domingo, 7 de dezembro de 2025

O último encontro . 128

 

Udo! Günther!... Günther, Udu!... Gritávamos nós que nem umas loucas, num dia maravilhoso do verão quase a terminar.

Naquele domingo, a paróquia da igreja tinha organizado um passeio com paragem no Cabo da Roca e só por isso estávamos ali. Podíamos ter ido a outro sítio qualquer, pois a nós tanto fazia. O importante era sairmos de casa, desopilar, sendo que a única possibilidade era aproveitarmos aquelas coisas promovidas pela igreja. Até porque as únicas saídas que nos eram permitidas era ir à igreja e pouco ou nada mais. Quantas vezes saía para dar uma volta pela baixa de Setúbal, onde vivíamos, e me via obrigada a entrar na igreja, para não ter que mentir, coisa para a qual não fui feita.

Foi por isso que aproveitámos aquele passeio. A minha irmã em breve voltaria para o colégio, onde era interna e eu para o meu trabalho, no Ministério, em Lisboa. Aquele passeio tinha vindo numa boa hora. Precisávamos de respirar um ambiente diferente e ali vinha mesmo a calhar. Olhei o mar na linha do horizonte e nesse olhar meio perdido no infinito, o espírito mergulhado nas águas, as saudades tomaram conta de mim. Aquele céu azul e toda a paisagem à volta, mexeram comigo de verdade.

O grupo começou a dispersar um pouco e acabámos por ficar só nós duas, apreciando a paisagem e tudo à volta. Era a nossa possível liberdade. Mas havia uma angustiazinha dentro de nós, que não queria calar e muito menos esquecer as férias que tínhamos tido. Ali, naquele lugar, tudo ficava mais forte, mais ao de cima e, de repente, num impulso inexplicável, comecei aos gritos, a que logo a minha se irmã se juntou: “Udo! … Günther …!” E repetíamos até ficarmos exaustas com a gritaria que estávamos fazendo. Parecíamos loucas.

As nossas férias tinham sido uma coisa muito fora do normal. Passámos três semanas em casa dos meus tios, que viviam em Beja, e foram umas férias inesquecíveis, coisa que jamais poderíamos imaginar. Estávamos habituadas a estar com a avó e os outros tios, que nos proibiam tudo e mais alguma coisa. Naquele ano a família despachou-nos para Beja. E fomos, porque tínhamos que obedecer, só por isso. No entanto, depois de lá estarmos, o difícil foi ter que voltar à base, isto é, voltar para casa da família.

Em Beja não havia como ir à praia, aquilo a que estávamos habituadas a fazer todo o Verão. Então, os meus tios, disseram-nos para irmos à piscina. Como não havia alternativa, o que equivalia a ficar em casa, lá fomos nós à piscina. Era uma bela piscina, por sinal. Só isso, para nós, já era muito bom. A minha irmã tinha dezasseis anos e eu dezanove. A experiência que tínhamos da vida era zero. Qualquer coisa que fosse diferente do habitual já era muito bom para nós. E foi aí que tudo aconteceu.

As piscinas estavam praticamente tomadas pelos alemães, que nessa altura ocupavam a base aérea alemã, sendo que, nos tempos livres, iam para as piscinas e por lá ficavam o tempo todo, até à hora dos treinos, porque também não havia mais para onde ir - essa é a verdade. Duas garotas portuguesas na piscina, logo fomos alvo das atenções deles, ávidos de companhia feminina, apesar de que alguns deles, os mais velhos, tinham consigo as respectivas mulheres. Eles eram muito simpáticos e gentis connosco. Na sua maioria falavam inglês, pelo que a nossa comunicação só assim foi possível.

Falávamos com todos. Ríamos, brincávamos, trocávamos ideias, impressões, enfim… as conversas fluíam muito naturalmente e eles ofereciam-nos tudo e mais alguma coisa, apesar de apenas bebermos água e sumos. E foi assim que um deles logo se encantou com a minha irmã, o Günther, que era um típico alemão, por ser louro e de olhos azuis. Já eu, que sempre gostei de morenos, fui atraída para um diferente de todos os outros. Udo era alto, magro, bem constituído e moreno de olhos escuros. Esse era sem dúvida o meu preferido.

Apercebendo-se de que havia da nossa parte uma certa reciprocidade no jeito de tratar e de lidar com eles, porque era visível que havia uma conexão mais forte com estes dois do que com todos os outros, começaram a convidar-nos para sair à noite. Günther era piloto e Udo, técnico. Os dois trabalhavam sempre em equipa. E começámos a sair com eles à noite. Não havia nada de interessante em Beja, por isso passeávamos pela cidade. Nesses passeios começou o namoro de Günther com a minha irmã e o Udo comigo. Como já disse, nós não tínhamos experiência de vida. Tudo nos era proibido. Contudo, ali, os meus tios davam-nos carta branca e diziam que éramos jovens e tínhamos que aproveitar a vida. Quando eles nos iam deixar em casa, nas noites bem quentes do verão em Beja, em que os meus tios ficavam longas horas na varanda, por não conseguirem dormir com o calor, quando nos viam chegar, normalmente por volta das onze e tal, meia noite, lá de cima, diziam-nos sempre que ainda era cedo para irmos para casa e que devíamos aproveitar para passear mais.

Isto para nós era muito estranho. Não estávamos nem um pouco habituadas a este tipo de comportamento por parte da família. Tudo o que fazíamos era mal feito e passavam a vida a ralhar connosco por tudo e por nada. Ali, além de não termos nada disso, ainda nos estimulavam a fazer mais, dando-nos toda a liberdade possível. Era uma sensação e tanto e só por isso estávamos muito agradecidas.

Então, se os dias eram bem passados, as noites, essas eram magníficas. Fazíamos o que nunca jamais tínhamos feito, nem pensado que podíamos fazer. Eles levavam-nos à base alemã, a um bar enorme repleto de alemães, homens e mulheres, onde se convivia tomando umas bebidas ao som da música. Até hoje me lembro de um licor de ovo que um deles me deu a provar, porque eu não bebia álcool e que era divinal. Estar com eles era realmente maravilhoso. Uma sensação incrível de liberdade. Mas liberdade em segurança. Todos se queriam juntar a nós para conhecer as duas portuguesas que estavam com Günther e Udo.

