaurante, as perguntas assolaram a minha mente e dona velhota não fez se não responder, ainda que inconscientemente, ao meu estranho interrogatório, proveniente da comunicação das mentes.

O nosso poder telepático é muito mais forte e conecta-se muito mais do que se pode imaginar. Nem consigo entender como é que há pessoas que sistematicamente negam tudo isto. A realidade é muito mais concreta do que abstrata. O problema é que vivemos meio adormecidos e embrenhados em coisas que nos desviam da vida na sua plenitude.

 


domingo, 25 de maio de 2025

Um pedido de socorro - 121


Há anos atrás, numa outra vida, ainda que bem próxima, quando aos fins de semana o Álvaro e eu íamos para a casa de campo em Alcobaça, aconteceu uma coisa incrível. Para quem é muito relacionado com a natureza e especialmente com os animais do campo, pode até nem ser, mas para mim que, forçosamente sou citadina, onde a maior parte do tempo fui criada, cresci e vivi, este episódio é algo revelador. 

As fábulas contam as histórias “no tempo em que os animais falavam”. Neste episódio fiquei a saber que os animais falam de verdade e da forma mais inteligente possível. E não foi só no passado. É assim.

Chegámos a Covões, Alcobaça, ao final da tarde de uma sexta-feira. Correu tudo normalmente como era costume. Acomodámo-nos, jantámos, vimos um pouco de televisão e depois fomos dormir. O som do campo… ah, que delícia!... Eu chegava lá e esvaziava a minha cabeça. Era um sossego absoluto. Às vezes, ouviam-se as gargalhadas ou as vozes das crianças de uma moradia próxima, que alegremente quebravam o silêncio, mas tirando isso, nada mais se ouvia. A estrada passava longe e não havia ruídos de espécie alguma. A moradia do lado era de um casal de emigrantes que raramente lá iam, pelo que os patos da quinta mais próxima se encarregavam de se banhar e conspurcar por completo a piscina. E tirando a passarada, que era muito bem-vinda, ouviam-se uns cães de uma outra quinta próxima. Nada mais. Era um sossego abençoado por Deus e que tanto bem nos fazia. 

Ali, perdíamo-nos no silêncio e no silêncio encontrávamos tudo o que precisávamos para um verdadeiro descanso. Mas naquela sexta-feira, já estávamos na cama, quando me apercebi de que havia uma ovelha a dar sinal de vida porque, de vez em quando, fazia méheheheeee… e, então, percebi que já a tinha ouvido antes de me deitar. Não havia nada de mais nisso. Estávamos no campo. Mas eu nunca tinha ouvido anteriormente. Talvez fosse algum animal recém-chegado àquelas paragens. 

No outro dia de manhã quando acordei, o Álvaro já andava na vida dele, como era costume. Tratava do jardim, limpava a piscina e até o pequeno almoço preparava, para tomarmos juntos, quando eu acordasse. E lá estava de novo a ovelha… méheheheeeee… que coisa estranha! De repente, achei que a tinha ouvido até durante a noite, no meu sono profundo, se é que era possível. Talvez fosse apenas impressão minha, já que a tinha ouvido mesmo antes de adormecer. Continuava a ser normal uma ovelha a fazer méheheheeee, mas… mas a minha intuição já estava alerta, achando que aquilo podia querer dizer alguma coisa mais. Na verdade, não devia ser nada. Estava tudo bem. 

O sábado passou-se, conosco nas nossas lidas de fim-de-semana, com algumas saídas e descanso à mistura. Como era bom o “dolce far niento” do campo… oh vida boa! Só que, no meio de tudo isto, não deixávamos de ouvir a ovelha. Com efeito, era muito insistente. Ela sobrepunha-se ao nosso silêncio e interrompia todos os nossos momentos, independentemente do que estivéssemos a fazer ou a pensar. 

Chegou novamente a noite, sendo que, na verdade, aquilo já me estava a incomodar, porque eu tinha a sensação de que ela estava a chamar. Quem? Porquê? E não havia ninguém por perto, os donos, por exemplo? Que estranho!? A minha cabeça começava a ser invadida por uma série de perguntas sem fim. Comecei a falar no assunto e o Álvaro pôs-se à escuta para de seguida dar uma espreitadela, enquanto acabava de dar as últimas fumaças no cigarro da noite, dando uma volta no exterior da casa, para ver se captava alguma coisa mais. 

