Udo! Günther!...
Günther, Udu!... Gritávamos nós que nem umas loucas, num dia maravilhoso do
verão quase a terminar.
Naquele domingo,
a paróquia da igreja tinha organizado um passeio com paragem no Cabo da Roca e
só por isso estávamos ali. Podíamos ter ido a outro sítio qualquer, pois a nós
tanto fazia. O importante era sairmos de casa, desopilar, sendo que a única
possibilidade era aproveitarmos aquelas coisas promovidas pela igreja. Até
porque as únicas saídas que nos eram permitidas era ir à igreja e pouco ou nada
mais. Quantas vezes saía para dar uma volta pela baixa de Setúbal, onde
vivíamos, e me via obrigada a entrar na igreja, para não ter que mentir, coisa
para a qual não fui feita.
Foi por isso que
aproveitámos aquele passeio. A minha irmã em breve voltaria para o colégio,
onde era interna e eu para o meu trabalho, no Ministério, em Lisboa. Aquele
passeio tinha vindo numa boa hora. Precisávamos de respirar um ambiente
diferente e ali vinha mesmo a calhar. Olhei o mar na linha do horizonte e nesse
olhar meio perdido no infinito, o espírito mergulhado nas águas, as saudades tomaram
conta de mim. Aquele céu azul e toda a paisagem à volta, mexeram comigo de
verdade.
O grupo começou
a dispersar um pouco e acabámos por ficar só nós duas, apreciando a paisagem e
tudo à volta. Era a nossa possível liberdade. Mas havia uma angustiazinha
dentro de nós, que não queria calar e muito menos esquecer as férias que
tínhamos tido. Ali, naquele lugar, tudo ficava mais forte, mais ao de cima e,
de repente, num impulso inexplicável, comecei aos gritos, a que logo a minha se
irmã se juntou: “Udo! … Günther …!” E repetíamos até ficarmos exaustas com a
gritaria que estávamos fazendo. Parecíamos loucas.
As nossas férias
tinham sido uma coisa muito fora do normal. Passámos três semanas em casa dos
meus tios, que viviam em Beja, e foram umas férias inesquecíveis, coisa que
jamais poderíamos imaginar. Estávamos habituadas a estar com a avó e os outros
tios, que nos proibiam tudo e mais alguma coisa. Naquele ano a família
despachou-nos para Beja. E fomos, porque tínhamos que obedecer, só por isso. No
entanto, depois de lá estarmos, o difícil foi ter que voltar à base, isto é,
voltar para casa da família.
Em Beja não
havia como ir à praia, aquilo a que estávamos habituadas a fazer todo o Verão.
Então, os meus tios, disseram-nos para irmos à piscina. Como não havia
alternativa, o que equivalia a ficar em casa, lá fomos nós à piscina. Era uma
bela piscina, por sinal. Só isso, para nós, já era muito bom. A minha irmã
tinha dezasseis anos e eu dezanove. A experiência que tínhamos da vida era
zero. Qualquer coisa que fosse diferente do habitual já era muito bom para nós.
E foi aí que tudo aconteceu.
As piscinas
estavam praticamente tomadas pelos alemães, que nessa altura ocupavam a base
aérea alemã, sendo que, nos tempos livres, iam para as piscinas e por lá
ficavam o tempo todo, até à hora dos treinos, porque também não havia mais para
onde ir - essa é a verdade. Duas garotas portuguesas na piscina, logo fomos
alvo das atenções deles, ávidos de companhia feminina, apesar de que alguns
deles, os mais velhos, tinham consigo as respectivas mulheres. Eles eram muito
simpáticos e gentis connosco. Na sua maioria falavam inglês, pelo que a nossa
comunicação só assim foi possível.
Falávamos com
todos. Ríamos, brincávamos, trocávamos ideias, impressões, enfim… as conversas
fluíam muito naturalmente e eles ofereciam-nos tudo e mais alguma coisa, apesar
de apenas bebermos água e sumos. E foi assim que um deles logo se encantou com
a minha irmã, o Günther, que era um típico alemão, por ser louro e de olhos
azuis. Já eu, que sempre gostei de morenos, fui atraída para um diferente de
todos os outros. Udo era alto, magro, bem constituído e moreno de olhos
escuros. Esse era sem dúvida o meu preferido.
Apercebendo-se
de que havia da nossa parte uma certa reciprocidade no jeito de tratar e de
lidar com eles, porque era visível que havia uma conexão mais forte com estes
dois do que com todos os outros, começaram a convidar-nos para sair à noite. Günther
era piloto e Udo, técnico. Os dois trabalhavam sempre em equipa. E começámos a
sair com eles à noite. Não havia nada de interessante em Beja, por isso
passeávamos pela cidade. Nesses passeios começou o namoro de Günther com a
minha irmã e o Udo comigo. Como já disse, nós não tínhamos experiência de vida.
Tudo nos era proibido. Contudo, ali, os meus tios davam-nos carta branca e
diziam que éramos jovens e tínhamos que aproveitar a vida. Quando eles nos iam
deixar em casa, nas noites bem quentes do verão em Beja, em que os meus tios
ficavam longas horas na varanda, por não conseguirem dormir com o calor, quando
nos viam chegar, normalmente por volta das onze e tal, meia noite, lá de cima,
diziam-nos sempre que ainda era cedo para irmos para casa e que devíamos aproveitar
para passear mais.