Quando passeávamos à noite pela cidade, Gunther e a minha irmã eram um pouco chamativos para o meu gosto. Os dois tinham muito fogo e não tinham vergonha. Já eu era bem mais reservada e limitava-me a andar de mão dada com Udo. Por isso, chegava sempre uma altura em que ele não aguentava mais e pegava em mim ao colo, rodopiando, enquanto eu dizia “oh, no, no, no…” mas ele não se importava e como era alto e tinha bom físico, elevava-me para o alto, dizendo “Lilly, night is beutiful, stars are beautiful, but you are more beautuful”… deixando-me completamente sem palavras, sem fôlego, envergonhada, tímida, mas feliz, feliz até mais não. Caramba, nunca ninguém me tinha dito nem feito nada daquilo. E nunca pensei que alguém alguma vez o fizesse, porque eu achava que era feia, que ninguém ia gostar de mim e aquele homem lindo de morrer, abrir-se e agir assim comigo, era uma coisa muito louca. Era uma versão da minha pessoa que eu desconhecia completamente.

Uns dias antes de regressarmos, porque as férias estavam a acabar e eu tinha que voltar ao trabalho, estávamos a ficar meio tristes, porque aqueles belos dias estavam a chegar ao fim. Sem mais nem menos, Udo perguntou-me se eu queria casar com ele e ir para Alemanha. Caramba! Não estava nada à espera daquilo. Apanhou-me completamente de surpresa. Mas logo lhe respondi que isso não podia ser. Ele ainda insistiu dizendo para pensar nisso. Só que eu sabia que ir para a Alemanha era um grande risco. Se as coisas não dessem certo e eu tivesse filhos, como ia ser? Se quisesse voltar para Portugal, como ficaria a minha situação sem o ou os meus filhos? Além de que teria que arranjar emprego, porque viver à custa dos outros não era possível. Enfim, era muito, muito complicado. Sonhar, sim, mas fazer loucuras não. E o tempo acabou e tivemos que regressar à base. O curioso é que eles também já não iriam ter muito mais tempo na base aérea em Portugal. O tempo deles também estava a terminar, o que me fazia pensar que o nosso caminho, o nosso encontro, estava escrito nas estrelas.

A vida voltaria à rotina e restavam-nos apenas as saudades dos alemães, que tinham tornado as nossas férias numa verdadeira festa, pela forma como nos trataram. Agora, ali, perante o mar e o céu azul, gritávamos os nomes deles feitas parvas, dando voz às nossas frustrações, com o pensamento centrado neles, num grito saído das profundezas das nossas almas, demostrando o quanto eles tinham sido importantes para nós e com plena consciência da profunda saudade que já marcava o álbum das nossas recordações, era certo que não nos tornaríamos a ver e era por isso que não nos conformávamos. Era difícil ter que aceitar isso. Mas era o que era. A vida!

Longe do resto do grupo, afastadas de toda a gente, começámos a caminhar em direcção ao mar, onde havia um monte gente. Perto do mar, afogaríamos as nossas mágoas, sem esquecer que era apenas o resultado de algo muito bom que tínhamos vivido. A vida é estranha!? E os caminhos por onde passamos e nos cruzamos, ainda mais estranhos. O universo dá voltas e mais voltas. E nesses estranhos caminhos, que só mesmo o universo conhece e tem a palavra, caminhando para perto da água, há dois homens que, lá em baixo, levantam os braços na nossa direcção, começando a dirigir-se para onde estamos. Na mais pura ingenuidade, imaginámos que seriam eles, conscientes de que tal coisa seria o mais improvável possível. Na nossa cabeça, sabíamos que era completamente irracional. E eles gritavam qualquer coisa que não conseguíamos entender. Então parámos, porque a coisa estava a ficar estranha e não queríamos complicações. Mas o universo já tinha feito o seu trabalho e também ele tinha dado os seus passos.

E assim, no lugar mais improvável do mundo, perante a nossa - e deles - máxima consternação, sem palavras que pudessem descrever o nosso espanto e a quanta “coincidência” o ser humano está sujeito, Udo e Günther, em pessoa, eles mesmos, num perfeito e último encontro.

 

sábado, 1 de novembro de 2025

Um dia diferente - 127

 

Vinte e oito de Abril de dois mil e vinte cinco, um dia diferente, um dia memorável. Um dia de sol, com uma temperatura excelente. Os cafés abertos e cheios de gente animada, por sinal. Quem havia de dizer que este dia chegaria!? Um enorme desafio, sem dúvida. Alguns estavam calmos, outros nem tanto. Talvez meio desorientados, sem saber o que fazer. Por isso, o convívio nos cafés, porque não?!

Eu tinha ido para a universidade sénior, onde as coisas decorreram normalmente. No regresso, pouco depois das onze, pelo caminho, aproveitei para ligar a uma vizinha e amiga, colega da universidade, que nesse dia não tinha ido. Liguei, mas ao segundo ou terceiro toque, a chamada desapareceu, simplesmente. Voltei a ligar e aconteceu exatamente o mesmo. Não achei estranho. Pensei que talvez ela estivesse num sítio sem rede. No elevador, por exemplo. Precisava de ir à Farmácia, mas primeiro tinha que ir a casa buscar a receita.

Ao chegar a casa, estacionei o carro e dirigi-me ao meu prédio. Logo aí, cruzei-me com um jovem casal, meus vizinhos que, sem mais nem menos, me informaram que não havia luz. Não havia luz? Ok, ela voltaria, pensei. Mas eles prosseguiram, dizendo “não há luz em toda a Póvoa”. Ok, continuei a pensar, ela virá quando tiver que vir. Qualquer coisa que aconteceu e pronto. Mas os meus vizinhos continuavam “não se sabe quando virá”. E percebi que a falta de luz estava a incomodá-los, o que não combinava nada com eles, que são bem descontraídos, um pouco demais para o meu gosto.

Fui a casa pegar a receita e tive que subir e descer as escadas, pela falta de elevadores, pensando na falta que faz a luz. Já na Farmácia, alguém falou que estavam sem luz. Aí já comecei a entrar na realidade e a perceber que alguma coisa de maior se passava. Contudo, não me detive demasiado com esse assunto. Saí e do lado de fora da Farmácia, estava uma mulher sentada no lancil, que tinha ouvido a conversa no interior da Farmácia e à minha passagem resolveu continuar o assunto que vinha lá de dentro, sobre a falta de luz, começando a falar para mim, para eu ouvir e ficar esclarecida, porque lhe deve ter parecido que eu não estava nem um pouco a perceber o que se estava a passar, no que não estava enganada.

