segunda-feira, 2 de junho de 2025

O retrato - 123

 

Em casa dos meus tios havia um quadro na parede, que era o retrato de um homem, que despertava de mais a minha atenção de criança. Não tinha nada de especial, mas estava colocado no hall, estrategicamente, bem à entrada da porta e era o único retrato naquela casa. Parecia dar as boas vindas a quem chegava. Mas parecia também como que uma autoridade.

Naquele tempo eu era a única, porque fui a primeira da minha geração. A primeira filha, a primeira sobrinha, a primeira neta, por isso, costumo dizer que vim para abrir as portas aos que vieram depois de mim e se para mim tudo foi complicado, já para os outros, foi tudo muito fácil. Não tenho dúvidas de que foi minha missão, de facto, abrir as portas. E pronto, faz parte da vida, faz parte do percurso de cada um de nós. Cada um veio para o que veio. A cada um cabe a sua parte.

Também por isso, fui a primeira a pisar aquela casa, porque todos nós vivíamos em Setúbal, com os meus avós. Mesmo depois do meu avô falecer, continuámos em casa da minha avó. Só um, o quarto, segundo filho dos meus tios, foi criado em Lisboa, em casa dos pais. E talvez por essa razão, ele seja completamente diferente dos outros. Foi criado pela empregada e pela avó paterna, porque os pais trabalhavam e estavam todo o dia fora. Foi lá que cresceu e ficou a vida toda, até hoje.

Ir a Lisboa, para casa deles, não era nada fácil para mim. Um terceiro andar, bem no centro da cidade. Não é que eu não gostasse da casa, mas não tinha com que me entreter. A casa dos meus avós, em Setúbal, era uma casa antiga, mas era um rés-do-chão, pelo que o acesso à rua era tranquilo. Quando estava chateada, podia ir para a rua brincar. Em Lisboa, isso não podia acontecer, de jeito nenhum. Mesmo que fosse, não estaria lá ninguém para brincar comigo. A única coisa a fazer era ficar quieta, vendo a empregada fazer todo o trabalho de casa, o que era bastante monótono, sem o menor interesse.

Naquela altura também ainda não havia televisão, pelo que a minha riquíssima infância de África, ficara completamente para trás, deixando-me morrer de tédio em Lisboa, onde eu nem brinquedos tinha para brincar. Aquela casa não era uma casa para acolher crianças. Era uma casa de adultos para adultos. As crianças, praticamente, não tinham lugar. Era muito difícil.

Então, eu passava o tempo observando os bibelots, tudo o que estava nas paredes, os móveis e na falta do que me entreter, enrolava-me no chão, acabando por adormecer, porque realmente não sabia o que fazer. O meu refúgio era dormir. Era a minha única defesa.  E o pior é que ninguém me compreendia nunca. Achavam que era eu que era desadequada, sem princípios, etc. Outros tempos.

A casa era muito cheia de tudo, até hoje, porque foi sempre piorando. Ao longo dos anos, e já lá vai mais de meio século, sempre conheci os mesmos móveis, as mesmas coisas nas paredes, e tudo só foi aumentando. Nada ali se põe para fora. A vida foi acontecendo naturalmente. Uns morreram, outros nasceram. Os meus tios tiveram três filhos, dois rapazes e uma rapariga, a mais velha dos três irmãos, mas só um nasceu, cresceu e por lá ficou sempre. Os outros, tal como eu e a minha irmã, era só de passagem.

O J. A., o meu primo que ficou sempre com os pais, teve uma vida completamente diferente dos outros. Os meus tios estavam a semana inteira em Lisboa e só ao fim-de-semana iam a Setúbal. E a assistência que davam às crianças era pouquíssima ou nenhuma. Ao domingo íamos todos à missa. Se fosse Verão, íamos para a praia, mas eles não se preocupavam em nada connosco. O fim-de-semana em Setúbal era apenas e somente para descansarem. Quem quisesse que trabalhasse. E eu, a mais velha, é que era responsável por todos os outros. O que quer que fizessem, era minha responsabilidade, apenas porque era a mais velha. Os meus tios deitavam-se na areia a apanhar sol e desligavam-se de tudo. Até em casa, qualquer coisa que corresse mal, era culpa minha. Eu não achava aquilo certo, mas era o que era.

A minha infância foi extremamente rica, porque boa demais para ser verdade, e talvez por isso, tenha acabado tão cedo, mudando a minha vida do dia para a noite. Aquelas idas a Lisboa eram sempre uma grande chatice. Mas os meus pais ainda estavam em África e eu não tinha outro remédio.

Hoje, acho perfeitamente natural que eu me deixasse adormecer com tanta facilidade, porque não tinha com que me distrair. Aquela casa era um castigo para mim. Nessa perspectiva, entendo também o facto de o tal retrato exercer sobre mim tanta atracção e algum mistério. Mas não era só isso. Eu sabia que aquele personagem não estava entre nós. Já tinha morrido havia muito tempo. Então porque havia de estar ali, como que a dizer, eu sou o dono desta casa? Eu sou a “pessoa” mais importante deste lar. Aqui mando eu. Aqui eu imponho-me a tudo e todos!?

Era exactamente isto que ele me dizia. Era isto que chegava até mim, sempre que me detinha, especada em frente do quadro. Até que um dia, ao ver-me ali tão concentrada e talvez já o tivesse visto outras vezes, a minha tia me disse em voz muito baixa, que ele andava por ali, isto é, que o via circular pela casa. De certo modo, apesar de ser estranho, não deixava de vir ao encontro das minhas conjecturas. Estava no seguimento dos meus pensamentos. Todavia e, apesar de eu ser tão pequena, não deixava de ser estranho ela me falar assim, dizendo aquelas coisas que parecia que não tinham cabimento.

Ao longo do tempo, a casa foi-se transformando num verdadeiro armazém, porque as coisas continuaram entrando sem que nada saísse. Quando os meus tios morreram, achei que o meu primo daria um rumo satisfatório àquilo. Mas aconteceu precisamente o contrário. Todos nós fizemos um esforço para tornar a casa habitável, com uma certa qualidade de vida, coisa que ele não deixou, porque é um acumulador compulsivo e não consegue pôr nada fora, nem mesmo o lixo.