Isto para nós
era muito estranho. Não estávamos nem um pouco habituadas a este tipo de comportamento
por parte da família. Tudo o que fazíamos era mal feito e passavam a vida a
ralhar connosco por tudo e por nada. Ali, além de não termos nada disso, ainda
nos estimulavam a fazer mais, dando-nos toda a liberdade possível. Era uma
sensação e tanto e só por isso estávamos muito agradecidas.
Então, se os
dias eram bem passados, as noites, essas eram magníficas. Fazíamos o que nunca
jamais tínhamos feito, nem pensado que podíamos fazer. Eles levavam-nos à base
alemã, a um bar enorme repleto de alemães, homens e mulheres, onde se convivia
tomando umas bebidas ao som da música. Até hoje me lembro de um licor de ovo
que um deles me deu a provar, porque eu não bebia álcool e que era divinal.
Estar com eles era realmente maravilhoso. Uma sensação incrível de liberdade.
Mas liberdade em segurança. Todos se queriam juntar a nós para conhecer as duas
portuguesas que estavam com Günther e Udo.
Quando
passeávamos à noite pela cidade, Gunther e a minha irmã eram um pouco
chamativos para o meu gosto. Os dois tinham muito fogo e não tinham vergonha.
Já eu era bem mais reservada e limitava-me a andar de mão dada com Udo. Por
isso, chegava sempre uma altura em que ele não aguentava mais e pegava em mim
ao colo, rodopiando, enquanto eu dizia “oh, no, no, no…” mas ele não se
importava e como era alto e tinha bom físico, elevava-me para o alto, dizendo “Lilly,
night is beutiful, stars are beautiful, but you are more beautuful”…
deixando-me completamente sem palavras, sem fôlego, envergonhada, tímida, mas
feliz, feliz até mais não. Caramba, nunca ninguém me tinha dito nem feito nada
daquilo. E nunca pensei que alguém alguma vez o fizesse, porque eu achava que
era feia, que ninguém ia gostar de mim e aquele homem lindo de morrer, abrir-se
e agir assim comigo, era uma coisa muito louca. Era uma versão da minha pessoa
que eu desconhecia completamente.
Uns dias antes
de regressarmos, porque as férias estavam a acabar e eu tinha que voltar ao
trabalho, estávamos a ficar meio tristes, porque aqueles belos dias estavam a
chegar ao fim. Sem mais nem menos, Udo perguntou-me se eu queria casar com ele
e ir para Alemanha. Caramba! Não estava nada à espera daquilo. Apanhou-me
completamente de surpresa. Mas logo lhe respondi que isso não podia ser. Ele
ainda insistiu dizendo para pensar nisso. Só que eu sabia que ir para a
Alemanha era um grande risco. Se as coisas não dessem certo e eu tivesse
filhos, como ia ser? Se quisesse voltar para Portugal, como ficaria a minha
situação sem o ou os meus filhos? Além de que teria que arranjar emprego,
porque viver à custa dos outros não era possível. Enfim, era muito, muito
complicado. Sonhar, sim, mas fazer loucuras não. E o tempo acabou e tivemos que
regressar à base. O curioso é que eles também já não iriam ter muito mais tempo
na base aérea em Portugal. O tempo deles também estava a terminar, o que me
fazia pensar que o nosso caminho, o nosso encontro, estava escrito nas
estrelas.
A vida voltaria
à rotina e restavam-nos apenas as saudades dos alemães, que tinham tornado as
nossas férias numa verdadeira festa, pela forma como nos trataram. Agora, ali,
perante o mar e o céu azul, gritávamos os nomes deles feitas parvas, dando voz
às nossas frustrações, com o pensamento centrado neles, num grito saído das
profundezas das nossas almas, demostrando o quanto eles tinham sido importantes
para nós e com plena consciência da profunda saudade que já marcava o álbum das
nossas recordações, era certo que não nos tornaríamos a ver e era por isso que
não nos conformávamos. Era difícil ter que aceitar isso. Mas era o que era. A
vida!
Longe do resto
do grupo, afastadas de toda a gente, começámos a caminhar em direcção ao mar,
onde havia um monte gente. Perto do mar, afogaríamos as nossas mágoas, sem
esquecer que era apenas o resultado de algo muito bom que tínhamos vivido. A
vida é estranha!? E os caminhos por onde passamos e nos cruzamos, ainda mais
estranhos. O universo dá voltas e mais voltas. E nesses estranhos caminhos, que
só mesmo o universo conhece e tem a palavra, caminhando para perto da água, há
dois homens que, lá em baixo, levantam os braços na nossa direcção, começando
a dirigir-se para onde estamos. Na mais pura ingenuidade, imaginámos que seriam
eles, conscientes de que tal coisa seria o mais improvável possível. Na nossa
cabeça, sabíamos que era completamente irracional. E eles gritavam qualquer
coisa que não conseguíamos entender. Então parámos, porque a coisa estava a
ficar estranha e não queríamos complicações. Mas o universo já tinha feito o
seu trabalho e também ele tinha dado os seus passos.
E assim, no
lugar mais improvável do mundo, perante a nossa - e deles - máxima
consternação, sem palavras que pudessem descrever o nosso espanto e a quanta “coincidência”
o ser humano está sujeito, Udo e Günther, em pessoa, eles mesmos, num perfeito
e último encontro.