Eu senti muito a falta da minha mãe, desde que ela
faleceu, quando eu tinha apenas dez anos. Só quem passa por isso é
que pode avaliar e lidei muito mal com essa situação. Fiquei perdida,
despedaçada de todas as maneiras e feitos. Pela vida fora, fui tentando apanhar
os cacos que ficaram de mim e aprendendo a juntar cada pedaço para me
refazer. Foi muito difícil. Em tudo eu sentia a falta, o apoio, o carinho dessa
mãe que, com trinta e dois anos, tinha partido. Mas sobrevivi.
Quando o meu
filho nasceu, mais uma vez e tanto, senti a falta, a necessidade duma mãe que
me orientasse e me transmitisse confiança com a sua experiência e que estivesse
por perto de mim, como naturalmente estaria se estivesse viva, para me ajudar a
cuidar do meu filho, o que teria sido uma grande alegria para ela. Mas enfim, a
vida é como é, e é preciso aceitar. Mas sempre que eu estava em apuros e em
situações complicadas pensava nela e isso reconfortava-me, acreditando que ela
faria o impossível para protegê-lo e de alguma maneira me ajudar na missão
mais importante da minha vida, sem dúvida alguma.
Desde que o
Henrique nasceu, uma das coisas que sempre achei fundamental na educação
dele, foi a "disciplina". Assim, ele foi crescendo com horas
para tudo. É claro que a disciplina que eu introduzia nos hábitos dele,
começava por mim, caso contrário, nem saberia como aplicá-la. A hora de dormir
tinha a sua hora que ele, aliás, muito bem sabia e quando estava na hora, ele
mesmo dava o sinal.
Contudo, um
dia, aconteceu que chegou a hora de ir para a cama mas não foi, entretido
que estava com uma construção de lego pelo que, a certa altura, tive
que intervir. Ele dizia que já ia, já ia, mas o já, não se
concretizava e aos poucos comecei a enervar-me, a ralhar com ele, que acabou
por ir para a cama contrariado e a chorar. Deve ter sido a única vez
em que tal aconteceu ou talvez tenham havido outras, que não tiveram tanta
importância. Esta ficou marcada porque foi um acontecimento muito, muito
especial. Daquelas coisas que, em verdade, nem se deviam contar, porque
não podemos esperar que os outros entendam e muito menos que acreditem. E mesmo
que acreditem, é impossível relatar, de modo a passar exactamente o que
aconteceu. Não há palavras que possam descrever aquilo que não se vê e não se
ouve. A alma de cada um é única e, como um cartão de crédito, pessoal
e intransmissível.
Dadas as
circunstâncias, consenti que ele ficasse um pouco mais tempo acordado, já
na cama, para que se acalmasse e fui para a sala, embora irritada por me ter
aborrecido com ele e o ter feito chorar. Precisava de ter mais paciência e
às vezes não tinha. Também me queria deitar, porque estava cansada e só
depois dele, é que eu conseguia dormir. De modo que o melhor era dar-lhe mais
um tempinho para sossegar.
Passados
alguns minutos, achei que devia ver se já estava a dormir. Levantei-me e
estranhamente comecei a ouvir a voz dele. Dava para perceber que toda a
agitação tinha desaparecido. Estava muito calmo, como se nada tivesse
acontecido e falava quase em monossílabos, frases curtinhas, como se
estivesse a falar com alguém, a responder a alguém. Há crianças que falam
sozinhas e algumas têm uma espécie de amigo imaginário, mas o Henrique nunca
foi disso. Mas que estava a falar, estava, e que estava sozinho, era certo, com
a luz ainda acesa e o lego que continuava entre mãos. A minha
irritação persistia, ainda que eu não tivesse muita consciência disso, e
senti uma fúria por ele continuar acordado.
Quando
cheguei à porta, senti um impulso que me repelia e não me deixava transpor a
entrada. Uma estranha força entrepunha-se e barrava-me a entrada. Ao mesmo
tempo, a luz que inundava o quarto não era a luz do candeeiro que eu bem
conhecia e o Henrique estava sentado na cama, muito calminho, muito tranquilo e
continuava a falar como se alguém estivesse ao lado dele. Percebi
imediatamente que algo "estranho" se estava a passar.
Senti a
calma que reinava ali e percebi que era incompatível com o meu estado de
espírito, cuja vibração que me impediu de entrar. Inclinada sobre ele, a
figura etérea da minha mãe, emanava uma aura absolutamente deslumbrante,
que envolvia o Henrique, o quarto e decididamente não tinha nada a ver com
a luz do candeeiro. O rosto dela estava impresso no éter, assim como o vulto,
que se esbatia em finíssimas camadas de luz. Todos os contornos
estavam lá, definidos na indefinição que se perdia num fundo de luz infinita.
Era o retrato da pureza. E a sua mão branca, fina
e delicada, passava quase rente ao cabelo curtinho e louro do
Henrique, contornando a cabeça desde a testa até à nuca, sem lhe tocar, num
gesto de uma ternura indescritível, de paz e tranquilidade, aconchego de
avó, que não podendo estar em presença física, desceu à terra, em
espírito, para apaziguar um neto muito, muito querido, que amava e
protegia acima de todas as coisas.
A sua
expressão de enlevo mostrava uma felicidade que não era deste mundo e o
Henrique, inocente e inconscientemente, absorvia e desfrutava daquela bênção
sagrada. Era um quadro de um fascínio delirante, onde o amor estava patente,
desenhado e materializado. Uma coisa deslumbrante! Uma coisa do céu, do céu
azul, onde vive a luz da eternidade. Era um encontro maravilhoso, de uma avó
que já cá não estando, continuava perto, deixando a marca e a mensagem do
amor incondicional. Com efeito, era bom que todos soubéssemos que,
em qualquer plano ou dimensão, a vida supera a morte.
Aquele não
era o meu lugar naquele momento e eu não queria "conspurcar" a beleza
daquela energia que nos presenteava. Mas o meu coração chorou lágrimas de alegria.
Voltei para
onde estava e aguardei. Agradeci a Deus aquela coisa maravilhosa e fiquei
sentada no meu sofá da sala, deixando o pensando fluir, fluir, pleno daquele
bem-estar. Mais tarde voltei ao quarto, devagarinho, pé ante pé. A luz
continuava acesa e o ambiente tinha voltado ao normal. Ela viera em nosso
auxílio. Cumprida a sua tarefa de tranquilizar o neto e fazê-lo adormecer
- fazer aquilo que eu não conseguira fazer - partira, pois há muito
que não pertencia a este mundo. Apaguei a luz e o Henrique respirava
calmamente, num sono tranquilo e inocente, como o de uma criança feliz e
abençoada.
A partir
daí, eu sabia que ela estaria sempre por perto, não só do Henrique, como dos
outros netos, o que me deixou muito, mas muito mais feliz e
imensamente grata à vida, por se estar sempre a revelar e sempre a
manifestar da maneira mais surpreendentemente possível.