Mais de cinquenta anos se passaram e tudo aconteceu. O meu querido primo continua lá, porque nunca viveu noutro sítio. A juntar a tudo o mais que veio, porque as paredes que antigamente tinham apenas alguns quadros, hoje em dia têm milhentos deles, que sobem pela parede até ao tecto, de uma maneira desordenada e sem explicação. Quando raramente lá entro, porque todos nós nos sentimos mal no meio de toda aquela desordem, o retrato continua lá todos estes anos. Intocável! É mesmo incrível.

Porém, se antes, naquela altura em que eu era apenas uma criancinha de cinco anos, não fazia qualquer sentido, embora a minha tia dissesse que ele andava por ali, hoje, ele faz todo o sentido, sim. Há coisas estranhas. Temos que esperar o tempo necessário para compreendê-las. Foi o caso. É que hoje eu sei que, aquele retrato que é do avô paterno dos meus primos, e que foi ali posto “por acaso”, não, não foi por acaso. O acaso é um grande enigma. Já não posso dizer que foi o acaso que me trouxe a resposta. Claro que não. A única coisa que posso dizer é que aquele retrato é, nem mais menos, o avô paterno dos meus primos, sim, que voltou a esta vida no seu próprio neto, o meu primo J. A., o único que sempre viveu naquela casa. 

Da mesma maneira que o meu primo mais novo é a reencarnação do nosso avô materno, o mais velho é a reencarnação do avô paterno deles, não meu, porque é por parte do pai. E tudo se encaixa. Por isso o “acaso” lá o colocou. Na verdade, mesmo antes de vir a esta vida, já lá estava em espírito. A minha tia, de facto, já tinha essa percepção, ao dizer que o via por ali. Só não sabia que ele voltaria de verdade, como um filho seu. Mas, certamente, foi ela que, inconscientemente, e por um “acaso” ou não, quis lá o tão especial retrato. 

segunda-feira, 26 de maio de 2025

D. Velhota - 122


Um lindo dia de Primavera, que se fazia necessário aproveitar da melhor forma possível. À mesa da esplanada, sentada a saborear as vistas e a companhia das duas vizinhas e amigas, logo a seguir ao almoço, limitava-me ao convívio, já que não bebo café como elas, nem outras coisas. Mas é bom estar em grupo, jogando conversa fora. Faz parte da vida.

Ali e naquele momento, o meu eu mais profundo ou o meu eu interior, disparou em direcção à senhora que acabava de sair, invadindo o meu espírito, com uma série interminável de perguntas, que eu não sabia porquê nem para quê, apenas porque uma curiosidade mais forte, sentia essa inconsciente necessidade.

Olhei a senhora saindo, ao mesmo tempo que as perguntas todas e mais algumas dispararam. Por exemplo, quem será esta pobre criatura, com tanta idade, como é ou terá sido a sua vida, como viverá ela, sozinha ou acompanhada, etc… etc… etc…

Perguntei a mim própria se tinha alguma necessidade daquilo e a resposta foi redondamente não. Mas é uma curiosidade que está para além das minhas fronteiras e ultrapassa o meu entendimento. Quantas vezes passo por um sítio qualquer, olho para um prédio, uma casa e começo a inquirir o meu eu sobre como será o interior daquele pequeno mundo? Sobre como serão as pessoas que lá vivem, felizes ou infelizes, novos ou velhos, sempre sem que eu conscientemente precise daquelas respostas. Mas o inconsciente acaba por se sobrepor. E não é por uma questão de bisbilhotice. É outra coisa muito diferente. É como que uma intuição que começa a trabalhar desordenadamente, acabando por ter que me controlar, porque são pensamentos de que, sinceramente, não preciso.

Naquele momento, aproveitando gostosamente a companhia e o sol que nos aquecia os pés, ao ver a senhora sair, o meu inconsciente projectou-se na figura que acabava de ver, indo ao encontro do meu olhar, para, num instante sem tamanho possível, desenrolar todo um incontrolável questionário que não tinha o menor interesse, mas que foi maior do que eu, até ao momento em que disse a mim mesma para parar com aquela “febre”.

A senhora deu meias dúzia de passadas e estranhamente, estranhamente… ao passar pela nossa mesa, olhou-nos sorrindo, parou e começou a falar. Então, pensei que talvez ela morasse por ali, embora nunca antes a tivesse visto, e talvez fosse conhecida de alguma delas. Porque não? Continuou sorrindo, um sorriso estranho porque estava completamente desdentada, sem um único dente, a boca encovada com o queixe saliente e aí começou uma conversa que nunca mais acabava.

Demos a atenção possível à senhora velhota, que desfilava toda a sua vida com pormenores  minuciosos, falando descontroladamente, sem lhe termos feito uma única pergunta. Nenhuma de nós abriu a boca para se dirigir a ela com o que quer que fosse, apenas a preocupação de não a interrompermos e deixarmos falar, pois parecia uma necessidade premente.

Ali permaneceu durante vinte minutos em que não parou de falar. O mais interessante é que eu pensei que elas a conheciam e cada uma delas pensou o mesmo, que as outras a conheciam. Portanto, nenhuma de nós a conhecia, pelo que ficámos as três um pouco baralhadas, olhando umas para as outras sem resposta plausível.

Ao fim de todo aquele tempo em que ficámos impedidas da conversar entre nós, pela atenção dispensada à senhora, percebemos pelos olhares que estávamos cansadas de a ouvir, pelo que a Rute se levantou, interrompendo por alguns segundos o discurso da senhora velhota, para dizer que estava na hora de ir trabalhar, sendo que nós aproveitámos muito bem a deixa e também nos justificámos dizendo que também tínhamos que ir às nossas vidas.

A senhora velhota terminou a conversa e para grande alívio das três, retomou o seu caminho. A minha cabeça estava cheia e assoberbada de tanta história que não interessava. Todas fomos inesperadamente bombardeadas sem grande justificação e posso dizer que estávamos exaustas de a ouvir.

Perguntávamos umas às outras, mas quem é a senhora e surpreendentemente ninguém tinha resposta, o que nos deixou sem palavras. Mas eu sabia que a origem daquele mistério estava na minha cabeça. Quando ela saiu do restaurante as perguntas assolaram a minha mente e dona velhota não fez se não responder, ainda que inconscientemente, ao meu estranho interrogatório, proveniente da comunicação das mentes.