Dizia “não há eletricidade na Póvoa, nem em Lisboa, nem em todo o país. Mas Espanha e França também não têm. E parece que há mais…”

Eu, que não estava nem aí para uma coisas dessas proporções, apesar do que os outros tinham falado e que não levei muito em conta, parei para olhar bem para ela, pensando no que ela acabava de me transmitir. Agora percebia o estado dela, o ar indiferente e a posição meio alheada de tudo. Não há luz, não posso fazer nada. Desinteressada, por assim dizer. Parecia que se tinha posto de parte em relação a tudo, à vida, ao seu mundo. O seu mundo estava como que submerso na escuridão, digamos. Falava comigo como se estivesse a lamentar-se para si mesma e passava a mensagem para mim, para que eu ficasse contagiada do mesmo jeito que ela.

Eu ouvia o que ela dizia, estudando a sua postura de “abandonada” pela sorte, pensando, vou para casa e não há luz… é… é chato, muito chato. Mas o que se há de fazer? Estamos todos na mesmíssima situação! Na minha cabeça imaginava a extensão do problema, uma vez que ela tinha mencionado já três países. Mas seria aquilo verdade?

E a mulher continuava “e não se sabe quando virá… parece que foi pirataria. Provavelmente um ataque terrorista… agora vamos ficar assim uma semana no mínimo…, mas pode levar mais tempo…” … …

Naquele momento, depois de ouvir tudo o que ela despejou, os meus sensores deram imediatamente sinal. Tudo bem, que podia ter sido um apagão com a dimensão que ela estava a dar. Mas, independentemente da origem que teve, não íamos ficar sem luz todo esse tempo. Era inadmissível uma coisa dessas. Tanta coisa dependente disso!? Mas… e se ela estivesse certa?!...

Queria sair dali para me informar, para saber o que se estava a passar de facto, mas, nem ela terminava a conversa, nem eu conseguia conciliar o pensamento porque, ir para casa, claro, tinha que ir mesmo, mas sem luz, não havia televisão e, portanto, não havia como saber notícias fidedignas. Que fazer?

A mulher, que continuava aparentemente a falar comigo, mas que, na verdade, falava com ela própria - porque aquilo era um lamento, um queixume, a maneira como ela estava a interiorizar o acontecimento - focava-se sobretudo no tempo que o apagão, como ela dizia, iria demorar. Uma semana no mínimo. Comecei a pensar nas proporções de um alarme daquela natureza e, de repente, parecia que a vida se tinha virado de cabeça para baixo. Sim, ela estava a conseguir passar para mim toda a angústia em que estava mergulhada.

Uma semana era muito tempo … tempo demais, o que não podia ser. Um dia já era muito! Parecia que não íamos poder sobreviver. E quando estava a ficar no auge das minhas emoções, antevejo uma onda de retrocesso, que começa a chegar até mim, contrariando toda aquela ansiedade motivada pela notícia desastrosa. Enquanto a mulher continuava a insistir no tempo, “uma semana, ou até duas semanas, não se sabe quanto irá durar” … eis que aquela onda de informação começa a descodificar-se, para me trazer a notícia, a boa notícia de que, no máximo, naquele mesmo dia à noite, a luz chegaria a nossas casas. Caso contrário, na manhã do dia seguinte, tudo estaria resolvido, o que quer que tenha acontecido. E tudo voltaria à normalidade.

Fiquei então bem mais tranquila e apetecia-me dizer-lhe, “não, olhe que não, posso dizer-lhe que hoje mesmo as coisas se resolvem e o mais tardar amanhã de manhã tudo estará normalizado”, mas não fui capaz. Não fui mesmo. Aquilo era uma informação minha, muito minha, que a minha intuição tinha conseguido acessar. A minha conexão com o cosmos é uma coisa muito minha e os outros não têm que aceitar e nem compreender. Se eu lhe tivesse dito alguma coisa, talvez ela pensasse que eu era doida. Por isso abstive-me e muito educadamente me recolhi, afastando-me dela calma e tranquilamente, para ir para o carro.

Cheguei a casa meio perdida com tudo o que estava a acontecer. Comecei a pensar nas consequências, coisas grandes e coisas pequenas, como: ficar fechado num elevador(!?) Enfim… a situação era delicada. Contudo, a minha cabeça continuava a dizer para não me preocupar, porque a luz chegaria às nossas casas naquele mesmo dia à noite. Estaria eu a sonhar? Não estava. Eu sabia e tinha plena consciência da veracidade da minha mensagem, vinda diretamente do cosmos. Todos estamos ligados, essa é a questão que muitos ainda esquecem, ignoram ou descartam. Para mim, isso faz todo o sentido, por isso me situo nessa dimensão. Não é nada demais. Isso, do meu ponto de vista. E se estamos todos ligados, o ponto de encontro será o universo.



sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Mistérios - 126

 

A vida tem tanta coisa para a qual não temos resposta! Nestes casos, o mais sensato é ter uma atitude positiva e encarar os factos tal como são, sem demandas, sem questões, para que tudo se torne o mais normal possível. Foi o que fiz a partir de um certo ponto da minha vida, que já vai longa e, assim, as estranhezas deixaram de ser estranhas para passarem a ser simplesmente o que são.

Passei a vida toda praticamente sozinha, posto que o meu primeiro casamento durou apenas doze anos. E aos trinta e seis anos, eu estava novamente sozinha, como estava antes de me casar. Só que agora tinha um filho.

Por isso, posso dizer com toda a verdade, que fiz a vida sozinha. Aos sessenta anos encontrei uma pessoa excepcional, com quem vivi apenas sete meses, pura e simplesmente porque, repentinamente, ele se foi, para não mais voltar. Se existe algo que não têm volta é a morte.

Passaram-se doze anos desde esse acontecimento trágico que, na altura me deixou de rastos, e eu já estava com a vida organizada, sozinha, mas com um projecto pela frente, para ter uma rotina normal, por assim dizer, com a minha cabeça equilibrada e emocionalmente estável, enraizada na realidade do dia a dia, em que ninguém sabe o que vem a seguir e o mais correto é focar-se no presente, aqui e agora, e quando eu pensava em mim, na minha vida, eu tinha a certeza absoluta de que daí para a frente seria sempre sozinha. Não me imaginava nem queria mais ninguém comigo. Não, não era aceitável, não fazia sentido, não havia porque pensar numa coisa dessas, era isso que eu sentia. Era assim que eu queria estar e ficar.

Tinha amigas da minha idade que ainda sonhavam em encontrar o tal do príncipe encantado, mas eu, como nunca tive essa fantasia, nem a queria para mim, não era agora que ia pensar numa coisa dessa natureza. Sempre fui muito terra-a-terra, nunca vi o casamento ou uma relação a dois, nessa perspectiva, por isso não era aos setenta anos que isso ia acontecer, de certeza absoluta. Isso era mais do que certo. Só que, a dada altura começaram a acontecer umas coisas bem estranhas.

