Em casa dos meus
tios havia um quadro na parede, que era o retrato de um homem, que despertava de
mais a minha atenção de criança. Não tinha nada de especial, mas estava
colocado no hall, estrategicamente, bem à entrada da porta e era o único
retrato naquela casa. Parecia dar as boas vindas a quem chegava. Mas parecia
também como que uma autoridade.
Naquele tempo eu
era a única, porque fui a primeira da minha geração. A primeira filha, a
primeira sobrinha, a primeira neta, por isso, costumo dizer que vim para abrir
as portas aos que vieram depois de mim e se para mim tudo foi complicado, já
para os outros, foi tudo muito fácil. Não tenho dúvidas de que foi minha
missão, de facto, abrir as portas. E pronto, faz parte da vida, faz parte do
percurso de cada um de nós. Cada um veio para o que veio. A cada um cabe a sua
parte.
Também por isso,
fui a primeira a pisar aquela casa, porque todos nós vivíamos em Setúbal, com
os meus avós. Mesmo depois do meu avô falecer, continuámos em casa da minha
avó. Só um, o quarto, segundo filho dos meus tios, foi criado em Lisboa, em
casa dos pais. E talvez por essa razão, ele seja completamente diferente dos
outros. Foi criado pela empregada e pela avó paterna, porque os pais
trabalhavam e estavam todo o dia fora. Foi lá que cresceu e ficou a vida toda,
até hoje.
Ir a Lisboa,
para casa deles, não era nada fácil para mim. Um terceiro andar, bem no centro
da cidade. Não é que eu não gostasse da casa, mas não tinha com que me entreter.
A casa dos meus avós, em Setúbal, era uma casa antiga, mas era um rés-do-chão,
pelo que o acesso à rua era tranquilo. Quando estava chateada, podia ir para a
rua brincar. Em Lisboa, isso não podia acontecer, de jeito nenhum. Mesmo que
fosse, não estaria lá ninguém para brincar comigo. A única coisa a fazer era
ficar quieta, vendo a empregada fazer todo o trabalho de casa, o que era
bastante monótono, sem o menor interesse.
Naquela altura
também ainda não havia televisão, pelo que a minha riquíssima infância de
África, ficara completamente para trás, deixando-me morrer de tédio em Lisboa,
onde eu nem brinquedos tinha para brincar. Aquela casa não era uma casa para
acolher crianças. Era uma casa de adultos para adultos. As crianças,
praticamente, não tinham lugar. Era muito difícil.
Então, eu
passava o tempo observando os bibelots, tudo o que estava nas paredes, os
móveis e na falta do que me entreter, enrolava-me no chão, acabando por adormecer,
porque realmente não sabia o que fazer. O meu refúgio era dormir. Era a minha
única defesa. E o pior é que ninguém me
compreendia nunca. Achavam que era eu que era desadequada, sem princípios, etc.
Outros tempos.
A casa era muito
cheia de tudo, até hoje, porque foi sempre piorando. Ao longo dos anos, e já lá
vai mais de meio século, sempre conheci os mesmos móveis, as mesmas coisas nas
paredes, e tudo só foi aumentando. Nada ali se põe para fora. A vida foi
acontecendo naturalmente. Uns morreram, outros nasceram. Os meus tios tiveram
três filhos, dois rapazes e uma rapariga, a mais velha dos três irmãos, mas só
um nasceu, cresceu e por lá ficou sempre. Os outros, tal como eu e a minha
irmã, era só de passagem.
O J. A., o meu
primo que ficou sempre com os pais, teve uma vida completamente diferente dos
outros. Os meus tios estavam a semana inteira em Lisboa e só ao fim-de-semana
iam a Setúbal. E a assistência que davam às crianças era pouquíssima ou
nenhuma. Ao domingo íamos todos à missa. Se fosse Verão, íamos para a praia,
mas eles não se preocupavam em nada connosco. O fim-de-semana em Setúbal era
apenas e somente para descansarem. Quem quisesse que trabalhasse. E eu, a mais
velha, é que era responsável por todos os outros. O que quer que fizessem, era
minha responsabilidade, apenas porque era a mais velha. Os meus tios
deitavam-se na areia a apanhar sol e desligavam-se de tudo. Até em casa,
qualquer coisa que corresse mal, era culpa minha. Eu não achava aquilo certo,
mas era o que era.