O nosso poder telepático é muito mais forte e conecta-se muito mais do que se pode imaginar. Nem consigo entender como é que há pessoas que sistematicamente negam tudo isto. A realidade é muito mais concreta do que abstrata. O problema é que vivemos meio adormecidos e embrenhados em coisas que nos desviam da vida na sua plenitude.

 


domingo, 25 de maio de 2025

Um pedido de socorro - 121


Há anos atrás, numa outra vida, ainda que bem próxima, quando aos fins de semana o Álvaro e eu íamos para a casa de campo em Alcobaça, aconteceu uma coisa incrível. Para quem é muito relacionado com a natureza e especialmente com os animais do campo, pode até nem ser, mas para mim que, forçosamente sou citadina, onde a maior parte do tempo fui criada, cresci e vivi, este episódio é algo revelador. 

As fábulas contam as histórias “no tempo em que os animais falavam”. Neste episódio fiquei a saber que os animais falam de verdade e da forma mais inteligente possível. E não foi só no passado. É assim.

Chegámos a Covões, Alcobaça, ao final da tarde de uma sexta-feira. Correu tudo normalmente como era costume. Acomodámo-nos, jantámos, vimos um pouco de televisão e depois fomos dormir. O som do campo… ah, que delícia!... Eu chegava lá e esvaziava a minha cabeça. Era um sossego absoluto. Às vezes, ouviam-se as gargalhadas ou as vozes das crianças de uma moradia próxima, que alegremente quebravam o silêncio, mas tirando isso, nada mais se ouvia. A estrada passava longe e não havia ruídos de espécie alguma. A moradia do lado era de um casal de emigrantes que raramente lá iam, pelo que os patos da quinta mais próxima se encarregavam de se banhar e conspurcar por completo a piscina. E tirando a passarada, que era muito bem-vinda, ouviam-se uns cães de uma outra quinta próxima. Nada mais. Era um sossego abençoado por Deus e que tanto bem nos fazia. 

Ali, perdíamo-nos no silêncio e no silêncio encontrávamos tudo o que precisávamos para um verdadeiro descanso. Mas naquela sexta-feira, já estávamos na cama, quando me apercebi de que havia uma ovelha a dar sinal de vida porque, de vez em quando, fazia méheheheeee… e, então, percebi que já a tinha ouvido antes de me deitar. Não havia nada de mais nisso. Estávamos no campo. Mas eu nunca tinha ouvido anteriormente. Talvez fosse algum animal recém-chegado àquelas paragens. 

No outro dia de manhã quando acordei, o Álvaro já andava na vida dele, como era costume. Tratava do jardim, limpava a piscina e até o pequeno almoço preparava, para tomarmos juntos, quando eu acordasse. E lá estava de novo a ovelha… méheheheeeee… que coisa estranha. De repente, achei que a tinha ouvido até durante a noite, no meu sono profundo, se é que era possível. Talvez fosse apenas impressão minha, já que a tinha ouvido mesmo antes de adormecer. Continuava a ser normal uma ovelha a fazer méheheheeee, mas… mas a minha intuição já estava alerta, achando que aquilo podia querer dizer alguma coisa mais. Na verdade, não devia ser nada. Estava tudo bem. 

O sábado passou-se, conosco nas nossas lidas de fim-de-semana, com algumas saídas e descanso à mistura. Como era bom o “dolce far niento” do campo… oh vida boa! Só que, no meio de tudo isto, não deixávamos de ouvir a ovelha. Com efeito, era muito insistente. Ela sobrepunha-se ao nosso silêncio e interrompia todos os nossos momentos, independentemente do que estivéssemos a fazer ou a pensar. 

Chegou novamente a noite, sendo que, na verdade, aquilo já me estava a incomodar, porque eu tinha a sensação de que ela estava a chamar. Quem? Porquê? E não havia ninguém por perto, os donos, por exemplo? Que estranho!? A minha cabeça começava a ser invadida por uma série de perguntas sem fim. Comecei a falar no assunto e o Álvaro pôs-se à escuta para de seguida dar uma espreitadela, enquanto acabava de dar as últimas fumaças no cigarro da noite, dando uma volta no exterior da casa, para ver se captava alguma coisa mais. 

No domingo, a nossa rotina repete-se. Mas a nossa ovelha também. Volta e meia, lá vinha o méheheheeeeee. Até comentei que ela não se cansava e, provavelmente, já antes da nossa chegada, estaria a fazer méheheheeee. Agora, o Álvaro também já começava a achar aquilo estranho. Mas não era nada conosco!? O problema é que, para mim, aquilo não era um simples méheheheeeee, era muito mais do que isso. O que a minha intuição dizia é que era um verdadeiro pedido de socorro. Mas também poderia ser exagero meu!? 

Ao fim da tarde, começámos a preparar-nos para bater em retirada. Fechou-se a casa e entrámos no carro. Abriu-se o portão e entrámos no caminho de terra batida, que dava acesso à estrada de Covões, para apanhar a estrada principal. E já quase a chegar à estrada, a ovelha chama novamente:  méheheheeeeee. Olhámos na direcção do méh e parámos o carro. Havia aí uma quintinha, onde nunca estava ninguém, porque os donos só lá iam muito de vez em quando. Saímos do carro e acercámo-nos do muro que era relativamente baixo. 

Um espectáculo impressionante. As ovelhas estavam todas juntas. Uma delas permanecia de pé, com a cabeça enfiada da rede da vedação, sem conseguir tirá-la de lá. Enfiou-a, mas não saía. Há quanto tempo estaria naquela situação aflitiva? Nós tínhamos chegado na sexta-feira e ela já estava a chamar, portanto não fazíamos ideia de há quanto tempo estaria ali presa. Mas o mais interessante é que, como estava de pé havia muito tempo e porque já devia estar bastante cansada, além de que não comia nem bebia, porque a cabeça estava do lado de fora da rede, uma outra estava agachada no chão, no dorso da qual ela se apoiava, tentando assim resistir ao cansaço. As restantes estavam em volta. 

O Álvaro trepou o muro, saltou para dentro e tirou a cabeça da ovelha, fazendo tudo voltar à normalidade. Entrámos no carro e prosseguimos a nossa viagem até Lisboa, com uma enorme sensação de alívio. Mas aquela cena para mim foi indescritível. Quem ensinou à ovelha a sentar-se no chão, a fim de que a outra se pudesse apoiar? Quem ensinou aos animais uma palavra que às vezes os homens esquecem e se chama “solidariedade”? 