Uma noite, depois de ter estado a arrumar umas roupas no meu quarto, sentei-me na cama a arranjar as almofadas para me deitar. E na altura em que me vou deitar na cama apercebo-me de que há uma energia masculina de pé, do lado direito, junto à mesa de cabeceira e bem em frente à janela. Era a figura de um homem alto, magro, despido, que desapareceu imediatamente, após confirmação da minha visualização. Achei estranho, mas eu vi e sei o que vi. Não inventei, não imaginei, não sonhei… enfim. As tais coisas estranhas que não têm explicação. Mistério!

O mais estranho nisto é que eu sabia que não era a visão de uma alma, ou seja, de alguém que já não estivesse entre nós. Era a energia muito precisa, por sinal, de alguém que, definitivamente, eu não conhecia, não fazia a menor ideia de quem era, mas que estava vivo, bem vivo. Estava ali, despido, indo-se deitar comigo, com todo o à vontade. Estranho!? A que propósito? Não tinha mesmo resposta para uma coisa daquelas. Por isso, decidi descartar e deitar-me para dormir, sem pensar mais no assunto.

De facto, não pensei mais naquilo. Eu não pensei mais naquilo, mas “aquilo” pensou em mim. Uns dois ou três dias depois, de manhã, depois de ter vindo da casa de banho, com o banho tomado e o corpo enxuto, vou para o quarto para me vestir e novamente aquela visão me surpreende. Lembrei-me imediatamente de a ter visto no outro dia à noite, mas agora era manhã e ali estava novamente a mesma figura enigmática, exactamente igual, despido, e agora passava aos pés da cama. Fiquei parada, a olhar e a pensar comigo mesma, mas quem é esta criatura, este homem que passeia pela minha casa, mais precisamente pelo meu quarto, sem roupa, o que me dizia que era alguém com quem eu teria intimidade, alguém que estava na minha vida, instalado no meu caminho e partilhando a vida comigo!? Era deveras curioso, estranho… todas as perguntas apareciam sem que houvesse a mais pequena possibilidade de lhes dar respostas. Mas, mais uma vez eu decidi descartar, porque não sabia o que fazer com aquela informação vinda do além, do campo holístico, que não pára de me surpreender.

Era a segunda vez que eu via aquela imagem. Era a segunda vez que aquela mensagem me era dirigida. E o que é que eu poderia fazer em relação àquilo? Nada. Estava bem definido na minha cabeça e não só, que eu não seria capaz de voltar a ter um relacionamento. Além disso, aquela visão, mostrava-me que era um relacionamento com bases muito sólidas, e não uma coisa passageira. Mas como? Donde viria aquela criatura e como iria parar à minha vida? Era mesmo estranho! A meu ver, não tinha a mais pequena possibilidade de isso acontecer. Até porque, para que tal acontecesse, era preciso que eu quisesse e eu não queria, de jeito nenhum. Enfim, não ia matar a minha cabeça com um mistério daqueles. Talvez fossem mesmo maluquices minhas e eu não estivesse a ver a coisa como devia.

Passaram-se mais uns dias. Não pensei no assunto. Fiz questão de pôr de parte e seguir o meu caminho. Talvez uma semana mais tarde, novamente à noite, na hora de me deitar, fui atraída pela figura que passava da casa de banho para o quarto, indo na minha frente. E foi então que tive a certeza absoluta de que, num espaço de tempo relativamente curto, a minha vida mudaria por completo. Num futuro muito próximo, eu iria conhecer o meu companheiro, o meu futuro marido. E senti-me obrigada a aceitar aquela notícia, porque ela fazia parte do meu destino, do percurso da minha vida. Não havia escolha. Eu estava simplesmente a ser notificada da reviravolta que a minha vida levaria.

Sentei-me na cama olhando para o lugar onde o tinha acabado de ver, a tentar assimilar e digerir aquilo. Como era possível? Eu sabia que não ia aparecer mais, porque estava tudo dito e não havia mais nada a revelar. Antes, eu compreendia o que tinha visto, mas parecia que não queria aceitar. Agora, porém, eu tinha acabado de perceber que era algo que estava acima do meu querer. Era algo que estava registado no Akasha e não tinha como ser eliminado ou ignorado. O universo fizera chegar até mim uma espécie de ordem comandada pelo cosmos. E ponto final.

A partir daí, sim, eu pensava naquilo, como aconteceria, que voltas eu daria para ir naquele sentido. Ou que voltas a vida daria para pôr aquela pessoa no meu caminho. Todavia, não valia a pena ficar mergulhada naquele assunto, porque não era nada que estivesse ao meu alcance. Era coisa do destino. Eu saberia quando chegasse o momento. A própria vida se encarregaria de fazer acontecer as coisas.

Os dias passaram, as semanas foram correndo, uma após outra e um mês e outro e um dia… sem mais nem menos… as coisas aconteceram e no dia vinte e cinco de Outubro de dois mil e vinte e quatro eu estava de aliança no dedo. Nunca pensei, sinceramente. O homem que mudou radicalmente a minha maneira de pensar em relação à vida. De repente, aquela “visão” de uma energia que aparecia no meu quarto, deixou de ser apenas uma energia, para ser um ser completo, de corpo e alma. Aos setenta e dois anos, perfeitamente consciente do que tinha feito, do passo que tinha dado, eu estava novamente casada, pela segunda vez. Mistérios!...



terça-feira, 7 de outubro de 2025

O pacto - 125

 

Meu filho amado acabava de chegar a este mundo. O médico arrancou-o de mim para o entregar a uma enfermeira que, após os devidos cuidados, o colocou no berço. Enquanto isso, eu penava por conta da placenta, que não queria sair de jeito nenhum. E o médio dizia: “não havia como perder esta criança”. É que a placenta se desfazia nas mãos dele e foi preciso muita perícia para não deixar nada, caso contrário, eu poderia ter uma infecção. Mas a experiência dele conseguiu levar tudo a bom termo. Por isso, só agora eu olhava o meu bebé, pela primeira vez, com olhos de ver.