A minha infância
foi extremamente rica, porque boa demais para ser verdade, e talvez por isso, tenha
acabado tão cedo, mudando a minha vida do dia para a noite. Aquelas idas a
Lisboa eram sempre uma grande chatice. Mas os meus pais ainda estavam em África
e eu não tinha outro remédio.
Hoje, acho
perfeitamente natural que eu me deixasse adormecer com tanta facilidade, porque
não tinha com que me distrair. Aquela casa era um castigo para mim. Nessa
perspectiva, entendo também o facto de o tal retrato exercer sobre mim tanta
atracção e algum mistério. Mas não era só isso. Eu sabia que aquele personagem
não estava entre nós. Já tinha morrido havia muito tempo. Então porque havia de
estar ali, como que a dizer, eu sou o dono desta casa? Eu sou a “pessoa” mais
importante deste lar. Aqui mando eu. Aqui eu imponho-me a tudo e todos!?
Era exactamente
isto que ele me dizia. Era isto que chegava até mim, sempre que me detinha,
especada em frente do quadro. Até que um dia, ao ver-me ali tão concentrada e
talvez já o tivesse visto outras vezes, a minha tia me disse em voz muito
baixa, que ele andava por ali, isto é, que o via circular pela casa. De certo
modo, apesar de ser estranho, não deixava de vir ao encontro das minhas
conjecturas. Estava no seguimento dos meus pensamentos. Todavia e, apesar de eu
ser tão pequena, não deixava de ser estranho ela me falar assim, dizendo
aquelas coisas que parecia que não tinham cabimento.
Ao longo do
tempo, a casa foi-se transformando num verdadeiro armazém, porque as coisas
continuaram entrando sem que nada saísse. Quando os meus tios morreram, achei
que o meu primo daria um rumo satisfatório àquilo. Mas aconteceu precisamente o
contrário. Todos nós fizemos um esforço para tornar a casa habitável, com uma
certa qualidade de vida, coisa que ele não deixou, porque é um acumulador
compulsivo e não consegue pôr nada fora, nem mesmo o lixo.
Mais de
cinquenta anos se passaram e tudo aconteceu. O meu querido primo continua lá,
porque nunca viveu noutro sítio. A juntar a tudo o mais que veio, porque as
paredes que antigamente tinham apenas alguns quadros, hoje em dia têm milhentos
deles, que sobem pela parede até ao tecto, de uma maneira desordenada e sem
explicação. Quando raramente lá entro, porque todos nós nos sentimos mal no
meio de toda aquela desordem, o retrato continua lá todos estes anos. Intocável!
É mesmo incrível.
Porém, se antes, naquela altura em que eu era apenas uma criancinha de cinco anos, não fazia qualquer sentido, embora a minha tia dissesse que ele andava por ali, hoje, ele faz todo o sentido, sim. Há coisas estranhas. Temos que esperar o tempo necessário para compreendê-las. Foi o caso. É que hoje eu sei que, aquele retrato que é do avô paterno dos meus primos, e que foi ali posto “por acaso”, não, não foi por acaso. O acaso é um grande enigma. Já não posso dizer que foi o acaso que me trouxe a resposta. Claro que não. A única coisa que posso dizer é que aquele retrato é, nem mais menos, o avô paterno dos meus primos, sim, que voltou a esta vida no seu próprio neto, o meu primo J. A., o único que sempre viveu naquela casa.
Da mesma maneira que o meu primo mais novo é a reencarnação do nosso avô materno, o mais velho é a reencarnação do avô paterno deles, não meu, porque é por parte do pai. E tudo se encaixa. Por isso o “acaso” lá o colocou. Na verdade, mesmo antes de vir a esta vida, já lá estava em espírito. A minha tia, de facto, já tinha essa percepção, ao dizer que o via por ali. Só não sabia que ele voltaria de verdade, como um filho seu. Mas, certamente, foi ela que, inconscientemente, e por um “acaso” ou não, quis lá o tão especial retrato.