Bom, a palavra, eu não sei se eles conhecem, mas o sentimento sim. Estava lá, expresso na atitude de todos sem excepção. Aliás, não podia estar mais expresso do que estava. Eu estava absolutamente fascinada e ma-ra-vi-lha-da. 

Então os animais falam ou não? E precisam? Há uma comunicação inteligente que nos escapa e, na verdade, não necessitam nem de falar. Tudo o que sei, que já aprendi ao longo da minha vida sobre telepatia, aplica-se também aos animais, sem dúvida alguma. Eu tinha razão em achar que o méhehehe dela estava codificado, querendo dizer alguma coisa mais. Pelo contrário, era bem anormal. O que se ouvia era méheheheh, mas ela, coitada, gritava “socorro”, tirem-me daqui! 

O tempo em que os animais falavam é hoje e sempre. Eles, entre si, não precisam da linguagem falada. Nós humanos é que precisamos, para nos entendermos e ainda assim, quantas vezes falhamos! Ao longo dos tempos, no nosso processo de evolução, fomos perdendo as faculdades maiores e inventando outras coisas em modo de substituição. Os animais mantêm-se fiéis à sua linha evolutiva. Não é que falar seja deitar a baixo o homem, que isso não teria o menor sentido. Mas, na verdade, ganhamos umas coisas para perdermos outras que são básicas. Quantas vezes uma pessoa fala e nós percebemos que o que está a dizer é pura mentira?! Isso é telepatia, porque o que é válido é o que as mentes estão a conectar. Palavras, levas o vento, ao passo que o que está na mente não pode ser mascarado. 

Os animais têm a sua inteligência que os leva sempre à sobrevivência. Já o homem, nem sempre usa a inteligência para a sobrevivência, mas sim à destruição. Talvez um dia se canse de si mesmo e tenha de encontrar uma maneira diferente, uma maneira muito especial, de pedir socorro!?...  


domingo, 29 de setembro de 2024

OM - 120

 

Om, a sílaba mágica, porque símbolo universal. Na verdade, Om é o puro som do universo. O princípio de tudo, porque é onde tudo tem a sua origem. Tudo vem do Om, como tudo se transforma e se esfuma em Om. Ele não está ligado apenas ao nosso pequeno mundo. Abrange todos os mundos, visíveis e invisíveis e tudo o que neles está contido, dentro e fora.

Om ou Aum, é por isso considerado sagrado e muitas religiões orientais o adoptaram como portal divino da energia universal. Mas não só, em África também é a toda poderosa. Os terreiros de Umbanda, onde Om actua por excelência, centrando tudo em si. Umbanda é a união de duas palavras: Aum e banda. Aum é Om e banda significa lado, portanto, do lado de Deus. Om é tudo, porque vem do nada, se é que é possível entender. Om existe até mesmo antes da sua própria existência, se é que também isto é possível entender. Uma energia fundamentalmente holística, que nos diz que o Todo é maior do que a soma das partes. Ultrapassa, sem dúvida, toda a nossa linha de compreensão.

Quando eu era criança e andava na catequese, porque a minha família era católica praticante, aprendi essa coisa do Om, que já então me fascinava, precisamente por não conseguir atingir. Aprendi que Deus era omnipotente, omnisciente e omnipresente. E o facto de haverem três om’s era uma coisa deveras transcendente. As três potenciais forças absolutas para definir a natureza de um deus, o deus dos monoteístas. E dava por mim, muitas e muitas vezes, meditando inconscientemente, porque nessa altura ainda nem sabia o que isso era, mas inconscientemente já o fazia, meditando sobre essas três “qualidades” que definiam Deus. E a verdade é que ficava verdadeiramente extasiada, porque me sentia mergulhar num mar de perguntas que não podiam ter resposta. Primeiro, porque ninguém falava nisso. Segundo, mesmo que falassem, não me dariam a resposta, porque na verdade não existe uma resposta.

Om é inalcançável, porque é deus. Om é usado para mantras e tudo o que é ritual religioso para atrair as boas energias do universo, que todos tanto precisamos. Claro que no ocidente apenas alguns, a élite espiritualista, trabalha com Om, mas no oriente é muito familiar e do mais sagrado que pode haver, o que não deixa de ser interessante. Se não, vejamos: Om representa um deus – o deus único, supostamente - mas no oriente, onde é precisamente mais usado, existe uma infinidade de religiões, cada uma com o seu deus. Qual deles é o verdadeiro? Porque só o verdadeiro é único. Então, om está ligado a qual deus? Ou todos eles são omnipotentes, omnipresentes e omniscientes? As coisas complicam-se e entram em completa contradição. Mas o oriente é o que é, é mesmo assim, e quem somos nós para contrariar seja quem for quanto à fé e suas crenças?!

Por mim, como sempre acreditei num deus único, fica mais fácil aceitar a definição de omnipotente, omnisciente e omnipresente. Sem dúvida! Porém, nunca me passou pela cabeça regatear com alguém sobre quem é quem porque, da minha perspectiva, sendo só um, não tem que saber, querendo ou não, o facto é que é o mesmo para todos e ponto final. Mas também não tiro o direito a ninguém de ter uma opinião diferente da minha.

Uma noite destas, antes de adormecer, estava eu nas minhas preces muito pessoais, que não são sempre iguais, variando em pequenas coisas que as tornam mais criativas e mais profundas, quando me veio à ideia dirigir-me ao deus da minha fé, através da transcendência do sagrado Om, para de seguida enumerar as suas divinas atribuições dos três om’s: omnisciente, omnipotente e… e… o terceiro om não saía. Concentrei-me, para melhor o chamar, mas ele não vinha. Concentrei-me mais ainda, mas ele não vinha de jeito nenhum. Parei com tudo na minha cabeça para mergulhar profundamente na busca do terceiro om, mas ele decidiu que não viria.

Achei isto muito esquisito, porque nunca tal me tinha acontecido e não estava disposta a aceitar esta estranhíssima falta de lembrança. Não era possível! Porquê? Não tinha explicação. Barafustei com a minha cabeça, agarrei-me fortemente às minhas tácticas, mas o om não aparecia de jeito nenhum. Repetia os dois que me vinham à lembrança: omnipotente, omnisciente, na expectativa de que o terceiro viesse automaticamente, mas depois de todos os esforços possíveis, tive que me render, porque percebi que não conseguia atraí-lo e acabei desistindo, para minha grande frustração.