Pensava em tudo o que tinha feito para chegar àquele momento, que não tinha sido pouco. Tudo fora planeado com todo o rigor. Desde muito nova que queria ser mãe. E esse desejo foi crescendo comigo, com uma força muito grande. Tudo fora planeado ao mais pequeno detalhe. Não posso por isso dizer que “aconteceu”. Não, não foi nada disso. Ser mãe, para mim, era determinante. Posso dizê-lo de outra forma e talvez se compreenda melhor: eu sempre soube que um dia seria mãe. Eu sabia que isso estava no meu caminho. Mas também sabia que só aconteceria na altura certa. Podia até ter mais do que um filho, mas um, pelo menos, eu sabia que ia ter.

Todos os rapazes que conhecia não me diziam nada. No primeiro olhar, ficava logo a saber que não era aquele. Às vezes chegava a duvidar da possibilidade de encontrar essa pessoa, porque também não tinha como descrevê-la. Mas eu olhava e era como se estivesse escrito no rosto, na testa, que não era aquele. Não foi fácil. Até que fui para os Açores, ilha de S. Miguel e pouco tempo depois de lá estar, conheci alguém, meu colega de trabalho, a quem, prestando um pouco de atenção, ao contrário de todos os outros, olhando para ele, percebi que era o tal, o pai do meu filho. Não me enganei.

Eu tinha essa enorme vontade, esse desejo muito forte, de ver como seria um filho meu. Um filho saído das minhas entranhas. Uma continuação de mim mesma, por assim dizer. Mas para isso eu teria que encontrar a tal pessoa, que eu também não sabia como seria. Mas uma coisa era certa, quando ele cruzasse o meu caminho eu identificá-lo-ia de imediato.

Foi então que fiquei a saber que tinha chegado a hora. Incrível! As coisas que a gente sabe, sem saber que sabe. A minha vida nunca mais seria a mesma, mas era o que eu tinha decidido, ou melhor, o que me estava destinado.

Eu sabia exatamente quando tinha sido concebido: o dia a hora, o local… tudo na perfeição. Quando fui ao médico foi só para confirmar, porque assim que a menstruação faltou, senti logo a transformação interior no meu corpo. Tudo em mim me dizia que estava grávida. Depois, foi tudo devidamente acautelado. Para isso deixámos os Açores, voltando para o Continente, a fim de poder ter uma gravidez devidamente assistida e ter o meu filho com toda a segurança possível. E assim foi.

Curiosamente, eu conectava-me com ele, com o seu espírito, e pedia-lhe para que viesse a este mundo, de manhã, quando eu estava cheia de força e energia, mas não muito cedo, para poder dormir o suficiente e ter um parto o mais natural possível. Pedia-lhe que não viesse à noite para não estar cansada e alguma coisa dar errado. O certo é que a nossa conexão foi tão perfeita, que ele nasceu às 09,50. E não foi por um acaso. Foi assim, porque foi o nosso acordo. Tudo foi calculado e programado com vista a ser muito bem sucedido.

E aí estava eu, com aquela criaturinha desconhecida, acabado de nascer, de dois quilos, novecentos e cinquenta, com cinquenta e três centímetros de comprimento, pensando para comigo mesmo: finalmente chegou.

Foi então que tive a noção de que a minha vida nunca mais seria a mesma. Isso era certo. Mas eu tinha conseguido ter o meu amado filho. Amado e desejado, sim. E aí estava ele. Aquela criança passaria a ditar tudo, porque estaria sempre em primeiro lugar. Daí para a frente eu nunca mais seria só eu. Estaríamos sempre, sempre, juntos. A minha liberdade esvaía-se literalmente e totalmente, para ser preenchida por outro ser, o meu pequenino. Isso assustava-me um pouco, porque sempre prezei a minha liberdade, na qual só eu mandava e fazia apenas o que eu queria, sem ninguém a dar-me ordens, o que nunca permiti nem tolerei.

Aí estava ele, a comandar e a preencher a minha vida a cem por cento. Não deixava de ser um pouco estranho, um pouco constrangedor. Nunca mais iria ter um tempo só para mim. Tudo seria por conta dele. A minha cabeça debatia-se em silêncio com essa nova situação, que me dava um certo medo. Estaria eu preparada para isso, depois de tudo o que tinha planeado para chegar àquele momento? A dúvida pairava duma maneira avassaladora, porque percebia que não havia volta a dar, nem como recuar. E se eu não for capaz(!?) era o que martelava na minha cabeça.

Foi então que aconteceu uma coisa inusitada e de tal modo extraordinária, que não há palavras que possam descrever fidedignamente tal coisa. Vou apenas fazer uma tentativa. Aquele ser minúsculo, enfiado nas suas roupinhas de recém-nascido, ali na minha cama, enquanto eu estava sentada a seu lado, não sei como, virou o rostinho na minha direção, como que me olhando nos olhos, ainda meio fechados, deixando passar esta mensagem:

“Mãe, eu preciso de ti. Eu preciso de ti para crescer e para ser um homem. Preciso do teu apoio, da tua ajuda em tudo, para chegar onde quero. Só posso contar contigo. Só te tenho a ti. Tu vais-me ajudar?” Eu preciso de ti!”

Que loucura, pensava eu?  Primeiro achei que estava a sonhar, a inventar ou a fantasiar!?... Mas não, não era nada disso. A cabecinha dele tinha-se virado de frente para mim, ao encontro do meu rosto, o que me tinha deixado completamente sem chão. E logo, logo, aquela mensagem tocou no mais fundo da minha alma, bem dentro do meu coração, fazendo com que eu não tivesse a mais pequena possibilidade de duvidar que era a sua voz interior, do meu amado filho… e sem pensar em mais nada e sem me fazer esperar, ali, na presença dele e do Criador, como testemunha, imediatamente fui ao seu encontro:

“Sim, meu filho… sim, sim, sim. Eu vou fazer tudo o que me for humanamente possível, o possível e o impossível, para que nada te falta e dar-te-ei sempre o meu apoio e o meu amor incondicional, pois estou aqui para ti e só para ti.”

E ele continuava:

“A mãe vai fazer isso, vai estar sempre do meu lado, sempre pronta para mim, para as minhas necessidades? Posso mesmo contar com a mãe?”

E continuei, completamente arrebatada por aquela via espiritual que nos ligava com uma força indescritível:

“Sim. Sim, sem sombra de dúvida. Eu vou conseguir tudo o que precisares e eu estarei sempre contigo. Eu juro, eu prometo, acredita”. Enquanto precisares de mim eu cá estarei para tudo, absolutamente tudo”.

E ele ainda perguntava:

“E se um dia eu me quiser ir embora, à minha vida, eu posso?”

E eu respondia:

“Sem dúvida. Tu vais fazer tudo o que tu quiseres, tudo o que precisares e decidires. És livre para isso. Estarei sempre contigo e sempre respeitarei as tuas decisões. Quando fores grande, podes fazer o que quiseres, mas enquanto precisares de mim eu estarei sempre, sempre, aqui.”