No domingo, a nossa rotina repete-se. Mas a nossa ovelha também. Volta e meia, lá vinha o méheheheeeeee. Até comentei que ela não se cansava e, provavelmente, já antes da nossa chegada, estaria a fazer méheheheeee. Agora, o Álvaro também já começava a achar aquilo estranho. Mas não era nada conosco!? O problema é que, para mim, aquilo não era um simples méheheheeeee, era muito mais do que isso. O que a minha intuição dizia é que era um verdadeiro pedido de socorro. Mas também poderia ser exagero meu!? 

Ao fim da tarde, começámos a preparar-nos para bater em retirada. Fechou-se a casa e entrámos no carro. Abriu-se o portão e entrámos no caminho de terra batida, que dava acesso à estrada de Covões, para apanhar a estrada principal. E já quase a chegar à estrada, a ovelha chama novamente:  méheheheeeeee. Olhámos na direcção do méh e parámos o carro. Havia aí uma quintinha, onde nunca estava ninguém, porque os donos só lá iam muito de vez em quando. Saímos do carro e acercámo-nos do muro que era relativamente baixo. 

Um espectáculo impressionante. As ovelhas estavam todas juntas. Uma delas permanecia de pé, com a cabeça enfiada da rede da vedação, sem conseguir tirá-la de lá. Enfiou-a, mas não saía. Há quanto tempo estaria naquela situação aflitiva? Nós tínhamos chegado na sexta-feira e ela já estava a chamar, portanto não fazíamos ideia de há quanto tempo estaria ali presa. Mas o mais interessante é que, como estava de pé havia muito tempo e porque já devia estar bastante cansada, além de que não comia nem bebia, porque a cabeça estava do lado de fora da rede, uma outra estava agachada no chão, no dorso da qual ela se apoiava, tentando assim resistir ao cansaço. As restantes estavam em volta. 

O Álvaro trepou o muro, saltou para dentro e tirou a cabeça da ovelha, fazendo tudo voltar à normalidade. Entrámos no carro e prosseguimos a nossa viagem até Lisboa, com uma enorme sensação de alívio. Mas aquela cena para mim foi indescritível. Quem ensinou à ovelha a sentar-se no chão, a fim de que a outra se pudesse apoiar? Quem ensinou aos animais uma palavra que às vezes os homens esquecem e se chama “solidariedade”? 

Bom, a palavra, eu não sei se eles conhecem, mas o sentimento sim. Estava lá, expresso na atitude de todos sem excepção. Aliás, não podia estar mais expresso do que estava. Eu estava absolutamente fascinada e ma-ra-vi-lha-da. 

Então os animais falam ou não? E precisam? Há uma comunicação inteligente que nos escapa e, na verdade, não necessitam nem de falar. Tudo o que sei, que já aprendi ao longo da minha vida sobre telepatia, aplica-se também aos animais, sem dúvida alguma. Eu tinha razão em achar que o méhehehe dela estava codificado, querendo dizer alguma coisa mais. Pelo contrário, era bem anormal. O que se ouvia era méheheheh, mas ela, coitada, gritava “socorro”, tirem-me daqui! 

O tempo em que os animais falavam é hoje e sempre. Eles, entre si, não precisam da linguagem falada. Nós humanos é que precisamos, para nos entendermos e ainda assim, quantas vezes falhamos. Ao longo dos tempos, no nosso processo de evolução, fomos perdendo as faculdades maiores e inventando outras coisas em modo de substituição. Os animais mantêm-se fiéis à sua linha evolutiva. Não é que falar seja deitar a baixo o homem, que isso não teria o menor sentido. Mas, na verdade, ganhamos umas coisas para perdermos outras que são básicas. Quantas vezes uma pessoa fala e nós percebemos que o que está a dizer é pura mentira?! Isso é telepatia, porque o que é válido é o que as mentes estão a conectar ou a passar. Palavras, levas o vento, ao passo que o que está na mente não pode ser mascarado. 

Os animais têm a sua inteligência que os leva sempre à sobrevivência. Já o homem, nem sempre usa a inteligência para a sobrevivência, mas sim à destruição. Talvez um dia se canse de si mesmo e tenha de encontrar uma maneira diferente, uma maneira muito especial, de pedir socorro!?...