Não fazia sentido nenhum aquele lapso de lembrança ou de memória, porque as três coisas estão tão interligadas e fazem tanto sentido, que acabam por ser uma só. E assim acabei por adormecer com uma forte sensação de derrota. Tenho imensa dificuldade em aceitar as minhas falhas. Mas é o que é. Nem adianta muitos porquês, porque não têm resposta. É aceitar e pronto, o que para mim às vezes é difícil. Foi o caso. Por isso, decidi esquecer, para me entregar ao sono, e me libertar daquele dilema. Isto era o que eu pensava.

E não foi difícil adormecer, nem por isso. A decisão estava tomada, pelo que rapidamente entrei no processo do sono. Quando dormimos, achamos que nos desligamos de tudo, mas não há nada mais falso do que isto. É um puro engano. O meu espírito pode ter vagueado sabe-se lá por onde, porém, estava gravado no meu subconsciente, que queria lembrar-me do terceiro om, mesmo sem consciência disso, e então, durante o sono, o inconsciente fez o seu trabalho e pela manhã, ao abrir os olhos, ainda sem bem ter a noção de que já tinha acordado para um novo dia, antes mesmo de ter consciência de outra coisa qualquer, fosse o que fosse, ao abrir os olhos, até mesmo sem ter tempo de me lembrar da cena da noite anterior e da frustração que me causou aquele ridículo esquecimento, de uma forma estranha mas impactante, doida para se mostrar, na perfeição e sem a mais pequena dúvida, o terceiro om chegava como uma ordem, impondo-se a tudo, com toda a sua força e o poder a que faz jus, para meu grande espanto e admiração, aí estava ele: omnipresente. Agora sim: omnipotente, omnisciente e omnipresente.


quarta-feira, 28 de agosto de 2024

O Processo de Reencarnação - 119

 

Éramos quatro e Inajá estava sentada à minha frente. A conversa como sempre, estava focada na pessoa dela, mas agora com mais impacto, pelo facto de ser a despedida. Era o último sábado em Portugal, ou na “Europa”, conforme ela sempre fazia questão de mencionar, penso que para ampliar o valor do seu discurso, adaptando-o às suas ambições. Ao fim de seis anos difíceis de aguentar, por causa do dinheiro, tinha finalmente decidido voltar à base e por ser sábado, estávamos como de costume a almoçar à hora de sempre, no lugar de sempre. Assim, falava de todos os pormenores da sua ida para Natal, RN, Nordeste Brasileiro, que eu amo demais! Por mim, voltaria lá vezes sem conta, pois aquilo é um verdadeiro paraíso. Praia maravilhosa, calor, águas quentes e água de coco e não preciso de mais nada.

Conhecendo bem o meio para onde vai e as pessoas que estão à sua volta, a conversa foi fluindo e a páginas tantas, Inajá falou duma filha da prima Altair - uma família nordestina, com quem sempre teve o melhor relacionamento possível - que tem um menino com cerca de dois anos. Eu não sabia da existência dessa criança, mas quando ela falou no neto de Altair, a qual faleceu há uns cinco anos, imediatamente se fez luz, para ficar a saber que essa criança, esse menino, era a reencarnação de Altair.

O processo de reencarnação é das coisas mais fascinantes do mundo espiritual. Li muita coisa sobre o assunto, e lembro-me que ficava sempre a planar, completamente rendida, com mil e uma perguntas às quais tentava dar resposta através de longas horas de meditação. Achava maravilhoso poder saber quem eu era de verdade, de onde vinha e para onde iria, e não só eu, mas cada um de nós, como seres humanos encarnados.

Contudo, também tive sempre consciência de que era um assunto deveras complicado de entender, aceitar e decifrar. É que não é uma coisa para a qual exista uma chave, um código, um meio de decifrar o enigma, apesar de que há quem ache que, através dos olhos, é possível decifrar esse mistério. Daquilo que sei e que entendo, não existe uma regra. As coisas do mundo espiritual não são assim. Têm que ser alcançadas através da nossa evolução espiritual e não de regras que não existem.

Olhei para Inajá tentando falar somente com o olhar, pois tive receio da reação dos que estavam à mesa connosco. Nem toda a gente acredita nestas coisas, nem têm obrigação de acreditar, mas eu, mais do que acreditar, eu sei, sendo que tenho que respeitar a opinião dos outros, como eles a minha, e como quem não teve a certeza do que ouviu, perguntei por essa criança, a que logo Inajá respondeu que sim, o neto de Altair, comentando com toda a euforia, que era a perfeita reencarnação de Altair, pois era exatamente a personalidade da falecida avó. Aí estava a resposta conclusiva, para que não restassem dúvidas e por isso me atrevi a falar, dizendo que era natural, pois era Altair que estava de volta. Para meu grande espanto, não houve risadas nem reações que me deixassem desconfortável, o que muito apreciei.

Inajá assume sempre muito bem, apesar de que tudo o que é espiritualidade lhe passa ao lado. E não é que não acredite, mas falta ali qualquer coisa que a bloqueia, sem lhe dar a mais pequena oportunidade. Normalmente, nestes casos, é porque a pessoa, apesar de acreditar, acha ou acredita que não é capaz de acessar outra dimensão, que é demais para ela e por aí… o facto é que ela não consegue. Ao contrário de mim, que desde que me conheço, o mundo espiritual faz parte da minha vida. Sem ele eu não era nada. Houve uma altura em que até fugia dessas coisas, por achar que apenas queria ser uma pessoa “normal”. A questão é que percebi que não adiantava fugir. Eram as coisas que vinham ter comigo e não eu com elas. Depois, como negar aquilo que era óbvio demais!? E definitivamente, a bem da minha saúde emocional, acabei aceitando aquilo que era eu. 

Muitas coisas me foram reveladas e ao longo da vida fui descobrindo que, afinal, isso era um verdadeiro presente dos céus, porque não são todos que têm essa faculdade. Isso é um autêntico tesouro. Abre-nos as portas para outras dimensões do conhecimento, da sabedoria e coisas que não estão nos livros, simplesmente porque a ciência não tem como provar.