E a sua cabecinha minúscula retornava à posição inicial, como que confirmando que a mensagem estava feita.

Em êxtase profundo e absolutamente assoberbada com uma coisa daquelas, tinha plena noção do que acabara de acontecer. A nossa ligação vinha de uma dimensão muito para além deste nosso mundo, onde tudo é possível e o pacto estava feito. 


quinta-feira, 10 de julho de 2025

A mãe do Carlos - 124


Naquele final de tarde o Carlos tinha chegado com vontade de falar. Ao fim de um bocado percebi que não era só vontade, era um pouco mais do que isso: necessidade de falar. Ele não é muito falador e quando fala, normalmente, é sobre o trabalho e pouco mais. Coisas que não me dizem muito, porque não sei, não conheço, pelo que fico só a ouvir, sem muito para falar.

As pessoas precisam de trocar energia e uma maneira de o fazerem é através do que expressam e comunicam pela linguagem. Há outras maneiras de trocar energia, mas esta é a mais básica, digamos. Todos nós precisamos de falar e ouvir os outros, também. Às vezes fala-se de assuntos mais sérios, outras vezes é só conversa, sem nada de especial. Mas tudo faz falta.

Uns são mais calados do que outros. Há pessoas que falam, falam, estão sempre a falar e às vezes até falam sozinhas. Outras, quase não falam e até têm dificuldade em exprimir-se. Mas o Carlos é das pessoas que realmente não falam muito. Ou guarda tudo para si ou realmente não lhe vem o assunto.

Já eu, preciso de falar e ouvir. O problema é que têm que ser assuntos que me digam alguma coisa, caso contrário não sei fazer conversa e prefiro ficar em silêncio. Mas naquele dia, em vez de ficar agarrado ao telemóvel, vendo as coisas dele, que não sei exactamente o que são, mas é muito conteúdo, porque fica tempo indeterminado agarrado ao telemóvel, sentou-se no sofá em frente ao meu e começou a relatar questões familiares que o marcaram, porque todos temos, com toda a certeza.

Começou a falar, esmiuçando o assunto, o que não é muito seu hábito, coisa que chamou e muito a minha atenção. As questões levantadas por ele prendiam-se com a família, mais exactamente com a mãe, falecida há muitos anos, de quem já tem falado assim muito por alto, sem aprofundar demasiado.

A sua relação com a mãe não foi o que se pode dizer uma relação amorosa. Havia muitos atritos e ele guarda muita mágoa da infância e depois pela vida fora. Ao contrário do pai, do qual fala muito e sempre muito bem, fazendo questão de dar exemplos da vida dele, que o salientam como uma pessoa extraordinária, um verdadeiro exemplo para todos.

E aquela conversa sobre a mãe, poderia ter passado despercebida, independentemente de ter prendido a minha atenção, porque ele precisava dessa atenção e eu jamais negaria tal coisa, tanto mais que percebi perfeitamente que naquele dia estava com uma necessidade especial de falar, mas poderia sim, ter passado despercebida, se nesse mesmo dia não tivesse acontecido algo inusitado, que me deixou com muitas perguntas na cabeça.

Pouco depois de me ter levantado da cama, senti no quarto uma energia que de imediato se materializou de cima a baixo e que muito estranhei. Nunca tinha visto uma materialização assim. Era um corpo de mulher nua, muito bem definido, extremamente bem feita, meio de costas, meio de lado, pelo que a parte da frente não se via. Da cabeça aos pés, viam-se as costas, as nádegas e a anca, tudo do lado esquerdo.

Quem seria, o que queria, o que faria ali? A resposta que não havia, porque caía num vazio completo. Não fazia a menor ideia de quem poderia ser. Até pensei que eram coisas da minha cabeça e que estava com “visões”. Ela estava junto à porta, como quem vai a sair do quarto. Contudo, apesar de parecer sem contexto, ficou registado no meu subconsciente.

Mais tarde, já não me lembro em que lugar da casa, voltei a ver o mesmo espectro, exactamente com a mesma forma, e foi então que registei imediatamente como segunda visão, porque já tinha visto anteriormente, embora continuando a não ter resposta. Ao todo foram três vezes que aquela visão me apareceu, pelo que concluí que não era nenhuma impressão minha, só que realmente não fazia ideia de quem era e o que queria, porque aquilo que via não me dizia absolutamente nada.

Já vi espíritos desencarnados que se me apresentaram completamente vestidos e apesar de nunca ter conhecido, a informação veio em simultâneo com a imagem apresentada. Não sei como, mas veio. Uma visão completamente nua nunca tinha visto. Devo dizer que era uma forma muito bonita. Parecia um desenho a carvão, muito bem feito. Não me transmitiu nenhum sentimento negativo, embora eu saiba que se isso acontece é porque há algo por detrás. Mas, com toda a verdade, não me vinha informação alguma.

E o Carlos lá, sentado, falando da mãe, enquanto eu o ouvia e uma ou outra pergunta lhe fazia. Ele falava da mãe e eu ia visualizando no meu íntimo e silenciosamente a personalidade dela, compondo com toda a informação que ele me fornecia, acrescentando pormenores aqui e ali.

Estava curiosa por ele estar com aquela conversa e ao mesmo tempo estava completamente tranquila, num fim de tarde de verão, em que o calor nos obrigava a relaxar um pouco, apreciando a conversa e bem mais do que isso, a companhia um do outro.

E como não era costume ele falar assim detalhadamente de coisas mais íntimas, perguntava a mim própria, porquê fazê-lo naquele dia!? Achei que era um pouco estranho. Porque o estaria a fazer? E a pergunta foi tão forte que, então, se fez luz e a mensagem veio, sem dúvida nenhuma, o que me deu uma certa tranquilidade, porque aquilo que antes não tinha resposta, agora fazia todo o sentido.

A visão que eu tinha tido três vezes naquele dia, era nem mais nem menos a presença da mãe lá por casa, antecipando a conversa do filho. Porque razão ela apareceu completamente nua? Primeiro, porque eu já tinha visto uma ou outra foto dela e achei que era uma senhora muito bonita e muito elegante. Segundo, porque a descrição que o Carlos fazia da mãe invocava predicados de personalidade muitíssimo profundos, de coisas que eram analisadas de modo muito negativo, “descascando”, por assim dizer, todo o espírito dela, ou seja, a sua alma, pelo que a nudez encaixava perfeitamente no conteúdo menos digno, digamos, sem pudor, pelos erros que lhe eram apontados, ao invés de ter sido uma mãe carinhosa como ele tanto desejaria.

 

segunda-feira, 2 de junho de 2025

O retrato - 123

 

Em casa dos meus tios havia um quadro na parede, que era o retrato de um homem, que despertava de mais a minha atenção de criança. Não tinha nada de especial, mas estava colocado no hall, estrategicamente, bem à entrada da porta e era o único retrato naquela casa. Parecia dar as boas vindas a quem chegava. Mas parecia também como que uma autoridade.

Naquele tempo eu era a única, porque fui a primeira da minha geração. A primeira filha, a primeira sobrinha, a primeira neta, por isso, costumo dizer que vim para abrir as portas aos que vieram depois de mim e se para mim tudo foi complicado, já para os outros, foi tudo muito fácil. Não tenho dúvidas de que foi minha missão, de facto, abrir as portas. E pronto, faz parte da vida, faz parte do percurso de cada um de nós. Cada um veio para o que veio. A cada um cabe a sua parte.

Também por isso, fui a primeira a pisar aquela casa, porque todos nós vivíamos em Setúbal, com os meus avós. Mesmo depois do meu avô falecer, continuámos em casa da minha avó. Só um, o quarto, segundo filho dos meus tios, foi criado em Lisboa, em casa dos pais. E talvez por essa razão, ele seja completamente diferente dos outros. Foi criado pela empregada e pela avó paterna, porque os pais trabalhavam e estavam todo o dia fora. Foi lá que cresceu e ficou a vida toda, até hoje.

Ir a Lisboa para casa deles não era nada fácil para mim. Um terceiro andar, bem no centro da cidade. Não é que eu não gostasse da casa, mas não tinha com que me entreter. A casa dos meus avós, em Setúbal, era uma casa antiga, mas era um rés-do-chão, pelo que o acesso à rua era tranquilo. Quando estava chateada, podia ir para a rua brincar. Em Lisboa, isso não podia acontecer de jeito nenhum. Mesmo que fosse, não estaria lá ninguém para brincar comigo. A única coisa a fazer era ficar quieta, vendo a empregada fazer todo o trabalho de casa, o que era bastante monótono, sem o menor interesse.

Naquela altura também ainda não havia televisão, pelo que a minha riquíssima infância de África, ficara completamente para trás, deixando-me morrer de tédio em Lisboa, onde nem brinquedos eu tinha para brincar. Aquela casa não era uma casa para acolher crianças. Era uma casa de adultos para adultos. As crianças, praticamente, não tinham lugar. Era muito difícil.

Então, eu passava o tempo observando os bibelots, tudo o que estava nas paredes, os móveis e na falta do que me entreter, enrolava-me no chão, acabando por adormecer, porque realmente não sabia o que fazer. O meu refúgio era dormir. Era a minha única defesa.  E o pior é que ninguém me compreendia nunca. Achavam que era eu que era desadequada, sem princípios, etc. Outros tempos.

A casa era muito cheia de tudo, até hoje, porque foi sempre piorando. Ao longo dos anos, e já lá vai mais de meio século, sempre conheci os mesmos móveis, as mesmas coisas nas paredes, e tudo só foi aumentando. Nada ali se põe para fora. A vida foi acontecendo naturalmente. Uns morreram, outros nasceram. Os meus tios tiveram três filhos, dois rapazes e uma rapariga, a mais velha dos três irmãos, mas só um nasceu, cresceu e por lá ficou sempre. Os outros, tal como eu e a minha irmã, era só de passagem.

O J. A., o meu primo que ficou sempre com os pais, teve uma vida completamente diferente dos outros. Os meus tios estavam a semana inteira em Lisboa e só ao fim-de-semana iam a Setúbal. E a assistência que davam às crianças era pouquíssima ou nenhuma. Ao domingo íamos todos à missa. Se fosse Verão, íamos para a praia, mas eles não se preocupavam em nada connosco. O fim-de-semana em Setúbal era apenas e somente para descansarem. Quem quisesse que trabalhasse. E eu, a mais velha, é que era responsável por todos os outros. O que quer que fizessem era minha responsabilidade, apenas porque era a mais velha. Os meus tios deitavam-se na areia a apanhar sol e desligavam-se de tudo. Até em casa, qualquer coisa que corresse mal era culpa minha. Eu não achava aquilo certo, mas era o que era.

A minha infância foi extremamente rica, porque boa demais para ser verdade, e talvez por isso, tenha acabado tão cedo, mudando a minha vida do dia para a noite. Aquelas idas a Lisboa eram sempre uma grande chatice. Mas os meus pais ainda estavam em África e eu não tinha outro remédio.

Hoje, acho perfeitamente natural que eu me deixasse adormecer com tanta facilidade, por conta da monotonia a que estava sujeita. Aquela casa era um castigo para mim. Nessa perspectiva, entendo também o facto de o tal retrato exercer sobre mim tanta atracção e algum mistério. Mas não era só isso. Eu sabia que aquele personagem não estava entre nós. Já tinha morrido havia muito tempo. Então porque havia de estar ali, como que a dizer, eu sou o dono desta casa? Eu sou a “pessoa” mais importante deste lar. Aqui mando eu. Aqui eu imponho-me a tudo e todos!?

Era exactamente isto que ele me dizia. Era isto que chegava até mim, sempre que me detinha, especada em frente do quadro. Até que um dia, ao ver-me ali tão concentrada e talvez já o tivesse visto outras vezes, a minha tia me disse em voz muito baixa, que ele andava por ali, isto é, que o via circular pela casa. De certo modo, apesar de ser estranho, não deixava de vir ao encontro das minhas conjecturas. Estava no seguimento dos meus pensamentos. Todavia e, apesar de eu ser tão pequena, não deixava de ser estranho ela me falar assim, dizendo aquelas coisas que parecia que não tinham cabimento.

Ao longo do tempo, a casa foi-se transformando num verdadeiro armazém, porque as coisas continuaram entrando sem que nada saísse. Quando os meus tios morreram achei que o meu primo daria um rumo satisfatório àquilo. Mas aconteceu precisamente o contrário. Todos nós fizemos um esforço para tornar a casa habitável, com uma certa qualidade de vida, coisa que ele não deixou, porque é um acumulador compulsivo e não consegue pôr nada fora, nem mesmo o lixo. Por incrível que pareça, esta é a mais pura verdade.