Ao longo da minha vida as portas têm-se aberto e de que maneira! Coisas com que eu nunca sonhei, foram-se desbloqueando, deixando-me sem palavras. A reencarnação é uma delas. Acreditar é uma coisa. Eu acreditava porque achava que fazia todo o sentido. Acreditava por isto e por aquilo, mas ter acesso de modo a saber quem é quem, acho que é muita coisa.

Sempre achei que, apesar de toda a minha familiaridade com a vida espiritual, jamais estaria à altura de um dia vir a saber alguma coisa a esse respeito. Contudo, e sem ir à procura, as coisas vieram ao meu encontro. De repente, comecei a ter “mensagens” do campo holístico, simplesmente informando-me quem aquela criança era, o que me deixava completamente perplexa, com dúvidas, até. Dúvidas essas que, rapidamente se esfumaram, para dar lugar a uma certeza praticamente conclusiva. Também estou certa de que essa certeza é somente e apenas minha, não a podendo passar para os outros, porque não há como provar. Os outros acreditam ou não, a não ser que também tenham a mesma informação e então, estamos em sintonia.

E, surpreendentemente, continua a revelar-se, porque neste caso do netinho de Altair, havia um pormenor de suma importância para mim. Mais uma vez o mundo espiritual trazia uma nova informação, que complementava e fechava de vez todas as dúvidas da reencarnação. Até então eu só tinha encontrado reencarnações no mesmo sexo e nunca em sexos diferentes, o que me deixava um pouco insegura. Porquê? Como? Eu sabia que a reencarnação não tem nada a ver com sexo. Todas as almas passam por experiências em corpos masculinos e femininos. Mas eu nunca tido validado um caso de diferença de sexo e isso deixava-me inquieta, apesar de que todas as informações eram corretas. Mas não tinha justificação para isso.

À medida que o tempo foi passando, mais fácil e vasto o número de processos de reencarnação a que o mundo espiritual se vem revelando. Os primeiros foram assim uma coisa inédita, uma experiência maravilhosa. Eu até tinha dificuldade em aceitar, apesar de saber que era fidedigno. Depois, à medida que foram aumentando, foram-se tornando uma coisa quase natural, para não dizer mesmo o mais natural possível, sem drama, sem nenhum espanto, aquele espanto de quem descobre um segredo guardado a sete chaves. Só faltava realmente este pormenor do sexo.

O mundo espiritual apenas se revela, com toda a naturalidade, deixando as suas marcas nas informações que nos passa, para que o possamos entender melhor e por uma razão muito especial: o amor. Para que o amor seja fortificado e engrandecido no seu todo. Para que venha ao de cima e seja, cada vez mais, a coisa mais importante das nossas vidas, do nosso ser.

E finalmente, acabava de presenciar um caso em que uma alma que que acabava de deixar um corpo feminino, reencarnava agora num corpo masculino. Uma vez mais, o universo falava, dizendo-me que eu estava certa e que esta era uma informação que validava todo o meu conhecimento. Mais do que isso, era verdadeiramente uma transcendente prova do amor único, porque universal.


domingo, 14 de abril de 2024

Flora - 118

 

Fazia tempo que não via a minha amiga. Bastante tempo, por sinal, o que era estranho. Praticamente, todos os dias nos cruzávamos na universidade sénior, ela por uns motivos, eu por outros, mas sempre acabávamos por nos encontrar.

Durante alguns anos, ela andava sempre à boleia comigo, para cima e para baixo. A certa altura, as atividades dela começaram a divergir das minhas e deixei de tê-la como companhia. E não é que não sentisse a sua falta, mas a vida é feita de mudança e cada um tem o direito às suas opções.

De qualquer modo, era frequente vermo-nos na universidade, assim como acontecia com quase todos os outros colegas. Porém, a dada altura, deixei de vê-la por completo. Liguei-lhe uma outra vez, mas ela não atendeu nem respondeu. Isso não era muito estranho, porque Flora anda sempre super ocupada, sem grande ou nenhum tempo para tagarelices. Em todo o caso, eu sentia no ar a falta dela.

Um dia de manhã, ao acordar, tinha tido um sonho. Um sonho do qual me lembrava perfeitamente. Era simples e curto, mas muito agradável. Estava num lugar que identifiquei como sendo a universidade, num espaço à entrada do edifício, onde todos nos cruzamos uns com os outros, nos vários sentidos, e de repente ela apareceu do nada, vindo na minha direcção, cumprimentando-me como de costume, com um forte abraço e beijos, perguntando se estava tudo bem. Olhei para ela surpresa por há muito não a ver, respondi que sim, tudo bem e ali, durante alguns minutos, ficámos olhando uma para a outra, em jeito de contemplação, duma maneira amistosa e agradável como sempre.

Ela estava bonita, com o bom astral de sempre, os olhos azuis que lhe iluminam o rosto emoldurado de cabelos louros e um sorriso meigo, tranquilo, bem ao seu jeito. Era a minha amiga Florinha de sempre e como eu tinha saudades!

Flora é uma presença muita activa na universidade sénior, muito participativa, sempre envolvida em mais projectos, sempre prestativa com os outros, ajudando em tudo o que pode, para que tudo seja mais e melhor. Nesse domínio é a figura número um, sem dúvida alguma e eu, pessoalmente, tenho uma grande admiração por quem ela é. Ela sabe abordar cada um, sabe como chegar-se à frente e tem sempre as palavras certas na hora certa.

Com ela aprendi muita coisa e uma delas foi precisamente melhorar a minha comunicação com os outros, deitando abaixo as barreiras, vencendo a timidez e outras coisas mais com que eu ainda lutava. A ela devo isso.

Naquela manhã, ao acordar, relembrando o sonho, senti-me muito bem, com uma sensação muito agradável. E pensei que aquilo era sinal de que naquele mesmo dia iria finalmente encontrá-la. Sim, porque um sonho nunca mente. Eu sei quando um sonho traduz uma realidade e quando é pura fantasia. Este, eu sabia que era uma antecipação do que iria acontecer – premonição. Tinha a certeza absoluta.

Levantei-me, tratei de mim, fiz o que tinha a fazer e saí de casa em direcção à universidade, agora acompanhada de outra colega que é minha vizinha e anda sempre comigo. Lá fomos as duas para as aulas da manhã. E logo que chegámos, lembrando o sonho, achei que ia encontrá-la logo por ali, como costumava ser. Mas enganei-me. Flora não estava, pelo menos, não que a pudesse ver. Talvez estivesse numa sala a fazer as suas coisas habituais, mas não nos conseguimos encontrar.

Fomos à primeira aula e, no final, no intervalo entre a primeira e a segunda, saímos. Estava um dia lindo, digno de um excelente início de Primavera abençoada, porque de Inverno estávamos todos fartos. Cansados do frio, da chuva, dos dias tristes e desagradáveis, mas que fazem parte da vida.

Naquele dia dávamos graças pelo sol que nos abraçava, pelo calor que nos chegava e pela luz que nos iluminava e tudo tornava mais leve, mais colorido. Novamente me lembrei da Flora, olhando em volta, mas nenhum vislumbre dela. Perguntava a mim mesma por onde andaria, porque eu estava certa de que nos iríamos encontrar. Não!?

Chegou o professor e fomos à segunda aula. Terminada esta, fui chamada à secretaria para esclarecer uma questão. A minha amiga, entretanto, ficou lá fora com os colegas, falando, descontraindo, rindo uns com os outros disto e daquilo. Lá estive na secretaria em conversa com a colega que trabalha lá e outras que depois apareceram para resolver assuntos e o tempo foi passando.

Quando terminei o que tinha ido ali fazer, despedi-me e fui lá para fora juntar-me ao grupo para aproveitar uns minutos de descontração e convívio. No meio de tudo isto, continuei a farejar, no intuito de dar voz ao meu sonho. Eu tinha sonhado com a Flora. Ela tinha aparecido e foi tão real como bom, muito bom, tê-la visto. Mas nem rasto dela.

E assim, deduzi que, afinal, contra todas as expectativas estava enganada, sentindo-me idiota, porque atraiçoada exactamente pela minha pessoa. Porque tenho sempre que acreditar em coisas em que ninguém se lembra de acreditar? Mas também os outros acreditam em coisas que eu não acredito. Contudo, devo acrescentar que aquele assunto dos sonhos, é um assunto que para mim é “sagrado”, digamos. 

Eu sempre soube quando um sonho é premonição e quando não significa nada. A minha intuição nunca falha a esse nível. Muitas vezes estive em situações que parecia que ia falhar e depois, no último instante, quando tudo parecia que não ia dar certo e que era a coisa mais absurda, a situação revertia-se, acabando por dar tudo mais que certo. E na verdade sempre penso que é desta vez que vai falhar e depois lá vem a resposta, fazendo-me ver que afinal não falhei.

Pois é, mas para tudo há sempre uma primeira vez. E esta seria mesmo a primeira vez, custasse o que custasse, era para admitir. Ninguém é perfeito. Ali não havia volta a dar e eu tinha-me enganado. As minhas faculdades estavam a falhar. Que tristeza!

A conversa estava muito boa, mas cada um começou a despedir-se para ir à sua vida. Estava na hora do almoço e disse à minha amiga para irmos andando porque ainda tinha coisas para fazer, por isso também nos despedimos e fomos em direção ao carro.

Em casa, enquanto preparava o que ia comer e mesmo depois enquanto almoçava, ia pensando nisto e naquilo, mas não me saía da cabeça o sonho e a estranheza de não ter visto a Flora, que não dava certo. Depois da refeição ainda tinha uns minutos para descansar e a seguir voltava para a universidade, porque tínhamos uma aula à tarde.

Na hora certa, saí de casa, encontrei novamente a minha amiga e colega, que entrou no carro para seguirmos uma vez para a universidade. A aula de Jogos dura hora e meia e é sempre uma aula muito divertida, animada, em que todos sem excepção aproveitam para desopilar ao máximo pela natureza da própria aula. Dizem-se e fazem-se todos os disparates e mais alguns, com que todos se riem até mais não poder. Aproveitam-se as asneiras uns dos outros, segue-se o caminho e a brincadeira nunca mais acaba. E mais uma vez não fugiu à regra. Às vezes chega a doer o estômago de tanto rir.

Era fim do dia de aulas e fim de semana, também. Na semana seguinte mais haveria para nos preencher o tempo com uma certa qualidade e em comunidade. Mas a risada e a gozação continuaram. Fui novamente à secretaria para me despedir da Cristina e mais uma vez aproveitei para dar uma olhadela em volta à procura da Flora. Mas nem vê-la. Nada de Flora. Despedi-me da Cristina e saí da Secretaria para chamar a minha amiga, que logo veio ao meu encontro para regressarmos a casa.

Uma vez mais lamentei que o sonho não tivesse dado certo e não conseguia compreender e muito menos aceitar. Era de todo muito estranho. Mas aquele assunto ia encerrar ali, admitindo que estava errada e não queria pensar mais nisso, que me estava a perturbar mais da conta, o que era inadmissível. Assunto encerrado.

Virei as costas para batermos em retirada e… de repente… e mais, surpreendentemente, aos quarenta e cinco do segundo tempo, como se costuma dizer, quase esbarro em alguém que estava precisamente no meu caminho… cara a cara, olhos nos olhos, que bonita que ela estava! A Flora. A Flora!?

sexta-feira, 29 de março de 2024

Didi - 117


Didi entrou no meu carro com uma novidade: a nora estava grávida. Depois dos cumprimentos e de uma breve troca de palavras habituais, cheia de entusiasmo, disse que tinha uma coisa para me contar. Pelo ar, expressão e todo o semblante, era uma coisa boa, só podia, porque ela não cabia em si de contentamento. Indo direita ao assunto, porque estava muito ansiosa, falou tudo duma só vez. A nora estava grávida, à espera do segundo filho.

Compreendi a excitação, porque se fosse comigo, não estaria menos. Além de que a nora já tinha uma certa idade e foi muito difícil conseguir a primeira criança. Após várias tentativas “in vitro” e depois de vários abortos, lá veio uma gravidez que conseguiu chegar a bom termo e uma menina nasceu, a Isabela.

De vez em quando falava no assunto, repetindo vezes sem conta que aquela criança tinha sido muito difícil e que a nora tinha muita dificuldade em engravidar. E também tinha vindo a dizer que ela queria muito ter outro filho, mas nas condições dela, era praticamente impossível. Era quase um milagre.