Mais de cinquenta anos se passaram e tudo aconteceu. O meu querido primo continua lá, porque nunca viveu noutro sítio. A juntar a tudo o mais que veio, porque as paredes que antigamente tinham apenas alguns quadros, hoje em dia têm milhentos deles, que sobem pela parede até ao tecto, de uma maneira desordenada e sem explicação. Quando raramente lá entro, porque todos nós nos sentimos mal no meio de toda aquela desordem, o retrato continua lá todos estes anos, intocável, o que é incrível.

Porém, se antes, naquela altura em que eu era apenas uma criancinha de cinco anos, não fazia qualquer sentido, embora a minha tia dissesse que ele andava por ali, hoje, ele faz todo o sentido, sim. Há coisas estranhas. Temos que esperar o tempo necessário para compreendê-las. Foi o caso. É que hoje eu sei que, aquele retrato que é do avô paterno dos meus primos, e que foi ali posto “por acaso”... não, não foi por acaso. O acaso é um grande enigma. Já não posso dizer que foi o acaso que me trouxe a resposta. Claro que não. A única coisa que posso dizer é que aquele retrato é, nem mais menos, o avô paterno dos meus primos, sim, que voltou a esta vida no seu próprio neto, o meu primo J. A., o único que sempre viveu naquela casa. 

Da mesma maneira que o meu primo mais novo é a reencarnação do nosso avô materno, o mais velho é a reencarnação do avô paterno deles, não meu, porque é por parte do pai. E tudo se encaixa. Por isso o "acaso" lá o colocou. 

Na verdade, mesmo antes de vir a esta vida, já lá estava em espírito. A minha tia de facto já tinha essa percepção, ao dizer que o via por ali. Só não sabia que ele voltaria de verdade como um filho seu. Mas, certamente, foi ela que, inconscientemente e por um "acaso" ou não, quis lá o tão especial retrato.

 

segunda-feira, 26 de maio de 2025

D. Velhota - 122


Um lindo dia de Primavera, que se fazia necessário aproveitar da melhor forma possível. À mesa da esplanada, sentada a saborear as vistas e a companhia das duas vizinhas e amigas, logo a seguir ao almoço, limitava-me ao convívio, já que não bebo café como elas, nem outras coisas. Mas é bom estar em grupo, jogando conversa fora. Faz parte da vida.

Ali e naquele momento, o meu eu mais profundo ou o meu eu interior, disparou em direcção à senhora que acabava de sair, invadindo o meu espírito, com uma série interminável de perguntas, que eu não sabia porquê nem para quê, apenas porque uma curiosidade mais forte, sentia essa inconsciente necessidade.

Olhei a senhora saindo, ao mesmo tempo que as perguntas todas e mais algumas dispararam. Por exemplo, quem será esta pobre criatura, com tanta idade, como é ou terá sido a sua vida, como viverá ela, sozinha ou acompanhada, etc… etc… etc…

Perguntei a mim própria se tinha alguma necessidade daquilo e a resposta foi redondamente não. Mas é uma curiosidade que está para além das minhas fronteiras e ultrapassa o meu entendimento. Quantas vezes passo por um sítio qualquer, olho para um prédio, uma casa e começo a inquirir o meu eu sobre como será o interior daquele pequeno mundo? Sobre como serão as pessoas que lá vivem, felizes ou infelizes, novos ou velhos, sempre sem que eu conscientemente precise daquelas respostas. Mas o inconsciente acaba por se sobrepor. E não é por uma questão de bisbilhotice. É outra coisa muito diferente. É como que uma intuição que começa a trabalhar desordenadamente, acabando por ter que me controlar, porque são pensamentos de que, sinceramente, não preciso.

Naquele momento, aproveitando gostosamente a companhia e o sol que nos aquecia os pés, ao ver a senhora sair, o meu inconsciente projectou-se na figura que acabava de ver, indo ao encontro do meu olhar, para, num instante sem tamanho possível, desenrolar todo um incontrolável questionário que não tinha o menor interesse, mas que foi maior do que eu, até ao momento em que disse a mim mesma para parar com aquela “febre”.

A senhora deu meias dúzia de passadas e estranhamente, estranhamente… ao passar pela nossa mesa, olhou-nos sorrindo, parou e começou a falar. Então, pensei que talvez ela morasse por ali, embora nunca antes a tivesse visto, e talvez fosse conhecida de alguma delas. Porque não? Continuou sorrindo, um sorriso estranho porque estava completamente desdentada, sem um único dente, a boca encovada com o queixe saliente e aí começou uma conversa que nunca mais acabava.

Demos a atenção possível à senhora velhota, que desfilava toda a sua vida com pormenores minuciosos, falando descontroladamente, sem lhe termos feito uma única pergunta. Nenhuma de nós abriu a boca para se dirigir a ela com o que quer que fosse, apenas a preocupação de não a interrompermos e deixarmos falar, pois parecia uma necessidade premente.

Ali permaneceu durante vinte minutos em que não parou de falar. O mais interessante é que eu pensei que elas a conheciam e cada uma delas pensou o mesmo, que as outras a conheciam. Portanto, nenhuma de nós a conhecia, pelo que ficámos as três um pouco baralhadas, olhando umas para as outras sem resposta plausível.

Ao fim de todo aquele tempo em que ficámos impedidas da conversar entre nós, pela atenção dispensada à senhora, percebemos pelos olhares, que estávamos cansadas de a ouvir, pelo que a Rute se levantou, interrompendo por alguns segundos o discurso da senhora velhota, para dizer que estava na hora de ir trabalhar, sendo que nós aproveitámos muito bem a deixa e também nos justificámos dizendo que também tínhamos que ir às nossas vidas.

A senhora velhota terminou a conversa e para grande alívio das três, retomou o seu caminho. A minha cabeça estava cheia e assoberbada de tanta história que não interessava. Todas fomos inesperadamente bombardeadas sem grande justificação e posso dizer que estávamos exaustas de a ouvir.

Perguntávamos umas às outras, mas quem é a senhora e surpreendentemente ninguém tinha resposta, o que nos deixou sem palavras. Mas eu sabia que a origem daquele mistério estava na minha cabeça. Quando ela saiu do restaurante, as perguntas assolaram a minha mente e dona velhota não fez se não responder, ainda que inconscientemente, ao meu estranho interrogatório, proveniente da comunicação das mentes.

O nosso poder telepático é muito mais forte e conecta-se muito mais do que se pode imaginar. Nem consigo entender como é que há pessoas que sistematicamente negam tudo isto. A realidade é muito mais concreta do que abstrata. O problema é que vivemos meio adormecidos e embrenhados em coisas que nos desviam da vida na sua plenitude.