Há uns tempos ela veio com a conversa que suspeitava que a nora e o filho andavam a planear outra gravidez, porque nalgumas conversas ao telefone com o filho, ele lhe dizia que estavam no hospital, sem especificar o motivo, pelo que começou a desconfiar que andavam novamente a tentar, embora ela achasse que não valia a pena, tanto pela idade como pela dificuldade. Mas isso era problema deles.

Agora vinha entusiasmadíssima e feliz da vida, porque a vinda de outro neto estava anunciada, ainda que temendo que a nora abortasse, como aconteceu outras vezes. Em todo o caso, o filho tinha-lhe garantido que estava tudo bem com esta gravidez e que ia dar tudo certo. A Isabela já estava com três anos e a coisa vinha na hora certa.

Enfim, fiquei feliz por ela, e reforcei que daria tudo certo, com certeza. Porque não? Era bom para todos. Uma criança é sempre um presente dos céus. Uma mãe, por variadíssimas razões, pode não querer ter mais filhos, é compreensível. Mas uma avó quer sempre ter mais um neto. Venham os que vierem, sempre serão muito bem-vindos. Era só aguardar e pensamento positivo para que tudo desse certo.

A conversa mudou de rumo para o usual, fomos à nossa vida e o tempo passou. Foi passando com tudo a andar normalmente. As confusões da vida, a política, as guerras, etc… etc… etc.

Uma semana depois, era mais um dia. Um dia de universidade sénior, de tarefas caseiras, um dia de rotina. Íamos para as aulas e Didi tinha acabado de entrar no meu carro. Como de costume, a conversa começou com ela a pôr tudo em dia. O que acontece e o que não acontece. Mas logo de seguida fui surpreendida com uma conversa de um sonho que teve. E estava louca para me contar. Fui ouvindo sem ligar muita importância, como fazia com tudo o que ela dizia. Mas desta vez, falava-me muito animadamente de uma coisa diferente das suas conversas habituais. Dizia que raramente sonhava, mas que naquela noite tinha tido um sonho muito estranho.

Aí, foquei um pouco a minha atenção, apenas porque os sonhos são um assunto de suma importância para mim. Eu sei que a maioria das pessoas não liga, mas para mim é vital. Dependendo do que é, têm a sua importância. Eles trazem muita informação. Aquilo que às vezes pode parecer uma coisa tola e sem significado nenhum, apenas para descartar, muito pelo contrário, pode ser uma mensagem altamente codificada, impregnada na peculiaridade da linguagem onírica, a qual é preciso saber ler, porque contem informação muito preciosa para nos guiarmos, assim como conhecimento, pelo que é preciso estar bem atentos.

Foi por isso que, quando ela me falou num sonho que tinha tido, embora não me dissesse respeito, fiquei um pouco curiosa. Além disso e, apesar de ser um sonho dela, eu poderia ajudá-la na interpretação. Portanto, agora eu estava bastante atenta ao que de lá vinha, para perceber se faria algum sentido. E ela continuava a falar, dizendo que nunca sonhava, mas este sonho era como se tivesse sido real, como se tivesse acontecido e isso já era um dado importante. Só o facto de nunca sonhar, ou seja, nunca se lembrar, isso já significava que ali havia coisa, caso contrário o subconsciente não o teria registado para ser acessível ao consciente.

Didi tinha sonhado com o marido falecido há três anos e com quem nunca sonhou depois da sua morte. Era como se ele estivesse ali ao pé dela. Como se estivesse vivo! Estava bem, de óptima disposição, falando com ela animadamente, mas (?!)…, mas… e aqui é que está o cerne da questão. Dizia-lhe que queria ir com ela para a cama. Com efeito, ela olhava para mim com um ar espantadíssimo, como se fosse uma coisa extraordinária. Ela dizia-me que ele tinha tido um relação extraconjugal, ou seja, traía a mulher com uma amiga dela, que também era casada. Mas nunca se quis divorciar dele, apenas para não lhe facilitar a vida. Agora, no sonho, ele estava com ar feliz e queria sexo com a mulher. Ela estava espantada, aceitando aquela realidade holística como se ela fosse real, misturando um pouco o mundo material com o “fantástico”, digamos.

Enquanto ela falava sobre o sonho e sobre o marido, não dei especial importância. Podia ser apenas uma necessidade de união de almas, tanto mais que ela tem o hábito, só porque sim, de ir ao cemitério levar flores, etc. Contudo, assim que ela falou que no sonho ele queria ter relações sexuais com ela, a minha atenção redobrou, porque aí soou o alerta. Era esse o ponto central da questão. Imediatamente, percebi que, na verdade, o sonho era uma revelação que ele estava a tentar passar para ela. Só que nem todas as pessoas se situam nessa dimensão e até acham tudo isso uma parvoíce.

Didi estava viúva há três anos. Nos últimos tempos, o marido não falava noutra coisa senão nessa menina, a neta Isabela que estava prestes a nascer, porque queria fazer uma grande festa em família. Já não foi a tempo, porque fez a sua passagem uns dias antes do seu nascimento. A sua alma já antevia a possibilidade da reentrada ou reencarnação numa outra vida, no seio familiar. Contudo, por razões que desconhecemos, não foi possível. O “tempo” deve ter sido o factor. O tempo é apenas uma dimensão que não tem nada a ver com a nossa medida. A alma precisa de tempo=espaço para se desligar, limpar o karma e entrar na outra dimensão que lhe permitirá abrir novo ciclo de reencarnação.

A nora, apesar de tudo, não teve tanta dificuldade em gravidar pela segunda vez, o que deveria ser mais difícil do que da primeira. Três anos depois volta a engravidar, estranhamente sem grande dificuldade.

No sonho, ele apresenta-se a ela deixando-a com a nítida sensação de que está vivo, ali ao seu lado. Vivo e feliz. Ela estranha ainda o facto de ele querer ter sexo. Ela não estranha, digamos que fica impressionada. O sexo é o acto que permite a procriação de modo natural. Sem sexo não há procriação e procriação é a continuidade da vida. Há, claro, nas situações “in vitro”, como é o caso. Mas para isso teve que haver sexo, sozinho ou acompanhado. Sexo é aquilo que se sobrepõe à morte, fazendo com que a vida seja mais forte do que a morte.

Ele vem dizer, nem mais nem menos, que vai reencarnar, ou seja, já reencarnou, nesta nova criança que vai nascer e que, em princípio, tudo vai correr bem e vai voltar para o seio familiar, através, nada mais nada menos, desta criança. Bem-vinda!